O artesanato do silêncio

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Não dizer tudo. Insinuar. Sugerir. Calar. Mostrar pela metade. Toda a arte se vale deste delicado equilíbrio entre o dito e o não dito. Entre o que se mostra e o que se oculta.

Nos livros que contém essa tensão entre o dito e o silêncio, vislumbra-se uma teia de decisões artísticas que têm a ver com a escrita, com a ilustração, com a edição. Em todas essas decisões há uma representação do leitor. Quanto lhe é dito e como? Quais os riscos da decisão do dizer e do mostrar para a história, o poema, a imagem? Quais as consequências para quem lê e o que se espera dele? Como fazer para que o sugerido não represente um abismo intransponível no diálogo com o leitor e sim um horizonte para onde se pode caminhar construindo sentidos? Onde está o limite que marca o excesso do dizer e do mostrar?

Essas perguntas, cabíveis em toda manifestação artística, tornam-se especialmente necessárias quando se trata da literatura infantil e juvenil.

Uma literatura que, em muitas ocasiões, não se incomoda com uma vasta explicação, nem com a manifestação e demonstração e, até mesmo, reiteração como formas de jogar uma rede de proteção sobre o leitor. Uma literatura que teme muito arriscar e, por isso, no equilíbrio entre o dizer e o silêncio, tende a reprimir os sentidos, a não deixá-los livres no jogo inapreensível do texto e do leitor. O medo de que ele se perca, de que ele não vá na direção prevista, tem consequências muito visíveis no artesanato dos textos e das imagens. Mas, em vez de falar das marcas do excessivamente dito ou mostrado, tentarei pensar como alguns livros constroem o que não dizem, o que sugerem, ou o que deixam em suspenso até sua revelação.

Mesmo que os livros ilustrados ou até alguns livros de imagens não sejam os únicos que buscam e encontram estratégias para combinar o mostrar e o ocultar (seria injusto com alguns textos maravilhosos que chegam a esse porto por outros caminhos que não necessariamente tendo a imagem como parceira), vou me referir especialmente a eles, porque nos últimos anos promoveram uma verdadeira revolução na arte de mesclar linguagens e alguns são interessantíssimos para considerar o que chamo o “artesanato do silêncio”.

Esses livros se caracterizam por uma relação de interdependência entre imagens e palavras que se dá, não só no nível do que é dito ou mostrado, mas na esfera total do livro como objeto material e cultural. Os sentidos se constroem a partir da interação das linguagens presentes, a língua, a imagem e a edição, que considero uma linguagem própria que, por sua vez, ajuda a orquestrar as outras. Embora o visual ganhe um relevo impactante, a palavra (quando há) não é um mero ornamento mais ou menos belo. Pensá-la como algo óbvio ou acreditar que sua tendência à brevidade (tendência que não se aplica a todos os casos) lhe subtrai hierarquia na hora de ler é desconhecer uma condição necessária desses livros.

Nos casos mais notáveis, em que se procura sempre ultrapassar o limite do possível, há textos que constroem o não dito, ou o que é dito pela metade, por meio do jogo sutil entre a abertura do texto escrito e da ambiguidade da imagem.

Pode parecer estranho falar em silêncio quando a palavra, a imagem ou a materialidade do livro parecem estar falando. No entanto, “explorando como as coisas vistas assinalam para as que não são vistas”, como afirma o especialista Douglas Thorpe, é possível perceber a textura do que é sugerido ou do que se oculta.

Para refletir sobre como se constrói essa tensão entre o dito e o sugerido, ou não dito, em alguns livros ilustrados principalmente, mas não só neles, proponho mostrar três maneiras de fazê-lo, com três exemplos.


A primeira tem a ver com as palavras. A ambiguidade própria de algumas delas é uma das formas de apresentar um vazio ou uma elipse que faz o olhar disparar como uma flecha para a ilustração, doadora de uma aparência possível, de um destino entre outros. Nesse sentido, os pronomes impessoais ou neutros são palavras cheias de silêncio, palavras ávidas de sentidos que por si sós não podem gerar. Sua interdependência com a imagem, sua relação de “relevo”, nas palavras de Barthes, é essencial.

O livro Uno y Otro, de Maria Wernicke, é um exemplo claro disto, uma vez que os protagonistas são os impessoais (além de Um e Outro, os personagens são Nenhum, Todos e Alguém).


“Um tem o seu mundo.”


“Outro o dele.”

Se em qualquer livro ilustrado o passeio visual entre a imagem do texto e a ilustração é uma coreografia necessária da leitura, em propostas como esta, a viagem de ida e volta do olhar que lê se torna uma condição para dar voz à onda expansiva das palavras.

Outro exemplo dessa viagem é o começo do livro Tudo Muda, de Anthony Browne.


“Na quinta-feira de manhã, às dez e quinze, José Kaf notou algo estranho no bule.”

Esse “algo” que também é “estranho” faz sentido na metamorfose que se observa na imagem e é uma porta de entrada na atmosfera fantástica que se respirará em todo o livro.

