De todas as descobertas que fiz durante minha infância, aprender a ler foi, sem dúvida, uma das coisas mais mágicas que já me aconteceu. Antes disso, eu olhava as páginas de livros e revistas como se fossem materiais cheios de códigos que somente algumas pessoas sabiam decifrar. Eu queria muito decifrar! E tudo aconteceu de forma muito fluída para mim: aprendi o alfabeto, exercitei esse aprendizado. Depois juntei as sílabas e brinquei com as letrinhas. Formei palavras e de repente, lá estava eu lendo! Foi incrível! E até hoje a sensação daquele dia está muito viva em minha memória.
Do dia em que aprendi a ler – aos seis anos – até os dez, eu lia tudo que aparecia na minha frente. Minha mãe conta que eu lia até conteúdos constrangedores em público: “Mãe, o que é gozar?” Li isso na carteira de trabalho do meu pai que dizia que ele poderia gozar do período de férias. O caso é que meu desejo de ler tudo fez com que eu me deparasse com conceitos e nomenclaturas que meus pais não tinham sido preparados para dialogar comigo. Então cada vez que eu lia algo “inadequado” eu era repreendida e proibida de falar sobre o assunto.
Foi assim que, aos poucos, a leitura que tanto me libertou, passou a ser motivo de meu aprisionamento. No entanto, hoje eu entendo que meus pais não me proibiam de aprender, eles só não tinham sido incentivados à questionar o mundo e a perguntar. Meu pai e minha mãe foram crianças entre os anos de 1966 e 1977 e a lei que olhava para crianças negras como eles era o Código de Menores, que enxergava-os como menores socialmente (menor, nesse caso é como se fosse menos, quase nada).
Sendo quase nada, meus pais aprenderam a calar suas vozes desde crianças e também acreditavam que ser bons pais era sinônimo de ser agente de silenciamento dos filhos. Eu aprendi em silêncio. Adolesci assim quieta, me tornei uma jovem quieta e obediente e foi somente após os 26 anos de idade que comecei a ler uns textos que me incentivavam a falar… Melhor que isso: me incentivavam a GRITAR!
Eu iniciei minhas primeiras leituras de mulheres negras periféricas que, assim como eu, tinham mil dúvidas sobre gênero, sexualidade, raça, classe e falavam disso de forma muito bonita e potente. Até aquele momento eu sabia escrever muito bem, mas não sabia que essa ferramenta era tão revolucionária. Aprendi a escrever sobre mim sem medo (e às vezes aprendi a escrever sobre mim, mesmo com medo). Percebi que quanto mais cedo iniciarmos nossos exercícios de escrita sobre nossas próprias vidas, mais cedo conseguiremos nos tornar donas, dones e donos de nossos próprios corpos e protegê-los.
Eu sou educadora de gênero e sexualidade com foco em vivências infanto-juvenis e, em minhas atividades sempre incentivo a leitura critica de textos, mas acima de tudo, incentivo adolescentes que escrevam suas histórias, seus prazeres, medos e mobilizações.
Tenho dialogado com meus pais sobre a necessidade de romper com silêncios para que possamos criar um ciclo afetivo de coexistência.
Coexistir é existir e respeitar o direito do outro de existir consigo e comigo no mundo.
Narrem suas histórias, leiam, leiam tudo que puderem, mas escrevam também!
Sua escrita irá compor as possibilidades de leitura de alguém que, inspirada em você, escreverá a própria história.
Imagem: Ilustração para cartaz de Santiago Régis.