Democracia para as infâncias e adolescências

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O que as bibliotecas contribuem para a noção de democracia para as infâncias e adolescências? O que significa democracia em termos de inclusão quando falamos de primeiros leitores?1

Democracia para bebês

Os bebês, meu público preferido, com quem passo horas e horas de segunda a sexta, numa intensa convivência humana, lúdica e leitora, são os seres mais enigmáticos quando se trata de leitura, e por muito tempo foram invisíveis nas bibliotecas. Sem entrar em muitos detalhes, poderia dizer que os 80 meninos e meninas de 45 dias a 3 anos, que acompanho todos os anos, tornam-se, nesses poucos três anos compartilhados, excelentes leitores, leitores literários de alto nível, seres metafóricos que fazem da linguagem verbal a sua própria casa perfumada e permanente, que os abriga do magma tumultuoso dos sentidos conflitantes destes tempos.

Democracia para bebês, no plano da leitura, é fazer com que as políticas públicas os registrem como seres famintos da linguagem escrita, de oralidade poética, e forneçam os insumos materiais e humanos necessários para que a situação da leitura, de lecturar2, aconteça.

Nem todas as famílias têm acesso aos livros, já sabemos disso, menos ainda quando o seu filho tem 6 meses e tudo é mais urgente do que ler, “aparentemente”. Por que aponto e coloco entre aspas o aparente?

Os bebês são basicamente seres de interação, e num mundo onde a linguagem oral rareia, onde os adultos estamos migrando para outras formas de interação que não põem em jogo o corpo, a palavra, os gestos, e por isso vamos perdendo certas capacidades de sincronia cara a cara, corpo a corpo, (algo imprescindível nas demandas dos bebês), é fundamental a presença de livros e mediadores que articulem a relação bebê, mãe/pai/avó/professora e livro.

Não sei brincar com meu filho, não sei como falar com ele, não sei falar com ele, não sei falar…

O livro te empresta esse repertório de linguagem e ficção com o qual a conversa começa a se desenvolver. O livro diz por você o que sua linguagem não pode fazer viver espontaneamente, o livro oferece a você um campo de ficção que supera a realidade, e permite que você “aja como uma mãe e não como uma unidade de emergência“, como diz Rachel Cusk em seu livro sobre a experiência de ser mãe.3 Uma unidade de emergência atende às necessidades básicas como comer, dormir, estar limpo, uma mãe humana também atende às necessidades básicas de poesia, linguagem, sonho e brincadeira.

Mães, pais, adultos cuidadores em geral recebemos uma forte demanda filogenética com cada bebê que acompanhamos: produzir o encontro da linguagem, da corporalidade, do sentido humano para aqueles seres que nascem, mesmo que o façam após 9 meses de gestação, imaturos para ser autossuficientes biológica, psicológica e culturalmente.

A consciência humana surge da musicalidade elementar dos ritmos corporais vibratórios e sonoros compartilhados entre a mãe e o bebê, quando ela amamenta, acaricia, embala, fala, acarinha o recém-nascido, diz o biólogo chileno Humberto Maturana. Eu acrescentaria que na contemporaneidade são muitas as figuras que constituem esses elos rítmicos compartilhados, elementares para a consciência de si, para entrar no devir cultural humano compartilhado. Este é o início da longa jornada rumo à intersubjetividade, ou seja, a possibilidade de estar em estados mentais compartilhados com os outros, de encontrar mente com mente, de sintonizar as sensibilidades.

E então vale a pena nos perguntar: o que fariam os bebês sem a interação humana da linguagem? Em 2023, a relação com a oralidade, o olhar, a disponibilidade dos corpos para embalar, pegar no colo torna-se essencial para se pensar as infâncias, porque nestes recursos de interação afetiva se fundamentam muitos processos de construção psíquica, social, simbólica. E não só quando somos bebês, porque a memória inconsciente desse tempo primevo acompanha-nos ao longo da vida.

E, nesse sentido, gostaria de atentar para outro elemento indispensável: o olhar compartilhado. O antropólogo Ragnar Behncke escreve:

A capacidade de conectar o olhar em um referente comum é a chave para a colaboração, pois agir coletivamente requer sintonizar a intenção e a ação com os outros de uma forma muito sofisticada. Nenhum animal tem a parte branca de nossos olhos que evoluiu nos primeiros humanos justamente para nos ajudar a ler a intenção do outro e conectar nossos olhares em um objetivo comum. Da mesma forma, surgem os sinais e os gestos com as mãos que nos ajudam a indicar referências comuns onde sincronizamos nossa atenção, dando lugar a um foco comum onde nos coordenamos para resolver coletivamente um desafio.4

O olhar compartilhado torna-se outro elo essencial no caminho à intersubjetividade. A linguagem é, antes de tudo, um sistema de signos e gestos que nos permitem concentrar-nos no mesmo objeto, situação, espaço. Esse processo não foi fundamental apenas no nível filogenético, mas é o que todos os bebês reproduzem em sua aproximação ao mundo da cultura, da intersubjetividade e da linguagem verbal. E é também o processo que usamos para a leitura compartilhada de livros.

