Parte 2 – Livros políticos e protestos juvenis

Nenhum esquecimento os reúne, 

nenhuma lembrança os separa… 

Esquecidos na grama invernal 

sobre a via pública, 

entre dois longos relatos de bravura 

e sofrimento. 

‘Eu sou a vítima!’. ‘Não, eu sou 

a única vítima!’. Eles não replicaram: 

‘Uma vítima não mata outra. 

E nesta história há um assassino 

e uma vítima’. Eram crianças, 

colhiam a neve dos ciprestes de Cristo 

e brincavam com os anjos porque tinham 

a mesma idade… fugiam da escola 

para escapar da matemática 

e da antiga poesia heroica. Nas barricadas, 

brincavam com os soldados 

o jogo inocente da morte. 

Não lhes diziam: deixem os fuzis 

e abram os caminhos para que a borboleta encontre 

sua mãe perto do amanhecer, 

para que voemos com a borboleta 

para fora dos sonhos, porque os sonhos são estreitos 

para nossas portas. Eram crianças, 

brincavam e inventavam uma história para a rosa vermelha 

sob a neve, atrás de dois longos relatos 

de bravura e sofrimento. 

Depois fugiam com os pequenos anjos 

para um céu límpido.

Mahmud Darwish, “Cadáveres Anônimos”

Nunca antes fui testemunha consciente de uma campanha tão carregada de ódio contra as crianças. No entanto, entre o horror e o asco que sinto, não posso dizer que estou surpresa, pois um dos âmbitos em que o valor potencial das infâncias se manifesta de forma mais evidente em relação à violência é durante a guerra. 

Digo “potencial” intencionalmente, no sentido etimológico de “poder”, ou seja, “capacidade de fazer ou gerar algo”. Afinal, por um lado, uma nação beligerante precisa constantemente de novos soldados, indivíduos com corpos capazes e mentes adaptáveis que, moldados desde cedo, sejam capazes de replicar discursos e atitudes de forma natural; por outro lado, igualmente, uma nação beligerante precisa controlar a população de seus inimigos. Precisa garantir que não surjam novos adversários, que existam apenas indivíduos com corpos e mentes quebrados que, desde cedo, sejam condicionados a se submeter ou simplesmente, a se deixarem morrer. 

Hoje, as crianças palestinas convocam coletivas de imprensa para pedir que não sejam assassinadas e, mesmo assim, “morrem”: executadas, torturadas, por paradas cardíacas (devido à adrenalina liberada a cada ameaça de ataque), de fome, de calor ou de doenças. E muitas crianças palestinas também desejam morrer. Até o momento, mais de 14.500 bebês e crianças foram assassinados pelo exército israelense, e a catástrofe tem sido observada desde o início pela UNICEF, Save the Children International, Médicos sem Fronteiras, e registrada no caso África do Sul vs. Israel por genocídio na Corte Internacional de Justiça. Inclusive, foi reconhecida por membros do setor da literatura infantil e juvenil, como demonstra a “Carta pela solidariedade com a Palestina na Feira do Livro de Bolonha” e a declaração *“Pesquisadores e ativistas pela defesa da infância na Palestina”. No entanto, me pergunto por que há tão poucas ações e um silêncio tão ensurdecedor a respeito disso. 

As pessoas são uma questão central, mas como o tema se reflete no objeto de nosso trabalho? Lembremos que todos os livros, especialmente os infantis, são políticos em maior ou menor medida, precisamente porque fazem parte intrínseca da reafirmação ou da desestabilização do status quo. Graças às entradas de Linternas y Bosques dedicadas ao terrorismo de Estado, conhecemos exemplos bem pontuais na América Latina. No entanto, ainda nos falta explorar livros relacionados à situação na Palestina, criados por pessoas que vivenciam essa realidade diariamente. Nesse sentido, a LAP tem se dedicado a compilar recomendações de livros disponíveis em árabe e inglês para os níveis fundamental e médio. E o que temos traduzido para o espanhol? Essa é uma tarefa que ainda preciso realizar, mas, entre minhas leituras, posso citar breves fragmentos de Roald Dahl.

Não é necessário apresentar Roald Dahl; ele é um dos autores mais queridos da literatura infantil em nível internacional. No entanto, talvez nem todos saibam que ele foi piloto da RAF (Royal Air Force) durante a Segunda Guerra Mundial, tendo combatido na primeira campanha grega e sobrevoado todo o norte da África, chegando até o território palestino, como relata em seu livro Volando solo.

Outro aspecto menos conhecido, e nada agradável de reconhecer, são as acusações de racismo e antissemitismo que pesam sobre seu nome. Sua família já pediu desculpas publicamente em seu nome, pois esses fatos são inegáveis e imperdoáveis. Desde seu papel no domínio de nações como a Tanzânia pelo poder britânico e as alusões a pessoas negras no primeiro rascunho de Charlie e a fábrica de chocolates, até declarações abertamente contrárias ao povo judeu. A questão se torna ainda mais grave ao contextualizarmos suas narrativas, memórias e declarações, pois ele equiparava o judaísmo ao sionismo. E isso, definitivamente, não está correto, porque não são a mesma coisa nem são equivalentes. O judaísmo é o mais antigo sistema de crenças religiosas de caráter abraâmico (anterior ao cristianismo e ao islamismo), enquanto o sionismo é um movimento ultranacionalista com interesses de colonização, fundado no século XIX.