Em Del Topito Birolo y de todo lo que pudo haberle caído en la cabeza o principal efeito humorístico está na elipse.


“Um dia, enquanto o Topito Birolo espiava para ver se já tinha saído o sol, aconteceu que … plop!
(Redondo e café era isso. Mas isso não era uma salsicha, ou um chapéu. Era simplesmente isso, redondo, café e… cheiroso.)”


“Eu? Não, como você acha? Eu faço assim!”, escoiceou o cavalo e… PLUM! PLOM! PLAM!
(Aquelas enormes bolas passaram zunindo perto de sua curta visão.)”


“Eu? Não, como você acha? Eu faço assim!” e… RA-TA-TA-TA-TA
(Aquilo parecia não ter fim. Quinze pequenos feijãozinhos saíram disparados.)”

O não dito no texto, expresso por meio de pronomes como “o” do título, “isso” na primeira imagem, ou expressões descritivas da forma, mas não da substância como “pasta”, “bolas grandes”, “feijãozinhos” ou “bolinhas gosmentas” é hiperbolicamente ampliado pela imagem que se encarrega do escatológico, do “indizível”. Significativamente, a picaresca ambiguidade das palavras é resolvida “aos berros” pela ilustração.


O segundo exemplo sobre o não dito ou sugerido se baseia em algumas maneiras que a imagem encontra para afastar-se do referente, relativizando a ideia de copia “fiel” do mundo. As estéticas que se distanciam do figurativo, que tendem à abstração, expressam claramente esse distanciamento. Uma maneira de fazê-lo é a escolhida por Juan Lima para representar o bairro onde mora Periquito, no livro em que divide a autoria com Laura Devetach. Um plano bidimensional mostra esse pequeno mundo feito com fragmentos da simplicidade na qual vive o personagem, e no qual ele monta evidenciando seu caráter de artefato.


“Quando Periquito era pequeno ay ay ay os mosquitos picavam ele e sua mãe
dizia ay ay ay te conto um conto curtinho.”

Outra maneira de sugerir esteticamente é usar até o limite as possibilidades expressivas de alguns sinais plásticos, como a cor chapada.

A imagem da escuridão total é resolvida, em alguns livros ilustrados, por meio de diferentes propostas narrativas com o preto chapado em que se destacam os olhos da personagem que vive a ausência de luz na ficção. É o caso de La mosca, de Gusti, Buenas noches, Gorila, de Peggy Rathmann e O homem mais peludo do mundo, de Istvansch.


Ilustração de La mosca, de Gusti.


Ilustração de Buenas noches, Gorila, de Peggy Rathmann.


Ilustração de O homem mais peludo do mundo, Istvansch.

Neste último livro, Istvansch joga de forma ainda mais extrema com a cor chapada, chave plástica do livro todo: o homem mais peludo é tão peludo que sequer pode ser visto. A aliança com o texto escrito é fundamental para a construção de significados. Este recurso também é o principal em seu livro: Has visto?

Embora a tendência à abstração possa associar-se com o aumento da sugestão, isto não implica que as representações mais figurativas não encontrem maneiras de calar ou esconder informação para a finalidade da história.

Isto nos aproxima do terceiro exemplo sobre a tensão entre o dito e o não dito.


Alguns livros ilustrados que apostam na surpresa como seu principal efeito recorrem a algumas estratégias na imagem para dar corpo ao “drama de virar a página”, como argumenta Barbara Bader.

O recurso de mostrar uma parte do todo, figura retórica chamada metonímia, é uma das formas de jogar fortemente com a sugestão por meio da demora lúdica de fornecer a informação.

Este jogo na imagem é alcançado com a cumplicidade da palavra, que deve proporcionar uma escuridão semelhante à surpresa que está sendo tramada. A edição também desempenha papel fundamental, uma vez que, por exemplo, se a diagramação da página revela mais do que a história precisa, a todo momento o efeito surpresa poderia ser quebrado.

La princesa de Trujillo é um caso no qual o uso da metonímia visual se coloca em parceria com a surpresa.

Trata-se de um relato de estrutura acumulativa, do tipo das ladainhas tradicionais, em que os objetos que vão se encadeando são mostrados parcialmente por um efeito de zoom combinado com uma pergunta dirigida ao leitor, que, para saber ao que corresponde à parcialidade observada, deve virar a página e se surpreender com a revelação do todo.

 


“Esta é a princesa de Trujillo.”


“E o que é isso?”


“Este é o anel da princesa de Trujillo.”


“E o que é isso?”


“Este é o lenço que cobria o anel da princesa de Trujillo.”

Outro livro onde esta estratégia é o motor da narrativa – neste caso apenas pelas imagens – é Zoom, de Istvan Banyai.

Longe das formas convencionais de narrar, a partir de um recurso próprio da fotografia e do cinema, o que se lê nesta história (se podemos chamá-la assim) é uma série de imagens que se questionam mutuamente.


Páginas seguidas de Zoom, de Istvan Banyai.

Cada uma delas se constitui em uma verdade provisória que cairá por terra cada vez que a página for virada. Cada imagem é parte de um universo maior que a inclui: e aí reside a surpresa. Nada é o que parece ser: as hipóteses leitoras são postas em questão progressivamente. A tendência à certeza que caracteriza muitas histórias destinadas ao público infantil é transgredida nesta proposta, ao mesmo tempo que o leitor adquire uma espécie de treinamento arriscando e prevê o que vai acontecer.


Este passeio por três formas em que se manifesta a tensão entre o que é dito e o sugerido ou o não dito não esgota as buscas estéticas que constituem o “artesanato do silêncio”. Existem muitas outras formas de expressão do não dito e é apaixonante explorá-las.

No território da leitura, as escolhas estéticas que praticam um delicado equilíbrio entre o que é revelado e o que se esconde postulam um leitor em constante questionamento, um leitor ativo, convidado a brincar com fragmentos inacabados de cada mundo ficcional.

Na hora da seleção de leituras, colocar a atenção nas decisões artísticas com que alguns livros constroem a ourivesaria do silêncio pode fazer mais desejável o risco e a pergunta do que a demanda por respostas absolutas.1Este texto foi apresentado na 18a Feira do Livro Infantil e Juvenil de Buenos Aires, nas Jornadas de Formação e Intercâmbio “Mediadores à vista”, em 2007. Originalmente publicado na Revista Imaginaria.


Epígrafe: Ilustração de Buenas noches, Gorila, de Peggy Rathmann

Tradução Dolores Prades


Imagem: Ilustração de Istvan Banyai, Zoom.


Referências Bibliográficas

BADER, Barbara. American Picture Books: from Noah’s Ark to the Beast Within. New York, Macmillan, 1976. Citado em: Arizpe, Evelyn y Styles, Morag. Lectura de imágenes. Los niños interpretan textos visuales. Com a colaboração de Helen Bromley, Kathy Coulthard e Kate Rabey. Traduzido por Maria Vinós. México, Editorial Fondo de Cultura Económica, 2004. Colección Espacios para la lectura.

BANYAI, Istvan. Zoom. Roteiro e ilustrações do autor. México, Editorial Fondo de Cultura Económica, 1996. A Coleção Especial Na beira do vento.

BARTHES, Roland. “Retórica da imagem”, em La semiologia. Buenos Aires, Editorial Contemporaneidade, 1970.

BROWNE, Anthony. Cambios. Texto e ilustrações do autor. México, Fondo de Cultura Económica, 1993. Coleção Los especiales de A la orilla del viento.

DEVETACH , Laura (texto); LIMA, Juan (ilustrações), Periquito, Buenos Aires, Ediciones SM, 2007. Coleção Barco a Vapor, Série Piratas.

GUSTI, La mosca. Texto e ilustrações do autor. Barcelona, Ediciones Serres, 2005. Coleção Libros Ilustrados.

HOLZWARTH, Werner (texto); ERLBRUCH, Wolf (ilustrações), Del Topito Birolo y de todo que pudo haberle caído en la cabeza. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1991.

ISTVANSCH. El hombre más peludo del mundo. Texto e ilustrações do autor. Valencia (Espanha), Tandem Edicions, 2003. Coleção El Tricicle.

ISTVANSCH. Has visto? Texto e ilustrações do autor. Buenos Aires, Ediciones El Eclipse, 2006. Coleção del Eclipse.

PATACRÚA (texto); SOLCHAGA, Javier (ilustrações), La princesa de Trujillo. Pontevedra, OQO Editora, 2006. Coleção O.

RATHMANN, Peggy. Buenas noches, Gorila. Texto e ilustrações da autora. Caracas, Ediciones Ekaré, 2001. Coleção Ponte Poronte.

THORPE, Douglas. “Why don’t we see him? Cuestioning the frame in illustrated children’s stories”, em Canadian Children’s Literature/Littérature canadienne pour la jeunesse nº 70. Guelph, 1993, pg. 21/05. WERNICKE, Mary. Uno y Otro. Texto e ilustrações da autora. Buenos Aires, Calibroscopio Ediciones, 2006. Colección Líneas de Arena.

Nota

  • 1
    Este texto foi apresentado na 18a Feira do Livro Infantil e Juvenil de Buenos Aires, nas Jornadas de Formação e Intercâmbio “Mediadores à vista”, em 2007. Originalmente publicado na Revista Imaginaria.

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  • Cecilia Bajour

    Nasceu na Argentina, é crítica literária de livros para crianças e jovens, com expressiva atuação na formação de professores e mediadores de leitura. Autora de vários livros, escreve assiduamente em publicações especializadas em literatura infantil, promoção de leitura, educação e bibliotecas em diferentes mídias em toda a América Latina. Membro da Rede de Apoio Emilia.

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