Alejandro Zambra diz em seu último livro, onde conta a história de sua paternidade, atravessada pela literatura:

Antes, quando você estava apenas engatinhando, você me via lendo sozinho e subia no meu colo para se colocar entre o livro e meus olhos, como os gatos, embora tivesses a educação de não arranhar as páginas. Logo, você perdeu essa educação, porque da curiosidade você passou à rebelião: me ver lendo sozinho, em silêncio, começou a se tornar intolerável para você e você me tirava o livro ou rasgava a página. Isto porque a leitura em silêncio parece individualista, avara, murcha. Agora, quando você me pega no ato mesquinho de ler em silêncio, você me pede para ler em voz alta e eu sempre concordo, assim você já conhece frases de Jenny Offill e alguns versos de Idea Vilariño e até dois ou três parágrafos de A Montanha mágica.5

Democracia para bebês, para as infâncias, é conceder um olhar compartilhado. Porque com o olhar compartilhado oferecemos o material que garante o fluxo da psique, a segurança afetiva que torna capaz estar em estados mentais compartilhados, a linguagem que habita o tempo poroso do estar junto, que se transforma do esquivo gatinho que sobe entre as coxas, os braços, o quadril do adulto para se apossar do contato mais íntimo, sem permissão, até o pequeno que se junta ao pai pela voz, nesse hiato mágico entre leitura e significado, quando não é tão importante o que o texto diz, mas sim quem o diz, como o diz e como funciona a máquina musical da linguagem.

Uma dimensão política no olhar compartilhado

Gostaria de pensar numa dimensão política para o olhar compartilhado. Democracia para bebês, meninas e meninos, e suas famílias, é também repensar, discutir, instalar espaços e dispositivos que nos levem ao olhar compartilhado, eixo fundamental da experiência da alteridade e do desenvolvimento de si, essa enorme tarefa que têm pela frente todos os meninos, meninas e jovens.

E as bibliotecas têm muito a fazer nesse sentido. Sempre que nos questionamos sobre os bebês leitores, sobre as infâncias e os seus direitos leitores, estamos pensando não só nos livros mas também nas mediações, na criação de ambientes culturais onde todas as famílias possam encontrar o que falar, como falar, o que ler, e construir um olhar compartilhado. Uma política cultural do olhar compartilhado parece-me uma ideia quase urgente.

E vou contar um pouco mais o porquê. Porque o tempo em que vivemos, esse “mundoambiente”6 como o chama Flávia Costa, não só está inundado de incertezas, como estamos envolvidos em uma mutação acelerada rumo a outros modos de ser, que não podemos mais chamar puramente humanos. Essa mutação inevitável também é inédita, no sentido em que François Jullien entende por inaudito7: aquilo que não pode ser assimilado, e portanto não pode ser integrado, e que só emerge na margem, às escondidas. Estamos nos transformando aceleradamente na direção de outros modos artificiais, sabemos disso, mas ver no próprio momento em que vivemos como certos traços do que somos/éramos vão se esvaindo é muito complexo, por isso tantas coisas se tornam inauditas, mas não menos dolorosas.

Estar na intersubjetividade parece continuar sendo uma condição de felicidade, estados mentais compartilhados, olhares compartilhados e, mais uma vez, os livros e os espaços culturais potencializam essas formas que nos escapam na relação com os dispositivos eletrônicos. As máquinas não te exigem nenhuma sintonia, não te olham, não envolvem estados subjetivos; e nem se oferecem para o contato, nem para a errância poética entre as almas. Quando as infâncias e os jovens completam sua vida cotidiana com mais tempo de relação com os aparelhos tecnológicos do que humana, a construção da sincronia se modifica, pois só aprendemos a sincronizar na interação com outros corpos sensíveis.

Um menino ou uma menina com um livro estão sempre em estados intersubjetivos: primeiro porque o próprio livro, seus personagens, sua demiurgia são o outro com o que o leitor ou a leitora conversa; com um livro na mão há sempre intersubjetividade. Se o livro também traz a garantia de um colo, de um olhar humano cara a cara, de duas psiques construindo significados ao mesmo tempo sobre o mesmo objeto, uma mesma história, ganha espaço o acesso democrático a viver estados humanos vivos de contato.

Eu penso muito sobre essas coisas, estou pesquisando as mutações nos bebês a partir do lugar da inteligência artificial em nossas vidas, estou quase obsessivamente tentando ver onde o humano acontece hoje, o que acontece quando não acontece, como reagem a alma humana infantil e a alma adulta à mutação.

E também penso, quase obsessivamente, em como gerar potência criativa sem substituir o que se foi; não pretendo restaurar as sonhadas formas de estar juntos, nem no bebê, nem na leitura, nem na vida em geral, sei que não é possível. E me pergunto o tempo todo quem são os meninos e as meninas hoje, quem são os jovens, o que significa democratizar espaços de leitura ou experiências artísticas para eles.

Aprofundando essa busca, gostaria de marcar um contraponto entre a sociedade do controle e a sociedade da interação humana, e pensar nos discursos escolares do controle no ensino da língua e da literatura. Ainda encontramos muitas experiências escolares em que a literatura, alheia a qualquer espartilho, se torna uma versão caricatural de tantas outras coisas que não lhe dizem respeito, por exemplo: ensinar educação sexual ou transmitir ensinamentos sobre as emoções que deveríamos controlar e aquelas que deveríamos experimentar. Hoje, a meu ver, a escola ainda tem uma dívida enorme com a arte, uma ausência tempo-espacial para a experiência literária, para a experiência artística em geral. E isso estreita o espaço democrático para as infâncias e juventudes. Porque sabemos que não se trata apenas de disponibilizar livros, isso é enorme e extremamente valioso, mas não é só, todos nós aqui sabemos que a mediação liberta ou oprime, e também pode exercer nuances intermediárias. Mas aquela mediação que busca unificar e direcionar o sentido da leitura sem dúvidas mata a interação humana, porque a interação é entre, um entre dois, uma escuta, um fluxo que nunca sabemos para onde nos leva, qual é o seu caminho de experiência.

As bibliotecas, a interação humana e poética, os jovens

A literatura como espaço de interação humana, com o texto e com os outros: Ir uma vez por semana à biblioteca da escola é uma experiência literária? De quanta literatura meninos, meninas e jovens precisam hoje?

O que faz a literatura diante do controle, e diante da ruptura de sentidos própria da mutação e do consequente estranhamento? Interessa-me muito pensar a figura do estrangeiro em geral, tanto na vida política (e as migrações dos últimos anos têm-nos desafiado enormemente nesse sentido) como na vida artística e social.

Trago uma citação de Cristina Peri Rossi, que gosto muito, em seu livro La nave de los locos:

Estrangeiro. Ex. Estranhamento. Fora das entranhas da terra. Desentranhado: parido de novo. Não afligirás o estrangeiro. Vocês. Vocês. Vocês. Aqueles que não são. Vocês sabem. Nós começamos a saber. Como se acha. Como. A alma do estrangeiro. Do estranho. Do introduzido. Do intruso. Do fugido. Do vagabundo. Do errante. Alguém sabia? Alguém, porventura, sabia como se encontrava a alma do estrangeiro? Doía a alma do estrangeiro? Estava ressentida? O estrangeiro tinha alma?8

Muitas vezes os jovens são estrangeiros nas vidas, nos projetos, nas cosmovisões dos adultos. Insisto na escola, emocionada estes dias com muitos relatos de professores, de meninos e meninas, de famílias que me fazem pensar na falta de lugar, no quanto é difícil a gente ter liberdade criativa nessa interação com eles.

Em contraste, um fotógrafo muito querido começou a dar aulas de fotografia para adolescentes em um instituto público de arte na cidade de Buenos Aires. Está fascinado. Na volta da primeira aula, pergunto como foi e ele diz que não sabe sintetizar, mas que está fascinado, que os adolescentes falam tão lindo, que têm ritmos serenos, que sente que ali poderá realmente ter uma experiência artística, porque o que importa é isso: a experiência, não o resultado. Pergunto se tem mais meninas ou meninos, e responde que não sabe, que não sabe se são meninas ou meninos, que não sabe pela forma como se vestem, pelo que dizem, por todo o mundo estético que os rodeia. Ai, me sinto tão retrógrada com a minha pergunta binária, que fiz porque me interessa investigar o lugar da mulher na arte e o feminismo que não é retrógrado, mas minha pergunta é antiga, fora do tempo…

Néstor García Canclini diz: Um mundo acaba não só quando as respostas devem ser arquivadas, mas também quando as perguntas que as originaram perdem o sentido.9

Nós, todos nós, somos estrangeiros em um mundo que se transforma e com o qual ainda não conseguimos construir muitas conexões significativas. O sentido provisório das coisas está mais em primeiro plano do que nunca.

Porém, existe a literatura, que funciona como balões de sentido que permanecem alheios às flutuações da incerteza, que em sua natureza metafórica permitem a sobrevivência do onírico, do simbólico, daquilo que pode sempre ser capaz de abrigar a alma, mesmo a do estrangeiro; aquilo que nos leva de volta à sincronia e à intersubjetividade.

Precisamos de experiência artística mais do que nunca. A arte é o lugar do estranhamento (estranho-estrangeiro), ali onde as coisas do mundo deslocam suas funções. É também o lugar do “inútil”, ou seja, aquilo que permite a nós, seres humanos, livrar-nos da tirania da produção e construir o que é nosso. Fazemos arte por prazer, por necessidade, por curiosidade, “por dúvidas da memória” como diria Canclini, também como questionamento das instituições e cânones do real, e por que não? Como forma de sustentar a atração pelos outros, como um convite à interrogação, como uma esperança de vínculo e olhar compartilhado.

E por que não pensar então nas bibliotecas como uma proteção mental contra a fragmentação e a dificuldade de estar com os outros nestes tempos? Por que não pensar nas bibliotecas como um lugar para estar junto, infâncias, adolescências e adultos? Para fazer arte, sonhar, sem substituir, investigar, para construir uma nova disponibilidade? Ou para treinar o que fazer com a parte branca dos nossos olhos.

Volto a Alejandro Zambra:

A infância sobrevive em nós como um enigma intermitente, geralmente apenas testemunhado em álbuns de fotos, bichos de pelúcia transitórios ou punhados de pedrinhas recolhidas numa tarde de praia. Ninguém escreveu a nossa infância, e talvez lamentemos essa ausência de sinais, mas também, de alguma forma, a agradecemos, porque nos permite respirar, mudar, rebelar-nos.

In – fân – cia – de – mo – cra – cia – es – cri – tu – ras – lin – gua – gem – co – lo – zo – dis – po – ni – bi – li – da – de – mis – te – rio – mi – ra – das – escu – ta.

Tradução: Dolores Prades

Imagem: Pawel Kuczynski.

Notas

  1. Este texto foi inicialmente uma apresentação compartilhada na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, em 5 de maio de 2023. A Comissão Nacional de Bibliotecas Populares (CONABIP) me convidou para participar do Encontro Nacional de Bibliotecas Populares, sob o lema “Argentina lê democracia, 40 anos”. O pedido dessa intervenção foi uma série de reflexões sobre democracia para crianças e adolescentes. ↩︎
  2. López, María Emilia. Lecturar. Publicado Na Revista Emília em 13 de março de 2022. Disponível em: <https://emilia.org.br/leiturar/>. ↩︎
  3. Cusk, Raquel. 2023. Un trabajo para toda la vida. Sobre la experiencia de ser madre. Barcelona: Libros del asteriode. ↩︎
  4. Behncke, Ragnar. 2022. La evolución del aprendizaje. Fundamentos biológicos para reimaginar la escuela. Chile: Fundación La fuente. ↩︎
  5. Zambra, Alejandro. 2023. Literatura infantil. Barcelona: Anagrama. ↩︎
  6. Costa, Flavia. 2021. Tecnoceno. Algoritmos, biohackers y nuevas formas de vida. Buenos Aires: Taurus. ↩︎
  7. Jullien, Francoise. 2023. Lo inaudito. Buenos Aires: El cuenco de plata. ↩︎
  8. Peri Rossi, Cristina. 2022. La nave de los locos. Buenos Aires: Menos cuarto ediciones. ↩︎
  9. García Canclini, Néstor. 2015. La sociedad sin relato. Antropología y estética de la inminencia. Buenos Aires: Katz ↩︎

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  • Maria Emilia Lopes

    Especialista em educação e leitura na primeira infância. Trabalhou como assessora de programas de educação inicial no México, Brasil e Colômbia e é diretora do Jardim Materno da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (Prêmio Vencedor 2014 do Programa de Leitura e Biblioteca). É diretora da “Colección del melón-libros que piensam la infancia” (Editorial Lugar) e autora de Un pájaro de aire. La formación de los bibliotecarios y la lectura en la primera infância (no prelo) e Um mundo aberto. Cultura e primeira infância, Selo Emília, 2018.

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