As pequenas revoluções de Janine Durand e Luciana Gerbovic

Janine Durand e Luciana Gerbovic têm mais de uma década de experiência conduzindo clubes de leitura Brasil afora. Uma parceria que rendeu muitos aprendizados, muitas histórias e a convicção de que o acesso à literatura pode ser transformador. As reflexões sobre essa trajetória chegam agora no livro Clubes de leitura – Uma aposta nas pequenas revoluções, escrito por elas e editado pela parceria entre Selo Emília e Solisluna Editora.

A obra apresenta as concepções centrais de clubes de leitura e formação de leitores sobre as quais o trabalho das autoras se estrutura: a literatura como o fio condutor, o acolhimento, a escuta atenta, livre de preconceitos. Os clubes de leitura são entendidos como rodas de conversas em que todos têm protagonismo, como espaços de abertura irrestrita ao diálogo.

A Revista Emília conversou com as autoras sobre clubes de leitura, critérios de seleção e, claro, sobre o livro. Os principais trechos da entrevista você acompanha a seguir:

Priscilla Brossi – Para começar: o que é para vocês um clube de leitura?

Luciana Gerbovic – Para nós é o diálogo. O livro está no centro, mas a grande questão ali, o que a gente quer promover no clube de leitura é o diálogo. Idealmente, em nossos encontros, falamos muito pouco. Ouvimos mais.

Janine Durand – As pessoas estão no protagonismo. Se a gente pensar, são raros os espaços em que as pessoas se reúnem em círculo e todas têm a oportunidade de falar. E o que cada uma fala – seja a que lê 20 livros no mês ou a que está lendo um no ano – tem a mesma importância. A aposta na pequena revolução está em uma dimensão do artesanal. Eu acho que é artesanal porque cada clube, cada grupo, representa um encontro único. É um processo de formação de leitores artesanal, democrático e horizontal. O livro na centralidade e as pessoas, todas elas protagonistas, afetadas pela literatura, compartilhando as suas impressões do livro.

LG – Nós, mediadoras, não estamos lá para falar sobre o livro mas, sim, para promover o diálogo. O que mais nos move é ouvir a leitura de cada pessoa que participa. Tentar fazer com que todas as pessoas se escutem, que cada uma saia com a leitura das outras pessoas. O importante é promover a escuta.

PB – Agora falemos do livro. Como podemos defini-lo? É uma obra teórica, uma coleção de crônicas, um livro de depoimentos?

JD – Ele espelha o nosso fazer, é um livro dialógico no sentido do não encaixe. Quando damos aula, costumamos dizer que fazemos uma ‘deformação’, ou seja, não queremos botar ninguém em formas. E isso vale aqui também. A gente demorou tanto para achar o jeito de contar em livro tudo que a gente queria! Podemos dizer que tem crônicas, porque as crônicas são inspiradas na realidade. Mas há um componente ficcional, pois ainda que as experiências relatadas tenham se baseado em casos reais, elas não são um relato literal. Tem também todo o atravessamento da teoria, que foi muito inspiradora, da qual a gente foi se apropriando ao longo dos anos. E, claro, nossas conjecturas, o que a gente sentiu a partir da experiência. Desejávamos fazer um livro que dialogasse com muita gente, que fosse acessível.

LG – Acho importante dizer o que não queríamos que o livro fosse: um manual. Ele é o resultado de um processo nosso de formação. A gente foi fazendo e agregando, ouvindo.  E isso está no livro.

JD – Foi um processo profundo, de prática com teoria. Acho que ele reflete também quem somos. Apesar de termos formações distintas, ainda que sejam complementares, acho que nós duas temos um jeito de fazer no mundo que é muito parecido. Buscamos os referenciais teóricos, mas também estamos muito atentas para o que acontece na vida. É a partir da intercorrência que a gente vai refletindo e vai também compondo com os autores que conhecemos. Não temos um método porque é no processo que o caminho vai sendo trilhado.

PB – Vocês abrem o primeiro capítulo com uma pergunta: ”por que literatura?”. Mas, afinal, por que a leitura literária é importante?

LG – Nosso ponto de partida é sempre a literatura. Isso porque é na literatura –  na arte em geral – que a gente consegue juntar o sonho, a fabulação, a criatividade, a piração. A literatura permite o uso da linguagem para aquilo que não é necessariamente preciso, deixando os espaços. Em um livro teórico, um livro jurídico, por exemplo, não pode haver esses espaços. Espera-se formalidade e não ironias ou metáforas. Já a literatura permite isso. Permite que seja mais sobre o leitor, na verdade, do que sobre o escritor. Se desejamos juntar pessoas para ouvir umas às outras, a literatura cria um anteparo. Eu posso falar muito de mim sem falar. Posso me revelar por meio de uma personagem. Posso falar de coisas muito delicadas e profundas da minha vida sem precisar me abrir. Eu me expresso quando falo da leitura que fiz, quando analiso a tal personagem, quando falo se ela mexeu comigo ou não. Quanta intimidade se revela sem que as pessoas precisem falar delas. Acho difícil achar outro campo que permita tudo isso junto que não a literatura, a ficção, a criação poética.

JD – Esse lugar da subjetividade é o lugar das aberturas. E é o lugar da leitura de si e da releitura do mundo. Os atravessamentos só são possíveis em um ambiente não controlado, que abre campo para as frestas, as entrelinhas. Para a emoção, o resgate da memória, do sonho. Espaços em que vamos identificando e nos identificando, nos descobrindo. Dando nome para os nossos sentimentos, dando palavras para as nossas dores, para as nossas alegrias. Só no campo da arte isso é possível.

PB – Na apresentação, Cecilia Bajour menciona que o livro “é uma porta aberta e luminosa para pensar e experimentar formas concretas de transformação”. Como tem sido a condução dos clubes de leitura em tempos tão marcados pelo individualismo, a desconfiança e a polarização?

JD – Neste momento, o clube de leitura é um espaço de vida, de respiro, de mudança da lógica. As pessoas estão enlouquecendo, estão ficando planas. Há muitas certezas e, ao mesmo tempo, pouca riqueza de vida. Paulo Freire bem falou que a gente se liberta em comunhão. Quando a literatura está na centralidade, a humanidade se aprofunda numa leitura, intensifica-se e multiplica-se num encontro entre pessoas. É por isso que os clubes de leitura vêm crescendo. Está faltando essa riqueza de vida, essa experiência de entrar num ambiente não controlado e aquelas conexões gerarem uma pulsação de vida. Para além das releituras das leituras, acho que as pessoas se modificam nesses encontros. O clube de leitura tem um fim em si próprio, não é uma ferramenta, mas é um espaço de cidadania. Eu acho que isso é revolucionário.

LG – Estamos cada vez mais isolados. Houve a pandemia, ainda hoje as pessoas não se encontram nem no trabalho, está cada um no seu canto, e as redes sociais amplificam esse isolamento. Entendemos que clube de leitura não é o lugar para sair com conclusões fechadas, mas sim para aberturas. Desejamos que cada um saia refletindo sobre o que ouviu, sobre o que falou. É um espaço de reflexão individual e coletiva.

PB – Como é que vocês trabalham na seleção das obras tendo em vista essa trajetória leitora que os clubes podem ajudar a consolidar?

LG – O ponto de partida é sempre a literatura, a ficção. Ainda que se opte por uma biografia, por exemplo, vale buscar os elementos de escrita literária daquele texto. Enfim, é preciso pensar nos temas mas pensar também na forma. Como cada grupo é um grupo único, é importante saber sobre as pessoas que vão participar do clube, identificar se há um interesse comum para fazer as escolhas dos livros. E sempre pensar na maior diversidade possível. O ideal é escolher títulos que não deixem os participantes confortáveis, ao contrário: que os façam sair do lugar, que os instigue a pensar em coisas que não costumam pensar, que conversem sobre temas que não costumam conversar. Mas, ao mesmo tempo, pensar como não afastar os leitores. Especialmente em um país como o nosso, onde as pessoas não têm acesso a esse direito e acham que a literatura não é pra elas. Como a gente mostra que a literatura é, sim, para todo mundo? Nós todos somos leitores. Sim, a gente gosta de literatura. Então, pode-se decidir, por exemplo, em ter apenas contos no começo de um clube. Ou só crônicas. Vale fazer essa dosagem caso a caso, avaliando a percepção e receptividade daquele determinado grupo. 

JD – O mediador, a mediadora tem que gostar do livro. Para selecionar, é importante a leitura prévia, identificar o que te mobiliza naquela obra para então instigar as leituras dos outros, as possibilidades de olhares do grupo. Que perguntas eu tenho para fazer que vão possibilitar o diálogo? É bacana o mediador/a ter essa curiosidade.

PB – No livro, há um capítulo especial dedicado ao Remição em Rede, programa de leitura em presídios, nascido em 2017. Vocês contam histórias e efeitos observados nas pessoas quando a literatura entra no cárcere por meio dos clubes de leitura. Poderiam falar sobre ele?

JD – No começo, as histórias de leitura nos presídios estavam um tanto misturadas. Então, resolvemos fazer um capítulo especial, porque realmente é um capítulo à parte. A abordagem, a forma que a gente implementa nos clubes é igual em qualquer lugar, inclusive lá. Mas há uma camada a mais, pois a perspectiva aqui é a arte em contraponto às violências. Como podemos criar uma fresta de humanização durante o tempo que eles estão lendo conosco lá? Achamos importante fazer esse capítulo específico para registrar a história desses clubes de leituras no cárcere.

Minha experiência com mediação de leitura em presídios começa em 2011. Uma trajetória longa que segue até hoje. É um lugar em que a gente olha no olho das pessoas e elas também podem ressignificar a própria humanidade a partir dos clubes de leitura. Isso é muito especial. Minha sensação é de quem tá no cárcere muitas vezes aproveita mais essa oportunidade. O Remição em Rede nos coloca a prova o tempo todo. Quais são os limites da nossa humanidade? Não estamos lá para exercer esse papel de salvadoras, porque não é disso que se trata e sim de uma posição horizontal de solidariedade.

LG – É bem o contrário da ideia de salvadoras. Quando falamos em levar a literatura para o maior número de lugares possíveis, não poderíamos ignorar as pessoas encarceradas. Que sociedade é essa que encarcera tanta gente? Esses clubes de leitura me fazem olhar o humano da maneira mais profunda.

JD – Nessa sociedade em que tudo é tão real, tão cinza, tão violento, quais são as possibilidades que a gente dá para as pessoas terem um campo de afeto, um repertório que ajude a conter, mas também a analisar, a refletir? A arte nos possibilita uma profundeza no outro e em nós mesmos.

Imagem: Sandi Falconer

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  • Priscilla Brossi Gutierre

    Jornalista com experiência em gestão de projetos de comunicação. Especializada no desenvolvimento de estratégias de conteúdo editorial, incluindo planejamento, edição, curadoria e redação, para diferentes formatos e mídias. No Instituto Emília, atua no plano de relacionamento com a imprensa e edita a newsletter mensal. 


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