A formação do promotor de leitura

Post Author

Por que e para que promover leitura?

A experiência do Banco do Livro da Venezuela desenvolve-se – pode-se dizer – como a espiral de uma formação constante, que se consolidou na última década, quando se abriram as comportas de ampliação e articulação de um programa de formação de uma experiência institucional. Experiência baseada no fazer e na reflexão, incorporando projetos pilotos de modelos de bibliotecários transferidos às instituições públicas, assim como propostas inovadoras de pesquisa, formação, publicação, associadas a ações de promoção da leitura. A formação de mediadores (professores, bibliotecários, pais e adultos em geral que trabalham com crianças) foi essencial ao longo de toda a vida institucional do Banco, vida que no amanhecer deste século XXI tentamos redimensionar com uma proposta integral, que incorpora modalidade presencial e a distância.

No ano 2000, quando iniciamos um curso de formação integral de promotores de leitura, nos fazíamos duas perguntas: Por que e para que promover a leitura? Por que e para que formar mediadores de leitura?

Parece que hoje as respostas a essas perguntas apontam na mesma direção. Perguntas e respostas permanecem válidas, pois estamos imersos em um mundo em que a leitura parece ter deixado de ter o significado e a aceitação de outros tempos ‑ o mundo contemporâneo propõe novas aproximações, o que exige uma reavaliação do ato de ler.

Na tentativa de responder à primeira pergunta, poderíamos dizer que ainda se faz necessário promover a leitura por várias razões:

  • Primeiro, porque não atingimos totalmente o objetivo de democratizar nem a leitura nem a formação de leitores críticos. Isso permanece como um objetivo, uma vez que nem todos temos acesso a informação e não se pode falar com propriedade de massificação de competências leitoras, que potecializam as aproximações críticas.
  • Segundo, porque parece que a leitura banalizou-se e deixou de ter percepção e projeção positivas. Teríamos que recuperar essa representação culturalmente positiva da leitura ou re-significá-la, como diria Graciela Montes.

A condição social da leitura parece exigir sua materialidade em todos os sistemas sociais: na forma de decisões políticas, quando se trata do Estado, e no modo de fazer, quando se está em âmbito escolar, comunitário, comunicacional e familiar. As políticas públicas de leitura configuram o compromisso e a articulação de um trabalho conjunto dos sujeitos desses sistemas sociais, que deverão considerar cenas, espaços, tempo e materiais de leitura. O mediador tem um grande compromisso com essa tarefa, uma vez que é obrigado a ter uma formação continua, a refletir sobre diferentes aspectos em torno da tarefa de formar leitores, além de abordar várias linhas de pesquisa como uma espécie de neo-renascentista, capaz de ter uma visão integral do processo de leitura, sua promoção e a formação de leitores, assim como compreender as formas em que se insere em uma complexa estrutura social, que cada vez mais exige um trabalho em equipe.

A premissa desse trabalho integrado, sem dúvida, permaneceu até agora no âmbito discursivo, pois não se concretizou totalmente na prática. Nesse sentido, as perguntas que abriram espaço para a reflexão do por que e para que promover leitura, por que e para que formar leitores, segue vigente.

A falta de materialização, na prática, do discurso sobre leitura se dá não só por falta de articulação, como também pelo fato de que se trata de uma área permeada de vulnerabilidade, o que não torna possível multiplicar cenas de leitura no âmbito familiar; nem promover tempo e espaços de leitura suficientes nas escolas ou nos arredores dela; nem dimensionar os sistemas de bibliotecas em função das necessidades; nem conseguir que todos tenham acesso ao livro e a outros materiais de leitura e, sobretudo, o apoio institucional não tem sido suficiente para conseguir a promoção social da leitura. A responsabilidade é dividida e não nos esquivamos da nossa cota.

Como disse a escritora e promotora de leitura Graciela Montes:

Levar em conta essa complexidade e essa simultaneidade dos sistemas servirá para desmascarar muitas hipocrisias correntes: funcionários que enchem a boca com a defesa da leitura, mas que não fazem nada para promover o livro ou proporcionar ocasiões de entrar em contato com eles, pais acusam seus filhos de não lerem quando, na verdade, quem não lê são eles, bibliotecas e escolas sem livros, programas de leitura com muitos discursos e poucos livros, meios de comunicação em que se lamenta que as pessoas leiam pouco, mas que nunca incluem resenhas de livros em suas colunas… (“Espacio social de la lectura”)

Suprir esses vazios e proporcionar o encontro com a significação social da prática leitora constitui, hoje, uma das causas a que nos dedicamos no que se refere à promoção da leitura. Para isso, necessitamos de mediadores capacitados, competentes nas diferentes perspectivas e comprometidos. Mediadores atentos às mudanças de contexto, às variadas necessidades do público-alvo, às transformações de formatos que derivam em novas formas de ler e chegam para dividir a atenção com as formas tradicionais de ler.