Por que mencionar esse detalhe? Durante uma conversa com Adolfo  Córdova sobre o tema, lembrei do curso que ministrei sobre seus relatos autobiográficos e de um capítulo que me chamou atenção na época, mas que só consegui contextualizar anos depois: “Palestina e Síria”, em Volando solo .

Dahl narra como chegou a Haifa, na Palestina, e se deparou com um pequeno assentamento de refugiados judeus, liderados naquele momento por um homem barbudo de olhos negros. O homem foi cortês, mas desde o início demonstrou uma arrogância e condescendência que irritaram Dahl. É perturbador perceber como, mesmo naquela época, o discurso para colonizar a Palestina já estava articulado:

– Esta terra é sua? – perguntei. 

– Ainda não – respondeu. 

– Quer dizer que pretende comprá-la? 

Ele me olhou por um momento em silêncio. Então disse: 

– Esta terra pertence atualmente a um fazendeiro palestino que nos autorizou a viver aqui. Ele também nos cedeu alguns terrenos para que possamos produzir nosso próprio alimento. 

– E para onde vocês irão depois daqui? – perguntei. – Você e seus órfãos. 

– Não vamos a lugar nenhum – disse sorrindo. – Ficaremos aqui. 

– Então vocês se tornarão todos palestinos – comentei. – Ou talvez já sejam. 

Ele sorriu novamente, provavelmente pela simplicidade das minhas perguntas. 

– Não. Não creio que nos tornaremos palestinos. 

E mais adiante:

– Quer dizer que os judeus não têm pátria? 

– É exatamente isso que quero dizer – respondeu. – Já é hora de termos uma. 

– Mas como vocês vão conseguir um país para vocês no mundo? – perguntei. – Todos já estão ocupados. A Noruega pertence aos noruegueses, a Nicarágua aos nicaraguenses. O mesmo vale para os demais. 

– Veremos – disse o homem, enquanto tomava seu café. 

– Vocês poderiam ficar com a Alemanha – sugeri brilhantemente. – Quando derrotarmos Hitler, a Inglaterra poderia talvez dar a vocês a Alemanha. 

– Não queremos a Alemanha – respondeu. 

– Então, em qual país vocês estão pensando? – perguntei, demonstrando mais ignorância do que nunca. 

– Se você quer algo – disse ele – e se o precisa desesperadamente, sempre pode consegui-lo. – Levantou-se e deu um tapinha nas minhas costas. – Você tem muito a aprender, mas é um bom rapaz. Luta pela liberdade, como eu.

Isso foi em 1941, quatro anos antes do fim da Segunda Guerra Mundial, sete anos antes da concessão britânica e estadunidense de territórios palestinos para a formação de Israel, sete anos antes da Nakba.

Dahl fez declarações lamentáveis que precisam ser lembradas e denunciadas, não há dúvidas quanto a isso. No entanto, é irresponsável classificar todas as suas críticas a Israel como antissemitas, pois inúmeras comunidades judaicas, incluindo comunidades ultra ortodoxas, se posicionaram abertamente contra a política de extermínio sistemático e colonialista de Israel (o que torna a situação mais complexa). Entre as mais ativas nas redes, temos Jewish Voice for Peace, Torah Judaism em inglês, ou Judíxs antisionistas contra el apartheid e JudiesXPalestina em espanhol, além de diversas organizações em diferentes países que denunciam a banalização de suas escrituras sagradas e a apropriação e instrumentalização da memória das vítimas do Holocausto para justificar um genocídio.

Quem mais se manifestou contra o castigo coletivo e indiscriminado imposto por Israel sobre a população palestina? Quem arriscou seus futuros e até mesmo suas vidas ao se posicionar a favor de um cessar-fogo permanente na Palestina?

Os jovens, os estudantes, a geração Z (zoomers), tão menosprezada e vilipendiada por sua suposta fragilidade, falta de atenção e incapacidade de se desconectar dos celulares.

Diante da debilidade, relativismo ou indecisão dos adultos, os jovens começaram a se organizar e, no final de abril, na Universidade de Columbia (a mesma que chancela o Prêmio Pulitzer de jornalismo), os estudantes montaram um acampamento de solidariedade com a Palestina para exigir que sua universidade deixasse de investir em projetos militares de Israel. Isso catalisou um movimento massivo de acampamentos pelo mundo todo.

Não foi a primeira vez que os estudantes de Columbia se manifestaram contra a guerra e a injustiça; também o fizeram em 1968 e, como naquele ano, as autoridades chamaram as forças policiais para prender (com uso excessivo de violência) seus próprios estudantes, tanto em Columbia quanto em várias outras universidades. Os jovens se atrincheiraram porque já sabiam o que fazer; até há pouco tempo, eram crianças obrigadas a treinar para proteger suas vidas durante os frequentes tiroteios em suas escolas primárias e secundárias. Mais significativo ainda é o fato de que, apenas um dia antes, esses mesmos jovens haviam renomeado o Hamilton Hall com o nome de Hind Rajab, uma menina palestina de seis anos que morreu pedindo ajuda, cercada pelos cadáveres de sua família e dos socorristas que tentaram resgatá-la.

Em 29 de abril, o professor Thrasher escreveu com desespero em sua conta no X (antigo Twitter): 

Não sei como você pode ser professor, ver estudantes sendo atacados em 100 universidades (espancados, presos, expulsos, sufocados, cegados) e não querer usar seu corpo ou qualquer outro meio para protegê-los. O sistema está podre. Isso não é educação.

E ainda antes dos universitários, desde outubro de 2023, crianças e adolescentes assíduos no Roblox, uma plataforma de videogames multijogador, já haviam organizado uma manifestação massiva a favor da Palestina!

As infâncias e juventudes foram historicamente usadas para reproduzir o status quo de uma sociedade. Mas, é claro, ao longo da história, também foram as primeiras a se opor a ele. Se olharmos para o passado, reconheceremos que cada década apresenta guerras diferentes e sempre houve grupos de jovens protestando em todo o mundo, inclusive durante o auge do nazismo no coração da própria Alemanha! Não acredita? Pesquise sobre os “Piratas de Edelweiss” e os “Swing Kids”, que se recusaram a fazer parte da Juventude Hitlerista (no caso dos meninos) e da Band Deutsche Mädel (no caso das meninas), zombando do regime por meio de grafites, dança, música e moda.

Penso em todos esses jovens, nas diferenças das lutas de cada geração e no que aconteceu a partir da minha, a geração millennial. Em relação à geração X e, claro, à geração boomer, já notaram que os millennials e muitos zoomers costumam demonstrar maior aspereza e cinismo diante do que é terrível? Já notaram a frivolidade com que muitos falam sobre o presente? A indiferença em relação ao que pode acontecer em suas vidas? Os comentários ou piadas casuais sobre se suicidar ou morrer cedo? Isso não é gratuito. Francamente, que futuro pode haver diante de tantas pressões e tão poucas oportunidades de crescimento, enquanto enfrentamos cada vez mais doenças clínicas, a perda de direitos trabalhistas, o aumento da inflação, o ressurgimento do fascismo e a irreversibilidade da crise climática?

E, de repente, sinto-me derrotada e velha. Mas algo se mexe dentro de mim e não me deixa afundar no meu cinismo. Por quê, apesar de tudo, eles continuam lutando e rejeitando o futuro domesticado que os adultos oferecem? Talvez, por um lado, crescer em tempos desesperadores tenha eliminado boa parte do medo da punição; talvez, por outro, o acesso imediato a inúmeros vídeos sobre o sofrimento da população civil palestina coloque as coisas em perspectiva: “Isso não é nada comparado ao que gerações de palestinos vivem todos os dias desde 1948”, como afirmam os estudantes nos protestos. Então, minha consciência se recusa a me deixar ser parte dos adultos que julgam, punem e abandonam as crianças e jovens à própria sorte. Afinal, para que cresci sem perder a memória?

Tomara que o fato de eu sentir medo agora sirva para que eles não sintam medo depois.

Tomara que seja eu a suportar os pesos e angústias próprios da vida adulta, e não eles.

Tomara que o que faço ajude a protegê-los do sofrimento e do terror.

Tomara que eu tenha a chance de ver, um dia, a Palestina livre e suas bibliotecas, universidades, parques e museus reconstruídos.

Tomara.

Tradução: Dolores Prades

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Áurea Xaydé Esquivel Flores

    Nasceu na Cidade do México, 1987. Mestre em Letras pela Universidade Iberoamericana. Co-organizadora das primeiras Jornadas LIJeras da FFyL "José Martí" e do encontro #80MM: 80 anos da Mulher Maravilha” e apresentou palestras em nível nacional e internacional. É membro da Rede Iberoamericana de Pesquisadores em Anime e Mangá (RIIAM, Argentina) e da Rede de Pesquisadoras e Pesquisadores de Narrativa Gráfica (RING, Chile). Trabalhou no Instituto de Pesquisas Filológicas da UNAM no projeto editorial Xoc Na de livros para crianças e jovens, e fez parte da equipe "Espaço LIJ" da Biblioteca Vasconcelos, sob a direção de Daniel Goldin. É ex-membro do Comitê Editorial do programa “Alas y Raíces” da Secretaria de Cultura. Atualmente, é membro do comitê geral da Seção de Bibliotecas Infantis e Juvenis da Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA) e responsável pela Biblioteca "Alaíde Foppa" da Unidade de Vinculação Artística do Centro Cultural Universitário Tlatelolco (UNAM), que é Corpo Nomeador do Astrid Lindgren Memorial Award e representante do México na publicação The world through Picture Books de 2023, coordenada pela IFLA.

Artigos Relacionados

Qual a cor do seu gênero?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *