[…] as palavras são as que nós quisermos, significado delas tá no nosso coração.
Ondjaki. Quantas madrugadas tem a noite.
A primeira vez que li uma obra do autor angolano Ondjaki foi há dez anos. A leitura de Quantas madrugadas tem a noite – obra que, infelizmente, está esgotada no Brasil – fez eu me apaixonar irremediavelmente pela maneira singular com que o autor trabalha a linguagem. Há algo de poético, inventivo, mas também transgressor na maneira como ele usa a língua portuguesa.
Essa leitura foi tão marcante que, na época, se tornou objeto de pesquisa para uma monografia desenvolvida na especialização em Literatura que eu cursava na época. Por conta disso, investiguei outras obras do autor, assisti a entrevistas, li artigos e dissertações sobre seus romances, contos, livros para crianças e adolescentes. De tudo que li e ouvi, sempre me recordo de uma entrevista ao programa Entrelinhas, da TV Cultura, em 2010, na qual Ondjaki discorre sobre seu fazer literário afirmando: “[…] que o meu tratamento literário seja um tratamento que dê dignidade à situação, porque há coisas que já são indignas. A guerra é indigna, o sofrimento das crianças é indigno… Eu não posso reforçar aquilo que é indigno”.
Ao longo dos anos, cada vez que lia uma nova obra (ou relia uma obra antiga) de Ondjaki, eu me dava conta de que esse tratamento literário permanecia. O que me encanta na obra do autor é a transgressão no ato de apresentar seu país por meio do filtro da dignidade. Sua transgressão se dá por meio da linguagem. As imagens suscitadas pela produção de Ondjaki vão na contramão do que o imaginário Ocidental entende do continente africano, ou seja, renegam a visão exótica, viciada e pré-concebida por meio do olhar e do discurso eurocêntrico.
Um dos livros sobre o qual tenho me debruçado e retornado com frequência é o belíssimo Uma escuridão bonita, escrito por Ondjaki e ilustrado por Antônio Jorge Gonçalves. Gosto muito desse livro que, de cara, já rompe com as expectativas gráficas do leitor. Acredito que ele seja o único em minha biblioteca cujas páginas são pretas e as letras brancas – sabemos que o contrário é o que, geralmente, encontramos nos livros. Porém, o que mais me encanta neste livro é o percurso que o autor faz e que acaba por desconstruir a quase automática relação que se faz entre escuridão e feiura.
Se pensarmos no campo semântico da palavra escuridão, consultando os principais dicionários, brasileiros e portugueses, da nossa língua, veremos que termos como pretume, tristeza, ignorância, sombra, treva, mágoa, dor, falta de nitidez são relacionados aos sentidos figurados, conotativos da palavra. A escuridão é “a natureza daquilo que é negro”, define um dos dicionários consultados, ela está relacionada à ausência de algo. A escuridão é o espaço do medo, do maligno, um espaço em que coisas ruins podem acontecer. Não é preciso ir muito longe para perceber como a palavra escuridão se relaciona com as palavras negro e preto.
Sabemos bem que a linguagem é permeada de preconceitos que o sujeito incorpora, normaliza e utiliza cotidianamente. Há inclusive alguns movimentos em escolas e empresas que visam não apenas a reflexão, mas a substituição de vocabulário racista e de expressões que ajudam a perpetuar preconceitos.
Ponderando e pesquisando sobre esse assunto, me deparei com o livro Metáforas do cotidiano, de Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva, em que ela reflete, entre outras, sobre as metáforas negras.
Em uma sociedade preconceituosa, o negro é visto como ser inferior, primitivo, retardado, perverso, desonesto, tolo, possuidor de maus instintos, sujo, irresponsável, preguiçoso, incapaz, etc. Esses preconceitos tornam-se traços semânticos das palavras preto/negro que vão sendo reproduzidos nas inúmeras metáforas que utilizam essas cor. (PAIVA, 1998, p. 109).
E é aqui que se revela a “boniteza” deste livro de Ondjaki. Uma narrativa singela, em que dois adolescentes estão conversando na varanda de uma casa, em uma noite em que “A luz faltou de repente”. Ondjaki vai tecendo um novo campo semântico para a palavra escuridão, compondo uma narrativa poética que evidencia toda a beleza que existe nela: “o escuro às vezes não é a falta de luz mas a presença de um sonho”; “Nessa escuridão de melodia doce ou silêncio quente”; “cheia de estrelas no céu azul-escuro”; “nessa noite duma bendita, bonita, falta de luz”; “a nossa escuridão fez brotar magias de simplicidade”; “Numa adivinha escura parecia que um beijo tinha espaço para acontecer”.
Ondjaki transforma a escuridão em um momento de aproximação, de confissão, de conforto e intimidade, um momento “sem tom de cor nem distração de forma”. Nesse espaço, as personagens falam de amor, de paz, de beleza. Somente na escuridão acontece aquilo que o narrador-personagem chama de Cinema Bu: quando a luz dos faróis de um carro projeta sombras em uma parede e “A coisa mais bonita do Cinema Bu é que cada um pode encontrar ali as memórias, os sonhos e o futuro que mais deseja.” Na escuridão, há espaço para criar, inventar estórias.
Porquê que inventa estórias? – ela perguntou.
Para a nossa escuridão ficar mais bonita.(ONDJAKI, 2013,104-105)
Vê a beleza? A linguagem literária é aquela que desautomatiza a nossa percepção como leitores, que gera estranhamento, que singulariza as palavras. Dessa forma, Ondjaki insere a palavra escuridão (e consequentemente outras que se relacionam a ela) em um novo contexto, que se afasta daquele usado cotidianamente. A escuridão já não é feia, triste, não está relacionada à ausência, mas sim à beleza, à doçura, à possibilidade, à magia, ao sonho. Ela é o espaço de encontro e de criação, inclusive, do futuro.
Imagem: ilustração de Bárbara Quintino