Detivemo-nos em alguns aspectos essenciais para introduzir o tema de que nos ocupamos. Aspectos que nos sinalizam o caminho da profissionalização do promotor de leitura, que deve ter formação em diferentes âmbitos.

Conversa geral

I. De que tratam os promotores de leitura quando promovem leitura?

Em torno da prática de promoção de leitura orbitam conceitos e ações cujas perspectivas de integração e desenvolvimento têm que se fazer efetivas. São conceitos aos quais se deve aproximar – detida e analiticamente, de modo a se aprofundar – o promotor de leitura. Os conceitos demandam desse profissional a consolidação de sua condição leitora.Num primeiro momento, se entrecruzam os conceitos de leitura e leitor, cujas representações no tempo demonstram as mudanças na humanidade. A eles, relacionam-se outros conceitos que marcam o modus operandi da promoção de leitura: mediador de leitura, promoção, animação, o ambiente do leitor, materiais, formatos e seleção da leitura.

Para estabelecer essa relação de diferentes conceitos das práticas leitoras é necessário que a formação do profissional da leitura seja contínua, pois esta constitui eixo transversal em todo o processo da promoção da leitura: há um leitor em formação e um profissional – também leitor – em constante formação, e é desta relação que se pretende desenvolver leitores críticos.

Ressalte-se que a promoção da leitura é a sistematização das práticas leitoras em atividades que possibilitem o encontro do leitor iniciante, ou pouco iniciado, com materiais de qualidade, por tempo indeterminado.

Essas atividades contínuas devem contar com a orientação de especialistas capazes de transmitir não só suas experiências mas também, e sobretudo, sua condição leitora. Entre as ações que o promotor incorpora ao exercício da promoção de leitura, inclui-se a dramatização da leitura, que pode ser definida como um convite à leitura, uma encenação do texto, uma proposta aberta, que permita a exploração da proposta textual. Enfim, uma ação que motiva, que deleita e que geralmente tem enfoque lúdico, podendo – ou não – incorporar o encontro ao conhecimento.

Alinhados a essas perspectivas, retomamos aqui o objetivo que, para nós, tem a formação, ou seja, “formar especialistas que podem ser reconhecidos por sua disposição e habilidade para favorecer, através do uso de produtos culturais vinculados com a linguagem e a leitura, experiências que permitam ao indivíduo relacionar-se criticamente com sua cultura e com o mundo. Que seja capaz de desenhar e colocar em prática estratégias efetivas e completas de promoção e pesquisa da área” (Definição do Banco do Livro da Venezuela).

Acrescentaria, ainda, que seja um leitor competente em seu ambiente e ciente das necessidades do público-alvo, que, por sua vez, interiorize a necessidade de impulsionar, no espaço em que lhe cabe atuar, as propostas comuns e o intercâmbio de experiências.

II. Leitura e leitor: vãos comunicantes que o promotor deve conhecer

A formação leitora é um eixo transversal em todo processo de promover leitura. Em torno da promoção se situam definições, pressupostos e representações ‑ de cujo conhecimento e capacidade de relação por parte do promotor dependem o sucesso dos objetivos de qualquer intervenção em projetos de promoção de leitura, em maior ou menor escala.

Em primeiro lugar, é importante deter-se em dois conceitos básicos a que fizemos menção: leitura e leitor. Conceitos que projetam as mudanças de perspectiva ao longo do tempo e a partir dos quais outros conceitos se situam.

Começamos por situar o espaço da leitura em termos gerais. Para o Banco do Livro, a leitura “é uma ação que permite a apropriação, discriminação e construção de sentidos a partir de códigos verbais e não verbais, com a finalidade de satisfazer necessidades estéticas, de informação, de comunicação, de imaginação, de reconhecimento individual e social.

