Gianni Rodari, um defensor da vida – 2

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Sua obra literária

O fato de que Rodari tenha desembocado na literatura para crianças a partir do jornalismo e não da pedagogia incide direta e favoravelmente em sua obra. Seus contos, novelas e poemas não são apenas a aplicação de sua própria poética criativa, mas estão muito comprometidos com os elementos mais populares da cultura italiana. Seus personagens estão inspirados no povo, na gente comum criando uma picaresca cheia de humor crítico.

Gianni Rodari

“A amplitude de seus interesses e argumentos, o conhecimento dos problemas dos cidadãos, suas inquietudes culturais, terão uma incidência importante em seus livros”.
(Revista CLIJ, No. 36).

E provavelmente neste ponto esteja uma das chaves para entender porque a obra de Rodari não permanece na fantasia pura e resulta profundamente transgressora e revolucionária. E como bem afirma Marc Soriano, o fantástico de Rodari não é gratuito: “Obras comprometidas, frequentemente militantes, que se esforçam por desmitificar os ídolos da sociedade de consumo, mas que ao mesmo tempo, se caracterizam por uma fantasia e por uma invenção perpétuas”.

E é talvez nesta fusão de realidade e fantasia onde resida um dos aspectos mais característicos e importantes de sua produção literária. Não o olhemos somente como uma acertada aplicação de sua tese pedagógica, mas sim como um aporte inovador para a estética da literatura infantil.

Ilustração de Javier Zabala

Dentro do âmbito da literatura para as crianças se abusou muito do conceito da fantasia. A fantasia infantil foi assimilada como uma invenção sem limites, alheia à realidade, um fantasiar gratuitamente, uma maneira de evadir-se da realidade, evidenciando não somente um desconhecimento da capacidade libertadora do fantástico, mas demonstrando uma subvalorização e um desconhecimento da função que a formação do imaginário cumpre na criança.

A obra de Rodari não somente está longe de um conceito estereotipado do fantástico, como consegue realmente demonstrar para nós a íntima imbricação que existe entre realidade e fantasia; como o fantástico desvela aspectos ocultos da realidade outorgando-lhe – em seu caso com ênfase muito maior – uma função libertadora e transformadora.

Jackeline Held em um minucioso estudo sobre as crianças e a literatura fantástica nos demonstra como a melhor literatura fantástica para crianças está necessariamente ancorada na realidade: quer seja a realidade emocional, psicológica, quer seja a realidade social da criança, e como sua função é desvelar aspectos ocultos dessa mesma realidade de que surge, de tal maneira que torne visível o invisível, e que alcance produzir uma transformação no leitor:

“O paradoxo do fantástico em particular é o de dar vida ao que não era visível nem parecia existir, mas em que cada um reconhece, a longo ou a curto prazo, o que devia vir a luz. Contradição do fantástico que nos remete sem cessar, sutil e agudamente, do subjetivo ao universal”
(Held, 1985, pag.22)

E isto é precisamente o que ocorre nas obras de Rodari, naquelas de corte fantástico, que são a maioria.

Entretanto, o manejo do fantástico varia em suas obras. Existem aquelas nas quais o real é o contexto permanente em que se desenvolve a história, e o fantástico entra de maneira natural para formar parte dessa realidade, quer seja como uma qualidade própria da capacidade imaginativa dos personagens ou através da reivindicação simbólica do jogo. É o caso de Las aventuras de Tonico o invisível, de Viva Samponia e de Las aventuras de los “3B”.

Nas três obras os personagens são crianças comuns e normais, habitantes de bairros populares, filhos de sapateiros, de porteiros, de mecânicos que levam uma existência normal, sem nenhuma pretensão heroica, e cuja vida se desenvolve entre a casa, o bairro e a escola.

Na primeira, Tonico é uma criança comum e mediana, que como quase todas as crianças, padece dos excessos e rigores da escola e para quem resulta injusto que tenha que resolver um sem número de problemas de matemática e estudar cinco páginas de história, precisamente no dia de seu aniversário. Desta insatisfação e de um profundo e forte desejo por tronar-se invisível para evitar que o professor lhe peça satisfação dos deveres que não fez, consegue que seu desejo se torne realidade. Tonico se faz invisível pela força de seu desejo. Como ocorria em tempos idos, naquela mágica idade da humanidade ou da infância, em que apenas por desejar profundamente algo, tornava-se realidade.

Esta situação de estranhamento desvela aspectos da realidade cotidiana de Tonico que em situações normais não eram vistas, como por exemplo, descobrir que ser invisível não é tão bom, pois não se pode falar com os amigos, não se pode receber um abraço de sua mãe, uma carícia no cabelo, ou inclusive chegar a sentir falta de uma palmada. Também essa situação de invisibilidade permite fazer uma crítica ao mundo adulto através do personagem de sua amiga Paola:

– Só quero ser como os demais” – diz Tonico.
Responde Paola:
– Pois te repreendem porque não voltou para casa, por cem motivos, cada um mais estúpido que o outro, como os adultos fazem sempre. Os adultos se divertem repreendendo os pequenos, é seu passatempo favorito. Eu creio que passam as noites em claro estudando novas formas de atormentá-los.

A criança dentro das situações normais de sua vida cotidiana não tem a possibilidade de protestar ou de expressar o que verdadeiramente está sentindo frente ao mundo em que lhe cabe viver, e é mediante o recurso fantástico de tornar-se invisível que consegue entrar em outra possibilidade do real e avaliar desde outra perspectiva seu entorno. É assim que Tonico, – e por extensão o leitor – desvela as injustiças cometidas pelos adultos para com as crianças, e valoriza o que há de positivo, neste caso as relações afetivas com os amigos e com a família.

Em Viva Sampônia, o recurso utilizado difere pelo fato de construir uma realidade através do jogo próprio das crianças, como é o caso da formação de uma sociedade secreta que tem como sede de reunião uma gruta. Aqui é o tom narrativo e a utilização deliberada de uma linguagem grandiloquente, o que nos permite essa função entre realidade e fantasia, mas expressa através do jogo. Rodari não se limita a contar-nos de maneira habitual as aventuras dos membros dessa sociedade secreta, mas o faz parodiando a linguagem das ciências sociais própria dos manuais escolares e aproveitando para fazer uma crítica a eles:

Sampônia não é uma monarquia com uma infinidade de nomes de reis para guardar na memória, nem uma península com muitos golfos e promontórios para assinalar um a um nos mapas. É simplesmente uma sociedade secreta fundada e composta por cinco meninos romanos de Trullo: Darío, Sandrino, Franco, Livia e Máximo.
(Las aventuras de Tonino el invisible, pag. 53)

Mais adiante diz:

A história de Sampônia é curtíssima e inclusive pode-se dizer que ainda não tem história já que a idade de sua população oscila entre os 8 e os 12 anos. Os sampônicos não tiveram tempo até agora de fazer guerras, conquistar colônias, construir monumentos célebres, traçar estradas, nem desenvolver a indústria nem o comércio. Também no que se refere à literatura tudo está por fazer. Nenhum poeta sampônico escreveu ainda A Divina Comédia.

Ilustração de Javier Zabala

E é através desta utilização específica da linguagem, e da relação que faz com referentes culturais mais amplos, que Rodari consegue dar valor a um simples jogo de crianças, jogo que para eles é tão importante como a vida real. Mas, além disso, no desenvolvimento da história, esse simples jogo termina envolvendo aspectos duros e difíceis da realidade como é a acusação que se fazem uns aos outros do roubo de um dinheiro escondido na gruta e a presença de um estranho, tão criança como eles, mas que precisou sair de sua casa para buscar emprego e poder contribuir com a economia familiar. A realidade social da criança marginalizada se faz presente em um âmbito inicialmente lúdico, que termina por relacionar – como acontece na vida – o real com o imaginário. Neste ponto surge o militante, o político, o defensor dos marginalizados denunciando a situação de muitas crianças a quem o jogo foi negado e que desde muito tenra idade devem resolver problemas vitais que correspondem aos adultos.

De maneira similar está construído o conto Las aventuras de los 3B, uma turma de três moleques de bairro, que se defendem das acusações dos adultos, que os tratam como três patifes, três vadios que, segundo os comentários do bairro, devem fazer suas mães chorar muito. Um deles – Carlo – é quem se encarrega de desmentir esse rumor popular e de explicar as verdadeiras aventuras dos três supostos patifes. São aventuras cheias da ingenuidade e da maldade próprias de crianças de 9 e 10 anos, que tentam montar em uma banda de música com instrumentos feitos com ferro velho – como nas brincadeiras das crianças (É provável que aqui Rodari tenha se lembrado de seus dias de juventude quando quis dedicar-se à música e desistiu depois de exercer por um tempo o ofício de músico de rua). Ou o desafio de superar o medo do escuro entrando nos bueiros da cidade, ou o simulacro que fazem da aparição de um marciano no bairro que termina por ser descoberto por crianças menores. É uma história de bairro, de brincadeiras de meninos do povo, com elementos próprios da picaresca em que a realidade das crianças trabalhadoras se mescla novamente com o espaço do jogo próprio da infância.

Ilustração de Javier Zabala

Outro tratamento do fantástico é o que apresentam livros como La flecha azul, e La Góndola Fantasma, nos quais Rodari se liga diretamente com a tradição oral e popular italiana. Aqui aparecem personagens como La Befana, Polichinela, Arlequim, entre outros, que são resgatados da memória coletiva e atualizados através do humor, da fantasia e da imersão em uma realidade atual.

Nestas obras o tratamento do fantástico está mais próximo do conceito de maravilhoso, exposto por Todorov em sua Introdução à literatura fantástica, na qual os acontecimentos sobrenaturais são apresentados desde o início como naturais. Talvez uma grande parte da literatura fantástica dirigida às crianças possa ser colocada dentro desta categoria. No espaço do maravilhoso é natural que as bruxas voem, que os animais falem, que os objetos inanimados se expressem como seres vivos, e estas realidades são apresentadas desde o início da obra como algo natural.

De modo semelhante, esse tratamento do maravilhoso é característico de muita parte da tradição oral, da fabulística popular em que o elemento mágico é parte constitutiva de uma realidade que não conhece fronteiras entre o pensamento racional e lógico e o pensamento mágico.

/…/ uma frase que define com precisão o sentido do maravilhoso: “Mais além da diversão, da curiosidade, de todas as emoções que os relatos, os contos e as lendas oferecem, mais além da necessidade de distrair-se, de esquecer, de procurar sensações agradáveis e aterradoras, a finalidade da viagem maravilhosa, é a exploração mais total da realidade universal.
(Todorov, citando a Pierre Mabille em Le miroir du merveilleux., pag. 49)

Rodari expõe explicitamente a necessidade de demarcar a sua literatura e em geral a literatura infantil nesta corrente popular a fim de inseri-la na tradição cultural e retirá-la do estreito círculo da pedagogia:

Mas nesses livros (refere-se aos livros escolares do século XIX) pouco a pouco foram sendo introduzidas as fábulas populares. Collodi traduz do Francês os contos de Perrault, e uns anos depois deixa de lado os programas escolares e os editores, dando vida ao seu Pinóquio: o fruto contemporâneo de maior importância da fábula clássica. Em Pinóquio revivem as antigas fábulas toscanas, francesas, as dos irmãos Grimm e as de Andersen. Desde Pinóquio, o livro infantil na Itália não demorou muito a sacudir-se da sombra da escola e a entrar em contato direto com as exigências infantis, com suas fantasias paralelas ao crescimento e com o desejo de aventura dos jovens leitores.” (Ejercicios de Fantasía, 1981, pg. 100).

Nesse mesmo caminho que provém de uma tradição literária próxima das histórias populares, pode situar-se La Flecha azul que é, em minha opinião, uma das obras mais belas de Rodari. Parece uma homenagem a Andersen, sobretudo pela maneira como os objetos inanimados ganham vida e se expressam como se fossem seres de carne e osso.

Neste caso são os brinquedos que estão expostos na vitrine do armazém da Befana1No folclore italiano a Befana é uma senhora idosa que entrega presentes às crianças na noite do dia 5 de janeiro. Transporta-se em vassoura e há quem acredite que a usa para varrer os cômodos por onde passa ao fazer suas entregas. (nota da tradutora)., no qual os pais e mães das crianças compram os presentes para elas. Bonecas de pano, cachorros de corda, ursinhos de pelúcia, marionetes, soldados de chumbo, índios e cowboys, e um trem, a seta azul, com maquinista incluído, fogem da vitrine em busca de Francesco, uma criança pobre que passou dias e noites inteiras com a carinha colada na janela desejando algum desses brinquedos, mas sem nenhuma esperança de conseguir. A compaixão humana (sentimento que também é explorado belamente por Andersen) é a que leva os brinquedos a escapar, vivendo inúmeras aventuras por esse mundo escuro e inóspito dos bueiros da cidade, no qual descobrem com dor e manifestações de ternura uma expressão crua da miséria e a solidão em que vivem as crianças mais despossuídas.

Rodari faz alusão dentro da obra à Befana dos contos, que é a que leva os presentes a todas as crianças sem distinção. Porém, esta Befana é uma Befana moderna e real – embora também se transporte em vassoura – mas que para viver vende os brinquedos aos pais das crianças, situação que faz com que somente possam ter acesso a eles os filhos de quem pode comprar. De novo estamos frente a essa magistral imbricação da realidade com a fantasia. Os personagens humanos, os nomes das ruas, as casas são reais. Os brinquedos animados, próprios do universo fantástico, se humanizam através de seus sentimentos, e compartilham com as crianças mais pobres a dura realidade que lhes toca. De novo a denúncia, o dedo posto na chaga de uma sociedade injusta e crua.

Ilustração de Javier Zabala

Tradução Thais Albieri

Nota

  • 1
    No folclore italiano a Befana é uma senhora idosa que entrega presentes às crianças na noite do dia 5 de janeiro. Transporta-se em vassoura e há quem acredite que a usa para varrer os cômodos por onde passa ao fazer suas entregas. (nota da tradutora).

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  • Beatriz Helena Robledo

    Nasceu na Colômbia. Especialista e pesquisadora nas áreas de literatura infantil e juvenil e leitura. Com mais de 25 anos de experiência na área, é autora de vários livros. Foi subdiretora de leitura e escrita do CERLALC, de 2006 a 2007 e subdiretora da Biblioteca Nacional da Colômbia, de 2008 a 2010. Atualmente é consultora e professora. Membro da Rede de Apoio Emília.

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