Ugh! Ou, no início uma menina contou…

A presença de meninas protagonistas de contos está na origem da literatura infantil: primeiro foi Chapeuzinho Vermelho, ela nos levou para a floresta. Depois, Bela enfrentou a Fera para salvar seu pai e Gretel empurrou a bruxa e libertou seu irmão. Mais tarde, uma pequena sereia (“uma menina estranha, silenciosa e pensativa”, escreveu Andersen) renunciou ao mar para ir em direção ao seu desejo… Já no texto Grandes heroínas imaginadas por escritores ousados, de alguns anos atrás, tentei traçar uma breve genealogia de personagens meninas ou jovens (muitas delas ainda influenciadas por estereótipos de gênero e, embora narradas por mulheres, eram escritas por homens) e depois uma genealogia de escritoras que começaram a contar outra história da literatura infantil. Nesse texto e em um próximo pretendo abordar outros livros que se somam ao interesse hoje em pauta e mais plural de representar meninas e menines. Embora a dívida para com a infância dos povos afrodescendentes e indígenas continue a ser grande.

Agora as pessoas vivem em casas grandes, com portas e janelas, e pátios pavimentados, e portais com colunas: mas há muitos milhares de anos os homens não viviam assim, nem existiam países de sessenta milhões de habitantes, como hoje. Naquela época não existiam livros que contassem as coisas: as pedras, os ossos, as conchas, os instrumentos de trabalho são o que mostram como os homens viviam antes. É o que se chama de “idade da pedra”, quando os homens viviam quase nus, ou vestidos com peles, lutando com as feras da floresta, escondidos em cavernas nas montanhas (…) onde as feras não conseguiam subir, ou abriam um buraco no chão e o cobriam a entrada com uma porta feita de galhos de árvores; ou faziam um telhado com galhos onde a rocha parecia se abrir em duas; ou enfiavam três varas pontudas no chão e as cobriam com as peles dos animais que caçavam: os animais eram então grandes como montanhas.

É assim que José Martí[1] começa A história do homem. Contada por suas casas, um ensaio dirigido à infância publicado em agosto de 1889 no segundo número de sua revista La edad de Oro [A Idade de Ouro], uma das obras fundadoras da literatura infantojuvenil latino-americana.

É sempre surpreendente voltar a essa publicação e ver quantas bases Martí lançou para a literatura infantil e juvenil que continua a ser explorada até hoje. Seu texto poderia servir de prólogo a Ugh! Um relato do Pleistoceno, o livro mais recente de Rafael Yockteng e Jairo Buitrago, recém publicado no Brasil, pelo Selo Emília e a Solisluna Editora. Mas, Ugh! Já tem seu próprio prólogo: uma debandada de bisões gigantes em uma paisagem pré-histórica e uma tribo de pequenos hominídeos caçando. Quem ganhará? Aparentemente, o bisão, que está prestes a esmagar o caçador, até que a capa se abre e aparece o único som escrito nesta história gráfica silenciosa: Ugh!

O recurso é cinematográfico, ao invés de prólogo, poderíamos chamá-lo de teaser ou sequência inicial. O que virá a seguir é o dia a dia daquela tribo, enfrentando a megafauna e as intempéries climáticas. Os dias podem ser muito diferentes, mas estão narrativamente condensados ​​na estrutura linear e cronológica de um dia. Termina com o regresso à caverna, à toca, e ali, sem medo de ser devorada e iluminada pelo fogo, uma menina, muito observadora, começará a desenhar na parede rochosa o relato das façanhas que acabamos de ler.

Sabemos que se trata de uma menina porque isso é contado em um epílogo escrito, antes dos créditos finais, com uma função mais estética do que narrativa: o texto reitera o que acabamos de ver, mas o faz poeticamente, com palavras que iluminam a caverna em nossa mente.

A caverna foi diferente a partir de então. Ela soube como se aproximas da pedra, do coração da pedra. Fazer marcas indeléveis, acariciar sua superfície. Ela soube, antes de todos, que os pigmentos na rocha eram como as pegadas deixadas pelas manadas . Fez a cabeça do bisão redonda, elevou seu braço alto para se aproximar da grandeza do mamute, aperfeiçoou os rostos, o medo e a ferocidade /…/ Usou minerais triturados, pétalas, grãos de pólen e frutas vermelhas. Deixou que a pedra absorvesse, que a caverna se transformasse numa catedral. Observou a luz, se perdeu na luz, desenhou a luz /…/.

É o mesmo efeito surpresa que acontece quando lemos um conto e apenas no final é mostrada uma ilustração. Este epílogo ilustra a última sequência e a projeta ​​com uma imagem do futuro: nós diz que essa menina se tornará a líder do clã. Uma nova narrativa, com raízes femininas, vai se desenhando no imaginário das leitoras e dos leitores. O livro álbum, que poderia contar a história do primeiro álbum da humanidade, também se vincula à reivindicação feminista de reconhecer as mulheres como narradoras primeiras, algo que Marina Colasanti expôs a respeito dos contos de fadas e que a poetisa Alicia García Bergua imaginou em seu poema “Trinta mil anos atrás” (outro prólogo perfeito para Ugh!).

O efeito de voltar a ler, agora com palavras, o que acabamos de ler apenas com as imagens, além de agradável, nos lembra o poder das palavras de estabelecer sentidos (e gêneros!, antes de que nos dissessem que a menina, era menine) e como algumas palavras são suficientes para dizer tantas imagens. Mais uma vez, estamos diante de uma problematização  da relação texto-imagem num livro, característico do trabalho editorial de María Osório, Publisher da Babel livros e responsável editorial por este livro.

A travessia em grafite que empreendemos é visualmente deslumbrante. Sutilmente homenageia o cinema ficcional, caricatural, “do cavernícola”, que desde a década de 1910 quis contar aventuras pré-históricas que misturavam humanos, primatas com garrotes e dinossauros, como aquele curta-metragem de 1914:  Brute force [A Vida do Homem Primitivo] de D.W. Griffith. Porém o tom de Ugh! é mais documental, mais próximo de A Guerra do Fogo de Jean-Jacques Annaud de 1981, sem, claro, ser um álbum informativo, pois utiliza apenas os seus recursos.

Seus autores não são dois paleontólogos, embora o nível de detalhe das ilustrações de Yockteng lhe valesse um Doutorado Honoris Causa nessa ciência. Neste ponto, podemos afirmar que Yockteng e Buitrago são a dupla mais prolífica e atual criadora de livros álbuns de ficção na América Latina. A primeira colaboração foi dirigida também por María Osorio, em 2007 sob o nome de Emiliano[2], álbum estrelado por um menino que pinta nas paredes de seu quarto e tem um dinossauro como amigo imaginário. Esse menino amadureceu. Dele à garota de Ugh! se passaram 15 anos em que se somaram 14 livros juntos (em alguns deles foram mais um trio do que uma dupla, com María).

A obra de Jairo Buitrago, incluindo sua bibliografia sem Yockteng, pode ser lida como um mapa pleno de percursos que conectam personagens e temas. Há uma personagem feminina que se mantem. A garota curiosa de Ugh! parece continuar contando sua história nômade de Caminho a casa, Edições SM (2017); Eloísa e os bichos Editora Pulo do Gato (2013); Dos conejos blancos [Dois coelhos brancos], 2015; Gabriela camina mucho [Gabriela caminha muito] (2016/2021); Al outro lado del jardín [Do outro lado do jardim] (2016); No início viajávamos sozinhas e, sobretudo, no recente Los bisontes [Os bisões], romance curto protagonizado por Liluye, uma adolescente que se conecta com o que pressente ser sua identidade originária e decide ir embora com seu irmão mais velho quando sua avó morre. Isso a levará a um mundo mais primitivo, habitado por um misterioso homem sábio e seu coiote e uns bisões. Uma história emocionante ilustrada por Daniel Blanco Pantoja que também se cruza com O Menino do Hotel à Beira da Estrada.

Com Jairo lembro claramente como Borges se referia a sua própria escrita de ficção como uma reescritura, toda ela, da mesma história. Uma ideia sobre a qual o escritor argentino apresentou variações: “Talvez cada geração esteja escrevendo o mesmo poema, recontando a mesma história, mas com uma pequena e preciosa diferença: de entonação, de voz, só isso”.

Cada história de Jairo Buitrago protagonizada por uma menina propõe uma voz diferente e também um retorno à mesma menina que continua buscando formas de se acomodar e se relacionar com os outros no mundo adulto (principalmente com seu pai). Esta continuidade, estabilidade, também ao lado de Yockteng, oferece às meninas, aos meninos e aos jovens a possibilidade de pensar a própria repetição como uma prática artística e de experimentar a riqueza de contrastes, amplificações, ramificações e multiplicidades entre leituras relacionadas.

Tradução: Dolores Prades


[1] José Martí nasceu em 28 de janeiro de 1853 em Havana, Cuba, e faleceu em 19 de maio de 1895 em combate, na província de Oriente, Cuba. Foi um destacado escritor, poeta e líder político cubano do século XIX, conhecido por sua luta pela independência de Cuba do domínio espanhol. Ele foi um dos fundadores do Partido Revolucionário Cubano e desempenhou um papel crucial na organização da Guerra de Independência Cubana em 1895. Sua obra literária e ativismo político continuam a inspirar gerações, e ele é reverenciado como um herói nacional em Cuba. Martí foi morto em combate aos 42 anos, mas seu legado persiste como um símbolo de coragem e determinação pela liberdade.

[2] Emíliano foi publicado em português pela editora Livros da Matriz, SP:

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  • Adolfo Córdova

    Nasceu em Veracruz, México, em 1983. É jornalista, escritor e promotor de leitura radicado na Cidade de México. Mestre em Livros e Literatura Infantil e Juvenil pela Universidad Autónoma de Barcelona, escreve regularmente no jornal Reforma e em outros meios digitais e impressos, colabora com a Biblioteca Vasconcelos. Membro da Rede de Apoio da Emília. Mantém o blog Linternas y bosques.

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