A leitura é um processo complexo em que a experiência cultural e pessoal do leitor desempenha um papel fundamental na apropriação e construção de sentidos, alinhados a uma realidade própria. Ler sempre esteve vinculado ao humanismo, pois constitui uma ação humana fundamental que permite satisfazer necessidades diversas, mas a essência está radicada na possibilidade que oferece para a apropriação, discriminação e elaboração de sentidos pessoais. A leitura se converte em uma ação vital quando acompanha o verdadeiro desenvolvimento do ser; quando lhe possibilita assumir posições críticas, transformar o outro e transformar-se.

Como sugere Emilia Ferreiro, “os verbos ler e escrever não têm uma definição única. São verbos que remetem a construções sociais, a atividades socialmente definidas. A relação dos homens e mulheres com o escrito não está dada de uma vez por todas e nem sempre foi igual: foi-se construindo ao longo da história. Ler no século XII e no XXI não teve nem terá o mesmo significado”.

O desenvolvimento da escrita e da leitura começa com a palavra oral e o gesto que impulsionava a comunicação; filia-se à narração, que permitia, a partir da imaginação, transformar a experiência em conhecimento. A oralidade se converteu em repositório de tradição e no saber em que se aninharam os contos tradicionais, os mitos e as lendas, que difundiram e continuam difundindo a cultura e a memória dos povos.

O caminho foi longo até chegar ao alfabeto e incluir, na cultura escrita, a cultura do livro. Uma cultura que ia de “mãos dadas” com a oralidade, pois os “leitores” da época liam em voz alta e se tornaram, de alguma maneira, os leitores-mediadores. Desde então, a oralidade divide a cena com a leitura do texto escrito, de outras linguagens e de outros formatos, incluindo, hoje, o digital.

Paralelamente a isso, o leitor sempre esteve presente, porque a palavra oral ou escrita se avoluma frente ao leitor ou ouvinte. Os leitores podem ser encantados pela palavra, pelo som e pela imagem. A responsabilidade de alcançar esse encantamento é dos mediadores: pais, docentes, bibliotecários, contadores de histórias, promotores de leitura, autores, editores, ilustradores e livreiros. Esse encantamento é o primeiro elo na cadeia da formação de leitores, o primeiro passo da difícil, trabalhosa e prazerosa tarefa de ler, parafraseando a escritora e pesquisadora venezuelana María Fernanda Palacios. Esse é o ponto de inflexão necessário para a formação de leitores críticos, pois lhes permite ascender ao dom especial da leitura, “pela qual o homem chega a compreender que não tem sistematicamente a razão, e aqueles de que diferem não estão absolutamente equivocados”, como diria Stevenson.

É importante destacar, também, que o exercício leitor é polivalente. Exercitamo-nos como leitores quando selecionamos qualquer material de leitura em função de alguma necessidade de informação, formação ou entretenimento. A proveniência do material de leitura, o lugar e o momento em que se realizam essas leituras condicionam cada situação de leitura que, em essência, é social e individual, ao mesmo tempo.

A cultura escrita implica uma condição social, estabelecida entre o ser e o fazer. Encerra um caráter participativo das comunidades em que existem representações e conceitos partilhados em torno da cultura escrita. Por outro lado, há a intervenção de elementos cognitivos na escrita, pois seus usuários necessitam desenvolver uma série de competências para serem eficientes. A escrita cumpre, então, duas funções: comunicativa e epistemológica. A primeira permite interagir e comunicar-se com outras pessoas. A segunda permite expressar ideias, sentimentos, além de representar ou recriar o pensamento, como afirma Miras. Em uma entrevista concedida ao jornalista venezuelano Boris Muños, o historiador da leitura e diretor da Biblioteca da Universidade de Harvard, Robert Darnton, adverte sobre a inclinação para a simplificação da leitura. Considera que “esta é um fenômeno grande e complexo, que está sempre em movimento”.

Agregaria que é, em virtude desse movimento, que se geram mudanças e múltiplas formas de leitura porque, se estamos praticamente imersos em uma era digital, “vivemos em uma era de meios misturados, não só da mistura do eletrônico e do impresso, como de muitas outras como do som e da imagem. Mas o contato físico com os livros é uma verdadeira inspiração”, afirma Darnton.

