Uma conversa com Sara Bertrand

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A escritora chilena Sara Bertrand fala com suavidade. O tom, porém, contrasta com a força de suas palavras. Autora publicada em vários países, parece ser movida pelas questões humanas mais profundas. Define-se contestadora, um contraponto natural, garante, a sua família conservadora.

Acredita na escrita com urgência, “como se fosse matar ou morrer”. Foi assim, aliás, que diz ter criado A mulher da guarda, publicado em 2016, que acaba de ganhar uma edição brasileira, a primeira em Língua Portuguesa, publicado pelas editoras Selo Emília & Solisluna Editora.

O livro é, em última instância, uma história de afeto, que se revela em um contexto difuso, complexo. Por que há crianças sozinhas? Por que uma menina, tão jovem, cuida de seus irmãos? Essas indagações surgem inevitavelmente ao longo da leitura. A ditadura chilena não está explícita, mas está lá. A mulher da guarda é uma espécie de diálogo com esse período sombrio, em um tom mais íntimo.

Ela lembra que não estava consciente do silêncio envolvido na história porque era o seu próprio silêncio, o silêncio de sua infância. “Era muito difícil racionalizar uma coisa que foi natural de sobrevivência. Eu era uma menina que subia em árvores e tudo que se passava embaixo parecia muito perigoso”.

A seguir os principais trechos da conversa da Emília com a escritora.

Priscilla Brossi Como surgiu A mulher da guarda?

Sara Bertrand O livro surgiu junto com outra história que eu estava escrevendo, que se chama Álbum familiar. Eu me propus a fazer um álbum de fotos, reunindo momentos emblemáticos da infância, ainda que eu fosse muito pequena durante os primeiros anos da ditadura chilena. Não se tratava de um livro autobiográfico, mas necessitava certa referência pessoal no sentido que a história soasse suficientemente verdadeira, de um período que eu, sim, recordava como cinza, obscuro, em que havia muitas coisas sobre as quais não se falava. Durante a pesquisa, selecionei um conjunto de fotografias e em uma delas aparece Jacinta (a menina do livro A mulher da guarda). De forma muito intuitiva e natural, surge a imagem dessa menina mexendo o puré, cuidando de seus irmãos. Percebi a potência narrativa que tinha Jacinta, que voltou a aparecer outras vezes. Dei-me conta de que tinha uma história. Comecei Álbum familiar primeiro, mas terminei antes A mulher da guarda. Como disse, Jacinta surgiu como um personagem muito poderoso: essa menina que havia perdido a mãe e ficou encarregada de cuidar dos seus irmãos.

PB Que história era essa?

SB Nessa história não há clareza do mundo externo. Não está dito que se vive uma ditadura, mas sabemos que crianças estão sozinhas. A mulher da guarda é uma espécie de diálogo com esse período sombrio, em um tom mais íntimo. Crianças solitárias e adultos que não as atendem.

Há um jogo entre sonho e realidade com esse personagem da mitologia tibetana, essa mulher que anda a cavalo, milhões de quilômetros, que vem e te abraça. É muito bonito pensar que há uma mulher que atende qualquer súplica, é muito maternal, uma espécie de avó universal. Igualmente bonito é ver que Jacinta é também um pouco mãe de seus irmãos. E essa mulher que anda a cavalo a acolhe, contando a ela uma história.

No livro Jacinta também conta uma história. Nela há um gigante que se apropria da casa, que cada vez que vai a essa casa desarma os espaços das crianças, bagunça tudo. Mais tarde notei que ele simboliza os adultos daquele momento, tanto os militares, como os pais: todos que representam esse gigante que não atendem os pequenos, não os vêm, não os escutam.

Gostei do processo de escrita dessa história. Escrevi rapidíssimo, ficou pronta em dois meses. Como se já estivesse pronta e eu apenas fosse traduzindo.

PB Como a ilustração surgiu no projeto?

SB Quando terminei de escrever, ficou claro que era uma história muito diferente e que no Chile jamais seria publicada. Precisava de uma editora que se arriscasse, que fosse capaz de imaginar o livro. Então, pensei em María Osorio, da colombiana Babel Libros. A mulher da guarda era para uma editora como ela. Enviei a María com o desejo de apartá-la de mim. Em apenas dois dias, ela me responde: “é minha!”. Importante quando se tem um editor que é capaz de imaginar o objeto livro, de construí-lo. Para María era evidente que necessitava de ilustração. Era uma história fronteiriça, um pouco juvenil, com temática dura e pedia um tipo de ilustração que fugisse do infantil, que acompanhasse o mesmo tom do texto. Foi aí que convidei Alejandra Acosta, ilustradora também chilena. Eu já conhecia seu trabalho, sabia que reunia as características que queria María Osorio. As ilustrações de A mulher da guarda são muito potentes!

O livro inaugura – junto com Corazón de león, de Antonio Ungar e Santiago Guevara, e Los ahogados, de María Teresa Andruetto e Daniel Rabal – a coleção Frontera Ilustrada, da Babel Libros, com obras em que o leitor entra pelas páginas ilustradas, encontra o texto e sai pelas páginas ilustradas novamente.

PB Em 2017, ano em que seu livro foi premiado na categoria New Horizons na Feira de Bolonha, a Babel Libros foi também premiada como a melhor editora da América Latina. Seria uma coincidência?

SB Os prêmios são aleatórios e muitas vezes se dão por razões curiosíssimas. Não vou entrar no mérito sobre porque alguns ganham e outros não. O que devo dizer é que, há algum tempo, María Osório faz uma aposta contra o sistema. E nesses sentido, A mulher da guarda é um pouco dessa aposta. Quando o escrevi não estava pensando em nenhum leitor. Eu sentia como se estivesse “vomitando” uma história que necessitava ser contada. E quando tive a história nas mãos conclui que não é para qualquer editora. Porque não estavam claras suas possibilidades. María já era conhecida para mim e eu queria muito ser publicada por ela. Mas eu sabia que não poderia ser qualquer livro. Creio que o trabalho de María foi premiado de maneira justa, no momento certo. Um trabalho que cria livros de muita qualidade não só literária como gráfica – e de design também. É uma aposta que mira o leitor, que não o subestima. Para um editor, creio, ter a conexão com os leitores é a única maneira de se fazer livros. E para um escritor, a única maneira é ser total e absolutamente honesto consigo mesmo e entender que se escreve com urgência como se fosse matar ou morrer. E foi com essa urgência que criei A mulher da guarda. Eu sentia que devia escrever tudo aquilo que estava saindo. Coincidiram duas formas de fazer.

Os livros mais bonitos também são os mais imperfeitos. Eu segui minha intuição. Quando se tem uma história que está te incomodando, deve-se segui-lá, ser fiel até o final. Só depois é que se pensa na edição. Na minha infância, eu vivia subindo em árvores, via tudo acontecendo lá de cima. Afinal, embaixo aconteciam coisas, passavam carros militares… e em cima das árvores eu estava muito mais segura do que na rua. Uma infância vivida assim contra o perigo, que eu não sabia exatamente qual era. Eu não estava consciente do silêncio envolvido em A mulher da guarda porque era o meu próprio silêncio. Silêncio da minha infância. Era muito difícil racionalizar uma coisa que foi natural de sobrevivência. Eu era uma menina que subia em árvores e tudo que se passava embaixo parecia muito perigoso.

PB Como foi a recepção do livro no Chile?

SB O livro saiu em 2016 e sua recepção no Chile foi muito modesta. Por conta do lançamento, fui a um festival de literatura em Bogotá, mas quase não conseguia conversar sobre o livro, tamanha era minha timidez. Sofro muito com a publicação de um livro, tanto antes como depois.

Por ter sido uma edição colombiana, havia a sensação de que o lançamento estava muito longe! As pessoas perguntavam onde comprar e eu dizia que não era possível, pois estava a quilômetros de distância (risos).

Assim foi até fevereiro de 2017, até que o livro leva o prêmio Bologna Ragazzi Award, na categoria New Horizons. A notícia foi explosiva no Chile, afinal eram duas chilenas – escritora e ilustradora – ganhando o mais importante prêmio de literatura infantojuvenil. Teve grande destaque nos jornais e revistas. Para mim foi um momento estressante e intenso.

Depois disso, foi uma loucura! Muitas viagens, convites de editoras com pedidos textos sobre todos os temas possíveis (risos).

PB Como você se apropriou do ofício de escritora?

SB Eu posso dividir minha vida de escritora em dois momentos. O primeiro apegado à maternidade. Eu lia muito para meu filho. Era comum ele me corrigir, dizendo que eu havia me equivocado em um determinada história. O fato é que passei escrever para ele. Mas nunca imaginava me tornar uma escritora infantil.

Ganhei uma bolsa do fundo de cultura do Chile por um livro de contos. Uma casualidade e outra me levaram a esse território. São sete histórias que não têm pretensão literária. Eram histórias sobre meu filho, de aventuras, ele e seu foguete… são histórias que retratam a observação de uma mãe sobre seu filho e, logo, uma tradução desse mundo infantil. Fui muito apegada a isso. Ele cresceu, como crescem todas as crianças, e deixou de me escutar, evidentemente (risos). Tornou-se um bom leitor. E, de alguma maneira, de forma muito natural, senti a liberdade de escrever para mim, por mim, não mais para o meu filho, de falar dele ou sobre as histórias dele, abrindo o segundo momento.

Eu reconheço em meu trabalho muito do que disse Juan Jose Saer, escritor argentino que admiro, sobre a infância e a língua serem a pátria do escritor. Para mim, a infância é muito forte, um período em que se olha para o mundo como jamais veremos novamente. A conexão com a infância é presente em toda minha narrativa. Há sempre uma criança, uma avó; a memória, o abandono. São assuntos que já permeavam as histórias que escrevia para meu filho. A pergunta da criança é muito forte.

PB Conhece a literatura brasileira?

SB Pouco. A literatura portuguesa sim. Fernando Pessoa para mim é uma grande referência. Mas voltando à literatura brasileira, posso dizer que gosto muito de Clarice Lispector. O que ela despertou em mim foi importante. Li ensaios e também entrevistas. Uma mulher que, para mim, pensava de maneira muito atraente.

PB O Brasil passa por uma onde ultraconservadora e vê as áreas da cultura e educação sofrendo fortes ataques. Esse movimento, de forma mais ou menos intensa, vem acontecendo em outras parte do mundo. Como vê os tempos atuais? Como estão as coisas no Chile?

SB Hoje é muito difícil para qualquer país não sofrer os impactos das ondas mundiais. O furacão chamado internet é algo que não poderíamos dimensionar, bem como suas campanhas em que reinam as mentiras, as notícias falsas.

São tempos difíceis para toda a cultura, para toda a criação mais elegante, para aqueles que querem dialogar. Observo os jovens, como meu filho, e me dou conta de que a relação entre eles se dá prioritariamente on-line, não são conexões interpessoais. Não há o tipo de contato que gera crises, que permite questionamentos.

Temos que estar com os olhos muito abertos. É preciso aplicar uma ação poética concreta. Precisamos ter muita clareza onde queremos deixar nossa mensagem e que mensagem é essa. Façamos um pouco de guerrilha poética!

Autor e ilustrador: Sara Bertrand e Alejandra Acosta
ISBN: 9788553300112
Idioma: Português
Formato: 21.6 x 18.6 x 1.2 cm
Nº de páginas: 56 p.
Ano de publicação: 2019

Onde encontrar

Movimento Literário
Solisluna Editora
Livaria Martins Fontes Paulista



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  • Priscilla Brossi Gutierre

    Jornalista com experiência em gestão de projetos de comunicação. Especializada no desenvolvimento de estratégias de conteúdo editorial, incluindo planejamento, edição, curadoria e redação, para diferentes formatos e mídias. No Instituto Emília, atua no plano de relacionamento com a imprensa e edita a newsletter mensal. 


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