“[…] para favorecer uma real inclusão, por exemplo, não é necessário (nem suficiente) diminuir o número de migrantes (sejam externos ou internos ao país), mas criar políticas que agindo nos diferentes contextos (escola, trabalho, cultura) favoreçam a criação de um novo jeito de nos pensar”
Vivemos a era dos refugiados e da migração em massa. Desde a segunda guerra, não havia tantos deslocamentos e migrações pelo mundo. Pessoas, famílias, crianças, muitas vezes, sozinhas saem de seus países fugindo de conflitos, em busca de uma vida melhor, de melhores condições e oportunidades. Aspectos importantes e caros à identidade de cada um são deixados para trás: familiares, amigos, amores, a língua materna, o local onde sempre se viveu e se criou raízes, o trabalho, a escola – todo um cotidiano, a chamada “vida comum”. Este desenraizamento nunca é fácil.
Em média, uma em cada 30 pessoas vive fora de seu país de origem. São 258 milhões de imigrantes (UNESCO, 2017)1Relatório de Monitoramento Global da Educação 2019: migração, deslocamento e educação; construir pontes e não muros, resumo. Brasília, 2018. totalizando 3,4% da população total. Um desenraizamento significativo visto que estas pessoas costumam vir de países mais pobres e sua vulnerabilidade é grande diante dos desafios que a chegada em um novo país implicam.
São enormes os esforços de adaptação e a busca de inserção em uma nova sociedade, em uma nova cultura, como por exemplo, a aprendizagem de uma nova língua e de outros hábitos e costumes. Todas essas mudanças, aliadas ao luto de deixar suas raízes para trás, necessitam encontrar espaços de acolhimento. As migrações e os deslocamentos são um problema que afeta a todos: aos que chegam e aos que recebem. Daí, a solução ser uma equação de todos.
Como acolher bem o estrangeiro? O que temos a aprender? O que podemos ensinar? Quais as possibilidades de troca e de encontros? Quais os espaços privilegiados para se pensar modos genuínos de acolhimento?
Roberto Parmeggiani contribui para a reflexão destas questões ao afirmar:
Incluir não significa tornar os outros como nós, ou inversamente, desistir de nossa identidade para assumir a do outro, mas construir pontes entre as pessoas, as situações e as habilidades. Uma política inclusiva aumenta a integração, quando consegue tecer as vozes de todas as partes interessadas de forma aberta, criando espaços de vida que são fruto da participação de todos, cada um com as próprias características, e nos quais as diferenças se tornem riquezas.
Como criar estas pontes onde a diversidade tenha solo fértil para se transformar em rica experiência coletiva?
Os desafios do acolhimento
Para as famílias com filhos, a escola é um espaço de referência fundamental. A chegada a um novo país pode ganhar outros contornos se as famílias forem bem recebidas na instituição escolar; se forem criadas situações em que seus saberes, suas origens tenham visibilidade; se a escola for um espaço de troca, onde se possa falar sobre o que foi vivido ou se vive.
O relatório de monitoramento da educação produzido pela UNESCO em 2018 aponta que a educação é um componente de peso na decisão de migração das famílias que procuram uma vida melhor. E, diante dessa diversidade escolar, o país de acolhimento se vê com grandes desafios e também com oportunidades de aprendizado. Assim sendo, para os parâmetros da UNESCO, é fundamental que existam currículos sensíveis que considerem a contribuição das migrações para a riqueza e prosperidade, além de reconhecer as causas de tensões e conflitos, bem como o legado das migrações que deslocaram ou marginalizaram populações. As abordagens pedagógicas devem promover abertura a perspectivas múltiplas, fomentar os valores de convivência e valorizar os benefícios da diversidade.2Idem. Pág. 59
Muito se avançou, ao menos no discurso, sobre a importância de se conviver com o diverso, fundamental para a constituição de uma subjetividade preocupada com a alteridade. Porém, na prática, o acolhimento da diversidade ainda se coloca como um desafio. Vários são os exemplos de exclusão, racismo e negação do diferente que a sociedade brasileira tem sido palco.
Receber crianças de fora acirra este desafio. O que fazer quando se recebe uma criança que fala outra língua? Como acolher famílias que vêm de uma experiência cultural diversa? Como acolher vivências muitas vezes duras e sofridas da migração e do deslocamento num ambiente coletivo como o espaço escolar?
De acordo com pesquisas realizadas em diferentes países da Europa e dos EUA – que recebem grande número de estrangeiros – sabe-se que algumas condições mínimas devem ser garantidas para acolher a criança na escola tais como:
- Manutenção do contato com a língua materna, com espaços para estabelecer relações entre essa língua e a nova língua que necessita ser aprendida.
- Valorização da cultura da família de origem e da identidade da criança, propondo diálogos com a sua experiência, com aquilo que foi vivido, com sua história, seus modos de brincar, suas referências culturais.
Na contramão destas dificuldades, observam-se esforços no sentido de garantir espaços e tempos para o acolhimento. Em algumas escolas já não se fala mais em “espaços de adaptação” mas em “espaços de acolhimento”. Trata-se de uma questão de fundo, pois adaptação sugere um movimento unilateral daquele que chega e que precisa esforçar-se para se adaptar em um ambiente já pronto. Ao passo que “acolhimento”, sugere um movimento cuidadoso de todos. Ou seja, para cada família e criança que chega, há movimentos e esforços bilaterais: escuta e observação por parte da escola, procurando incluir espaços para receber o singular e o diverso, bem como o movimento de reconhecimento de um novo espaço, de uma nova instituição por parte da família e da criança.
A literatura que acolhe
Por estas e outras razões, a literatura pode ser terreno fértil e valioso para criar um espaço de acolhimento para as crianças migrantes e suas famílias. Existem pesquisas, como atesta, por exemplo, o trabalho de Michèle Petit, com vasta experiência no tema leitura em situações de crise, que aproxima a leitura do acolhimento que podemos ter ao nos sentirmos em casa:
“[…] cada livro lido é uma morada que o leitor toma emprestada, na qual se sente protegido, pode sonhar com outros futuros, elaborar distâncias, mudar de ponto de vista. Além do caráter envolvente, protetor, habitável da leitura; o que se faz possível em certas condições é uma transformação das emoções e dos sentimentos, uma elaboração simbólica da experiência vivida.”
Considerando justamente a necessidade de se olhar para a questão da migração como um desafio contemporâneo, e partindo da experiência com a literatura como um lugar possível de acolhimento, realizou-se o projeto Literatura que acolhe. Foi uma experiência piloto, realizada pelo Instituto Emília em parceria com o Instituto C&A, numa escola estadual de São Paulo, no bairro do Bom Retiro, onde 40% dos alunos são imigrantes bolivianos.
Foram quatro sessões de leitura, ao longo de 4 meses, com turmas dos 2º e 3º anos, acompanhadas de sua professora de sala. As turmas e os horários foram definidos pela direção da escola. Todas as sessões foram planejadas antecipadamente e obedeceram o seguinte roteiro:
- Leitura mediada.
- Exploração e leitura pelas crianças, individualmente em duplas ou trios, propiciando uma maior aproximação com o objeto livro,
- Compartilhamento da leitura em grupos menores.
Cada sala recebeu no início do projeto uma sacola de livros, contendo dez livros álbuns, com uma versão em português e outra em espanhol. Os títulos abordavam questões relativas à identidade, ao estranhamento, à alteridade, à capacidade de sonhar e imaginar em situações adversas, ao acolhimento. Ou seja, um acervo composto por uma literatura que pudesse apresentar “possibilidades de gerar desdobramentos, de provocar estranhamento no interior de cada leitor, de colocar em crise sua identidade e questioná-la, de levar à descoberta de que cada um é outro”, tal como definiu o editor Daniel Goldin em Os dias e os livros. Ao total foram 80 livros que permaneceram na escola para serem lidos e que hoje fazem parte do acervo da biblioteca. Entre cada uma das sessões de leitura, foi incentivado o empréstimo de livros das sacolas pelas crianças, como forma de estender a experiência e o compartilhamento da leitura em casa, com os familiares.
A escolha de livros álbuns para realizar o projeto confirmou o porquê, como diz Evelyn Arizpe, estes têm sido largamente usados para investigar a construção de significados entre leitores de origens diversas, já que o uso de imagens, o limitado número de palavras e sua particular interação criam espaços amplos para a recepção de diferentes aproximações e ideias dos leitores. Além disso, já está comprovado que os livros álbum ativam nos leitores processos cognitivos e afetivos, independentemente do seu grau de competência com a língua e das “lacunas” culturais, pois se baseiam em sofisticadas competências visuais.
Os encontros foram riquíssimos e possibilitaram muitas descobertas e trocas. A composição do acervo bilíngue também possibilitou reflexões importantes. Como a de uma criança que se viu leitora do castelhano, língua falada em casa, mas pouco vista em livros. A oportunidade de ler um livro em sua língua materna provocou uma descoberta, como o relato que segue mostra:
Um dos meninos, Bruno3Nome fictício., ficou com o livro Había una vez, de Maria Teresa Andruetto. Cheguei perto e ele me falou:
– Eu não sei ler espanhol.
Mas ele tinha uma carinha de menino boliviano! Então, perguntei:
– Você é boliviano?
– Sou, mas eu vim para cá com três anos, por isso não sei ler e escrever em espanhol, eu só aprendi português.
– Ah, entendi. Mas me diz uma coisa: seus pais falam espanhol com você em casa?
– Eles falam.
-Você quer que eu leia para você?
– Sim, quero.
Então, comecei a ler em espanhol, cometendo alguns erros, logo corrigidos pelo Bruno. Notando que ele sabia muito espanhol, sugeri:
– Bruno, sabe o que eu acho? Acho que você vai conseguir ler em espanhol, sim. Você não quer tentar?
– Posso tentar.
E então, ele lê perfeitamente bem.
– Bruno, você notou como sabe ler muito bem em espanhol? Sabe por que? Porque seus pais falam em espanhol com você, então, você conhece muito bem essa língua, né? Por isso saber ler!
– Mas eu não sabia que eu sabia!
Foi um momento lindo porque revelou ao Bruno coisas que ele não sabia que tinha. Coisas que têm a ver com sua origem, com os saberes de sua casa. Foi muito emocionante.
As leituras também possibilitaram espaços para falar dos medos das crianças, muitos deles revelando a situação de vida em que se encontram:
Como introdução à leitura do livro Tenho medo, Dayse, mediadora, abre uma conversa com as crianças sobre quem tinha medo e do quê. Dayse começa falando que adulto tem medo de perder os filhos, de barata, de altura. Em seguida, as crianças começam a falar sobre seus medos:
– De perder os pais, de perder a vida, de avião, de ir para cadeia, de que os pais percam emprego.
Dayse comenta que todos esses medos são humanos e todos têm. E as crianças continuam falando sobre medos:
– “Tenho medo de ser expulsa da escola”;
– “Tenho medo de perder meu pai, minha mãe”;
– “Tenho medo que o meu pai ou minha mãe me abandone”;
– “Tenho medo de ser acusado injustamente”;
– “Tenho medo de perder toda minha família, meus irmãos;
– “Tenho medo de ladrão, da minha casa pegar fogo”.
E ainda abriu espaço para uma conversa sobre as diferentes origens e sobre o deslocamento vivido:
Dayse relata: Quando falei sobre os autores que moravam na Colômbia e um deles tinha nascido no Peru e só depois ele mudou para Colômbia, rapidamente as crianças começaram a falar sobre elas. Algumas diziam que tinha nascido em outro País, chamado Bahia, outra disse que nasceu na Bolívia e veio quando tinha 2 anos.
Em outro momento as mediadoras perguntaram como tinha sido ler em espanhol e português algumas crianças disseram que foi mais fácil ler em português. Uma delas disse que foi mais fácil ler em espanhol:
– “Minha mãe fala duas línguas: espanhol e guarani. Eu não sei muito guarani, mas ela leu em espanhol para mim”.
Outro fator importante foi o empréstimo dos livros. Aos poucos, notamos que não apenas as crianças de origem boliviana levavam os livros em espanhol, mas as brasileiras também. Com esse outro idioma circulando nas salas, veio também o interesse por ele, as comparações entre as duas línguas e a valorização das crianças que, de repente se viram em outro lugar. A possibilidade de levar um livro em língua materna para a casa, para ler com familiares, também é algo muito significativo: as famílias sentem-se acolhidas e valorizadas ao notar que há espaço para seu idioma onde seus filhos estudam.
Em poucas sessões, observamos deslocamentos em relação ao lugar ocupado pelas crianças, sobretudo as de origem estrangeira, elas se sentiram valorizadas pelo acervo bilíngue, mas não só. Crianças vindas do nordeste do Brasil, por exemplo, podem, muitas vezes, sentir-se estrangeiras em outra região, com outros costumes e hábitos. É sabido que a migração interna também afeta significativamente o sentimento de pertencimento e resultados escolares dos alunos4“No Brasil, entre adolescentes nascidos em 2000 e 2001 na Região Nordeste, o que migraram durante a escola secundária obtiveram taxas de progressão piores do que os que ficaram. As oportunidades educacionais de crianças afetadas pela migração interna podem ser comprometidas por uma série de motivos, do status legal precário à pobreza, passando pela atenção governamental inadequada ou por preconceitos e estereótipos” (UNESCO. Relatório de Monitoramento Global da Educação 2019, p.12).. A escolha cuidadosa de um acervo que acolhe a diversidade, abrindo espaços para reflexão sobre muitos aspectos da condição humana deu voz a todas as crianças da sala, e permitiu diferentes aproximações consigo mesmo e com o outro.
Foi um trabalho muito enriquecedor, onde se aprendeu muito. A valorização dos espaços de escuta que as experiências de leitura proporcionaram também foi um ganho importante. As crianças puderam falar sobre muitas coisas que lhe dizem respeito: sobre o que vivem, sobre os medos e angústias, sobre seus valores e sonhos, sobre a sua história. Sentir-se ouvido é o primeiro passo para também poder ouvir e acolher o diferente, assim como é crucial para a construção positiva de uma identidade: minha história, minha visão de mundo, minha cultura, as coisas que penso têm espaço na escola, posso ser ouvido. Seja no meu país ou no estrangeiro. Em qualquer lugar, eu sou alguém no mundo.
Equipe que participou do projeto:
Coordenação Geral
Dolores Prades
Coordenação pedagógica
Ana Carolina Carvalho
Secretaria geral
Carolina Splendore
Mediadoras
Dayse Gonçalves
Licia Breim
Vanessa Cunha
Mediadora acompanhante
Irene Monteiro
Relação dos livros:
Referências Bibliográficas
GOLDIN, Daniel. Os dias e os livros. Pulo do Gato. São Paulo: 2012.
PARMEGGIANI, Roberto. Desabilidade. São Paulo: Nós: 2018.
PETIT, M. El arte de la lectura em tiempo de crisis. Oceano del Mexico, 2009. Tradução livre.
VILA, Ignasi. Lengua, escuela e inmigracion. In: COLOMER, Teresa; FITTIPALDI, Martina (coords.). La literatura que acoge. Inmigración y lectura de álbumes. “Parapara” nº5. Barcelona/Caracas: Banco del Libro-GRETEL, con el patrocinio de la Fundación SM (distribuido por Ekaré). 2012. 284 páginas.
Notas
- 1Relatório de Monitoramento Global da Educação 2019: migração, deslocamento e educação; construir pontes e não muros, resumo. Brasília, 2018.
- 2Idem. Pág. 59
- 3Nome fictício.
- 4“No Brasil, entre adolescentes nascidos em 2000 e 2001 na Região Nordeste, o que migraram durante a escola secundária obtiveram taxas de progressão piores do que os que ficaram. As oportunidades educacionais de crianças afetadas pela migração interna podem ser comprometidas por uma série de motivos, do status legal precário à pobreza, passando pela atenção governamental inadequada ou por preconceitos e estereótipos” (UNESCO. Relatório de Monitoramento Global da Educação 2019, p.12).