Como disse o professor José Urriola em um curso que planejamos a quatro mãos na Universidade Autônoma de Barcelona – Espanha: “O assunto dos suportes é também crucial, sobretudo em uma era multimídia como a que estamos vivendo. A leitura se alarga e agora cabem, com facilidade (e felicidade), outras formas de ler ou de aproximar-se da leitura: além disso, livros “convencionais”, histórias em quadrinhos, blogs, filmes, álbuns, livros de imagens, música, poesia, videogames, livros eletrônicos, vídeoclips, artes performáticas e um amplo espectro de formatos e suportes para outras leituras podem ser extremamente atraentes e estimulantes novos leitores”.

Essas são novas formas que introduzem ferramentas efetivas para o acesso ao conhecimento e, ao mesmo tempo, desafios para a formação de leitores literários. Por outro lado, essas “novas formas” oferecem possibilidades intertextuais e multimídia para a criação literária que exigem leitores com outras competências para interpretar e dialogar com outras propostas textuais. Introduzem novos parâmetros de leitura, novos caminhos de acesso à informação, de elaborá-la e de socializá-la. Definitivamente é um desafio que os que trabalham na área não podem abandonar.

A mudança que caracteriza a leitura pressupõe um promotor com competências leitoras capazes de ler o ato da leitura em perspectiva.

Maria Beatriz

III. Espaços leitores e materiais de leitura: variáveis de uma equação

Os espaços e os materiais de leitura constituem elementos fundamentais da promoção da leitura. Necessitamos de promotores de leitura capazes de ler o ambiente e conhecer os materiais de leitura, além de outras variáveis que exigem competência leitora.

Multiplicar os espaços e redimensionar o acesso aos materiais de leitura continua sendo uma urgência. Tratar da seleção de materiais de leitura no âmbito analógico ou digital deve partir de alguns pressupostos importantes, em que é necessário que os sujeitos envolvidos na promoção de leitura internalizem.

Primeiro: os contextos leitores são variados e diversos e, particularmente, em nossa região, são diversos, multiculturais e vulneráveis, seguidos, em muitos casos, pela pobreza e, muitas vezes, pela violência.

Estamos em uma região com semelhanças e diferenças, nada previsível e que oferece um problemático panorama ‑ marcado por desafios e dilemas que não podem ser assumidos sem a imaginação e a criatividade. Nosso contexto é uma variável que condiciona a criação de espaços para a leitura e seleção de materiais para os acervos das bibliotecas e para os projetos de promoção da leitura.

Segundo: os materiais de leitura se inscrevem na diversidade de formatos em que o literário e o externo à literatura compartilham cenários em meios analógicos e digitais. Estão, ainda, ancorados no desenvolvimento e na consolidação de uma ampla produção, com desníveis e que, além disso, não está ao alcance de todos. Compete ao setor público, aos bibliotecários, à sociedade civil comprometida com a leitura e à escola, com a ajuda de todos, saldar essa dívida pendente – a do acesso à informação e à leitura. Insisto no apoio dos setores públicos e privados como parte que envolve o processo de promoção de leitura.

Não podemos negar a presença, em nossa região, de crianças e jovens leitores críticos que transitam por diferentes formas de ler do mundo contemporâneo. A esse mundo, indicamos que promovemos leitura, mas podemos falar que alcançamos objetivos verdadeiros? – podemos dizer que contribuímos realmente para formar uma geração leitora ou que democratizamos a leitura? É nesse sentido que trabalhamos, mas há muito por fazer. Para avançar, devemos continuar desenvolvendo o trabalho, os estudos e as análises de materiais de qualidade que integrem os percursos dos leitores, por meio de monitoramento e da avaliação constante da produção.

A seleção de acervos deverá situar-se nas perspectivas mencionadas bem como nas resenhas e nos catálogos. Os selecionadores deverão estar atentos para a evolução da produção dos materiais de leitura, para as mudanças das condições de leitura e a equação que esta estabelece com o contexto. Os selecionadores são obrigados a desenvolver competências leitoras para ler, não só materiais de leitura em diferentes formatos, como as variadas estruturas comunicativas e disjuntivas em que se localizam os desafios de contexto.

Isso quer dizer que a avaliação deve caminhar com a formação profissional dessa área, pois as propostas de hoje exigem leitores competentes de imagem e de texto escrito, assim como as análises contínuas das propostas digitais e impressas que o mercado oferece.

De que forma nosso trabalho definitivamente contribui para tornar realidade esse direito social de democratizar a leitura na região?

Essas rotas derivadas da seleção constituem verdadeiras propostas para a construção e elaboração pessoal e social da leitura?

Todos os livros, e-books, todas as imagens se adéquam aos contextos difíceis e variados de nossos países?

Devemos ter essas perguntas sempre em mente para continuar avaliando e selecionando para nossos “contextos”, que a cada passo se reafirma como condição modificadora da realidade.

Há, ainda, que ser flexível na hora de escolher materiais de leitura e traçar estratégias para a promoção desta, tanto na escola com na biblioteca, na comunidade ou para os projetos, porque o contexto é um fato determinante e modificador das concepções prévias das quais nos aproximamos para a formação de leitores. A seleção requer uma reflexão preliminar que envolva as condições dos beneficiários e seus contextos.

Os programas e projetos de promoção de leitura devem sustentar-se em necessidades verdadeiras. As fontes são extensas e, minimamente, se encontram respostas originais, tanto nos livros de informação como na tradição oral ou na literatura. A tradição oral nos leva até as nossas raízes e nos permite ser partícipes da existência em coletividade. Soma-se a isso, também, o extenso espaço dado aos contos de fadas, que permite iniciar as crianças na palavra oral. A literatura também é um recurso inestimável, pois se configura como elemento central da imaginação que, como já dissemos, contribui para transformar a experiência em conhecimento. Hoje, existem as propostas digitais, que incluem não só os e-books, como os blogs, videogames, entre outros, e que podem se configurar como ferramentas de uso que ampliam o espectro do trabalho de promoção, por um lado, e por outro, demandam pesquisas sobre esses novos meios.

No que se refere à flexibilização e adequação ao contexto e aos beneficiários desses projetos, devem ser situados os espaços leitores: os tradicionais sistemas de biblioteca, as bibliotecas populares e comunitárias, as salas de leitura, os ambientes leitores próximos das pessoas. Em suma, aqueles espaços onde a leitura esteja próxima das pessoas e se configure segundo as necessidades reais das comunidades a quem se destinam.

Como vimos, a leitura no mundo contemporâneo constitui uma experiência pessoal e social, nunca uniforme, em que intervêm diferentes fatores. Estes variam de acordo com o processo integral e podemos sintetizá-los em um círculo contínuo de modos de leitura.

Um círculo onde entram em jogo:

  • A oralidade;
  • A leitura do mundo, a leitura do gesto, a leitura da imagem, a leitura do texto escrito;
  • A leitura em voz alta e silenciosa;
  • A leitura estética e extratextual;
  • A leitura intensiva e extensiva;
  • A leitura fragmentada.

Nesses modos de leitura entram em jogo também os contextos, as tradições culturais, o multiculturalismo e os formatos de leitura que impulsionam novas formas de aproximação entre a escrita e a imagem.

O contexto em que se situam os leitores, sua experiência pessoal e social, a intenção que predetermina qualquer ato de leitura e os diferentes formatos de leitura condicionam as práticas leitoras, gerando diferentes situações e modos de leitura. Definir e posicionar essas situações e modos de leitura constitui elemento vital que se faz presente no momento de abordar o trabalho de promoção de leitura em diferentes âmbitos. São aspectos fundamentais para definir a formulação de projetos, o cronograma e o sentido das ações, as últimas estratégias a desenvolver e sua sequência.

Maria Beatriz

IV O promotor e os sistemas em que se dá as práticas da promoção de leitura

Lemos para nos informar, para formar, para nos entreter ou, ainda, para resolver os assuntos mais sensíveis da vida cotidiana. A informação é uma condição básica para a vida em sociedade e a leitura nos capacita a interiorizar os elementos fundamentais da própria cultura, transmitida de geração a geração e, por outro lado, a poder relacionar as condições particulares daquilo que nos convoca acionar em um momento específico.

Todas essas necessidades propiciam a abordagem da promoção da leitura por meio de diferentes esferas, que se inscrevem em um conjunto de sistemas sociais. A escola, a biblioteca e a família são consideradas os agentes tradicionais e convencionais da promoção da leitura. Esses agentes fazem da prática social da leitura uma rede sistêmica, que deveria estar articulada, mas que, muitas vezes, não está. Essa rede sistêmica está de acordo com o sistema político, educativo-comunicacional, familiar e comunitário. O promotor deve estar apto a visualizar esta complexa estrutura, porque seu trabalho se ativa dentro destes sistemas.

  • No sistema político, a prática da promoção da leitura tem lugar através da formulação de planos nacionais de leitura que os Estados inserem em suas políticas públicas. Atribuem-se a esse sistema o subsistema escolar e bibliotecário.
  • O sistema comunicacional-educativo promove os valores culturais tradicionais e atuais ao resgatar os valores tradicionais e difundi-los a partir de um amplo espectro público e privado.
  • Os sistemas comunitários, por sua vez, constituem um espaço natural de encontro com a cultura e configura o lugar para levar à prática as funções culturais, políticas e educativas da promoção da leitura.
  • O sistema familiar que, embora em âmbito menor, constitui uma rede fundamental de transmissão cultural, com as debilidades que essa instituição adquire em nossos países e contextos.

As funções e os objetivos da promoção da leitura estão alinhados com um ou vários desses sistemas. Nele se dá a prática dos atores que dinamizam o processo de formação de leitores. É importante considerar o momento de formular e executar projetos que envolvam a formação de leitores.

As ações de promoção da leitura na sociedade são assumidas por instituições privadas e públicas. Para alcançar os objetivos, a prática deve estar em rede, de forma que Estado e sociedade civil se articulem nesse sentido.

Tanto as ações de âmbito público e privado apontam para a variedade das abordagens que, se não constituem realmente uma aposta da sociedade em seu conjunto, não se faz efetiva, descaracterizando os resultados das ações.

V. Promotor de leitura: eixo da promoção

Repetimos muitas vezes que a promoção da leitura se faz afetiva, efetiva e reflexiva com a ação de um promotor. O promotor é quem pesquisa sobre livros e leitura e divulga os resultados de seu estudo, além de promover discussão e análise. Promotores formam mediadores entre textos, sua utilização e o gosto por lê-los. Assim, são promotores os bibliotecários, os livreiros, os editores, autores ilustradores e os críticos, aqueles que, com um trabalho fundamentado e sistematizado, incentivam a leitura com o objetivo final de formar leitores.

Consideramos, então que a promoção da leitura supõe um trabalho permanente, que pretende atender a permanência do processo leitor. A promoção da leitura supera o circunstancial e exige acompanhamento constante que perpassa a ideia de sessões de animação contínua e implica a definição de objetivos e o planejamento de estratégias, a avaliação permanente das ações, a volta permanente aos objetivos, para reafirmá-los, para ajustá-los à realidade, para gerar novas estratégias. Nossa prática de promoção se move em espiral e se realiza em “contexto”, pois se origina de necessidades verdadeiras e procura constantemente respostas no ambiente, em todos os seus atores, retroalimentando-se e enriquecendo-se com elas.

É nessa ação sistemática que subjaz a perspectiva da promoção da leitura, o eixo está no promotor de leitura, que se transforma no dinamizador da relação entre o leitor em formação e os diferentes formatos de leitura. Obviamente, a promoção da leitura se diversifica em diferentes âmbitos e essa multiplicação do modo de fazer pressupõe a flexibilização da abordagem e da ação, em função dos diferentes públicos e contextos.

O promotor, então, tem que ser capaz de monitorar os diferentes âmbitos da promoção para levar adiante se trabalho. Ser leitor e conhecedor de seu ambiente são as primeiras condições do promotor porque sem elas é muito difícil que se transmita o gosto por ler e alcançar os objetivos traçados em qualquer projeto deste tipo; não se pode esquecer que formato e adequação a um contexto adquirem especial importância no processo de aprendizagem social que redimensiona os processos de aprendizagem social, que redimensiona os processos de aprendizagem condicionantes, clássicos ou operantes.

Conclusão

Como vimos, o universo da promoção da leitura se redimensiona com diversos trabalhos, que convocam diferentes propostas, formas de abordar a aproximação com os livros, diferentes espaços e tempos de leitura. Um trabalho que propõe um requerimento comum: a inter-relação de um mediador leitor com um leitor em formação.

Ressalte-se que assumimos a promoção da leitura ancorada na sistematização de ações com um objetivo claro: transformar a visão reducionista, que concebe a leitura como instrumento para dirigir-se ao trabalhoso gosto por ler, pesquisar e vislumbrar novas realidades para a vida.

Promover leitura acarreta um conjunto de ações que, articuladas, fazem possível o encontro do leitor iniciante com textos e formatos em que cabem a palavra e a imagem, a escrita e o amplo espectro do virtual. Destaque-se que essas ações necessitam, para a sua execução, de profissionais capazes de transmitir o saber e o sabor da leitura como leitores, eles mesmos, do mundo e da palavra que o designa.

O promotor deverá se situar em torno do desafio e da urgência de uma sociedade diversificada com profundos desafios sociais, e um contexto que nos leva a reconhecer as diferenças e que, com urgência, exige cidadãos formados para que a leitura se transforme em um caminho de construção.

“Propiciar uma visão sociocultural sobre as práticas de leitura não significa meramente incorporar a maneira de celebração da diversidade e do dado contextual em que essa prática se produz. Trata-se de colocar em prática estratégias de leitura em que seja possível recuperar a voz dos leitores como perspectiva a partir da qual se observa o processo de construção de significado.” (Bombini)

Levar em consideração essa condição sociocultural e particular da leitura deve ser o ponto de partida para gerar um conjunto de estratégias, que articuladas promovam o processo de conexão entre esse leitor e “a construção de significado”.

Há que se insistir no compromisso com a realidade: quem são nossos beneficiários, qual sua situação, quais suas carências e inquietações, como podemos ajudá-los a ter ferramentas para que possam solucionar sua problemática, como podemos “seduzi-los” para que se apaixonem e se transformem – eles mesmos – nos “portadores do fogo”.

Atualmente o exercício democrático exige leitores capazes de abrir as comportas da reflexão sobre o próprio e o alheio, de fazer do diálogo e da participação um modo de fazer cotidiano e substituir as respostas por interrogações. Em nosso trabalho, concluímos que a leitura nos ajuda a criar espaços para o desenvolvimento, a construção e a transformação individual e social porque a imaginação permite projetar a vastidão de nossa condição humana e estabelece pontes com essa realidade em que estamos imersos. Essa constatação nos obriga a seguir adiante e redimensionar o trabalho em rede.

Não estamos no princípio de um modo de fazer. Temos um caminho percorrido com o trabalho de instituições que apostou na leitura e em sua promoção, na presença de uma literatura com nome próprio, em que existem várias gerações de escritores e ilustradores, que têm um lugar e um reconhecimento dentro do panorama da literatura infantil e juvenil internacional, com a qual mantêm um diálogo crítico. Paralelo a isso, a um grupo de especialistas foi dada a tarefa de alinhavar uma aproximação crítica da leitura dentro e fora do âmbito das escolas e bibliotecas. Estamos falando de pensadores, como, entre outros, Paulo Freire, Emilia Ferreiro, Delia Lerner, Graciela Montes e María Eugenia Dubois, que junto com boa parte dos autores pesquisaram e chancelaram um caminho sobre os livros e a leitura. Revisitemos suas pesquisas, voltemos a lê-los, sigamos suas rotas para que possamos redimensionar o papel do promotor de leitura.1* Texto apresentado no Seminário Conversas ao Pé da Página 2011 – A Formação de mediadores, em 19 de abril de 2011.

Tradução Thais Albieri


Imagem: Foto do Conversas ao Pé da Página, público de mediadores.


Referências Bibliográficas

Gustavo Bombini. “La lectura como política pública”. In: Revista Iberoamericana de Educación, nº 46, 2008.

Emilia Ferreiro. Pasado y presente de los verbos leer y escribir. México: Fondo de Cultura Económica, 2001.

M. Miras. “La escritura reflexiva. Aprender a escribir y aprender acerca de lo que se escribe”. Em: Infancia y Aprendizaje, 89, 65-78.

David Olson. El mundo sobre el papel. Barcelona: Gedisa, 1998.

Graciela Montes. “Espacio social de la lectura”. Em: Antología 1/ASOLECTURA. Asociación Colombiana de lectura y escritura. Silvia Castrillón (org.). Colombia: Bogotá, 2ª ed., 2007.

Boris Muñoz. Entrevista com Robert Darnton. Em: Revista El Malpensante. Colômbia: Bogotá, 2010.

Compartilhe

Post Author

Autor

  • María Beatriz Medina

    Nasceu na Venezuela. É formada em letras, autora, mediadora, pesquisadora na área de leitura y literatura infantil, professora, e consultora. Atualmente participa da Comissão Executiva do Banco del Libro, é presidente da filial venezuelana do IBBY e membro do Conselho de Sinergia, uma rede de associações da sociedade civil venezuelana. Membro do Comité Consultivo da Revista Emília. Foi membro do júri do Premio Andersen em 2016 e 2018.

Artigos Relacionados

Quando a história é outra

Sarau como experiência poética

,

Livros, remédios da alma

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *