A mediação para além das primeiras camadas da leitura – Parte 1

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Aqueles que se propõem a formar leitores precisam mergulhar no que é específico e especial de cada obra para provocar um diálogo em torno da leitura.

Nos espaços de formação continuada de professores e coordenadores pedagógicos de Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, vimos que é bastante comum que a atividade habitual de leitura seja feita quase todos os dias, quando não diariamente. Escolher um livro e ler para as crianças, sentadas em roda, é uma atividade importante para a formação leitora dos estudantes e requer muita atenção e conhecimento literário para que o resultado seja, de fato, a formação de leitores capazes de mergulhar na cultura escrita e navegar por ela pondo em ação comportamentos típicos dos leitores competentes.

Precisamos buscar, no processo de formação desses profissionais, estudos e aprofundamentos que nos permitam ultrapassar as primeiras camadas da leitura, em que o tema em si é o mais forte e as primeiras impressões e relações com algo conhecido se estabelecem, para poder alcançar, gradativamente, o desenvolvimento das competências leitoras almejadas. É preciso avançar, se quisermos que nossos leitores em formação aprendam a: utilizar cada vez com mais autonomia diferentes estratégias no processo de leitura; conhecer e utilizar características formais do texto para ampliar a compreensão; usar o contexto para enfrentar obstáculos no processo de leitura; antecipar e verificar hipóteses sobre o conteúdo do texto no decorrer da leitura; interpretar os textos indo além do conteúdo explícito e fazendo inferências; elaborar comentários e opiniões fundamentadas sobre o texto, entre outros conhecimentos que estão em jogo nesta formação.

Neste sentido, a conversa sobre o livro, após a leitura em voz alta do professor para a turma, é essencial. E, para guiá-la o professor precisa mergulhar em cada uma das obras e buscar compreender primeiro para si quais as experiências estéticas que elas lhe proporcionam e, então, preparar-se para provocar um diálogo entre os leitores e entre eles e a obra que pode ser mais profundo e efetivo.

Para colaborar com esta imersão, Fátima Fonseca e Sandra Medrano, duas das coordenadoras pedagógicas da área de Língua Portuguesa da CE CEDAC, com atuação em projetos voltados à formação de leitores, selecionaram algumas obras de literatura infantil e elaboraram textos em que, destacam as características literárias de cada uma, buscando salientar o que é específico e especial. No total, são 20 selecionadas. Nesta edição, começamos com seis livros nos quais mergulhamos para podermos compartilhar com vocês a nossa experiência enquanto leitores e mediadores atentos à potencialidade de cada obra no processo de formação leitora. Esperamos que sejam bem aproveitadas por professores e mediadores de leitura, para que muitos leitores em formação possam se impactar com o que há de especial nestes livros e, assim, ampliar seus conhecimentos como leitores literários e como formadores.

Livro: Uma girafa e tanto
Autor: Shel Silverstein
Editora: Companhia das Letrinhas

Uma primeira passada de olhos no livro Uma girafa e tanto pode nos enganar. Pode-se achar que não é um livro adequado para os bem pequenos, pois não é colorido e tem muitos espaços em branco. Este é o engano que cometemos se ficarmos somente nessa primeira impressão. Este livro cativa exatamente pela forma como as imagens, feitas somente com traços em preto, se destacam na folha branca, ganhando força com o texto escrito que traz elementos inusitados e engraçados para que os leitores iniciantes se atenham a cada detalhe cuidadosamente incluído pelo autor.

Um aspecto da composição gráfica chama a atenção neste livro: a história é narrada explorando o espaço das duas páginas abertas do livro, como se o espaço fosse único para ampliar a experiência leitora com os detalhes da imagem. Pense como perderia a força se a história seguisse uma sequência utilizando cada uma das páginas isoladamente…

Crianças adoram se divertir pensando em combinações absurdas. E é exatamente isso que Shel Silverstein faz ao propor uma história utilizando um recurso muito apreciado pelos pequenos leitores: a repetição e a acumulação. Para eles, a repetição – “uma girafa e tanto de…” e a acumulação dos itens que se agregam ao animal – rato, rosa, cadeira, gambá, serpente, baleia… -, permitem que participem ativamente da leitura pois podem antecipar o que será lido e fazer coro com a voz do adulto que lê o livro.

Mas, diferentemente de outros livros, Uma girafa e tanto se estrutura pela acumulação, mas também pela “desacumulação”, ou seja, em um determinado ponto – de virada – os itens incluídos são retirados até voltar ao início: a girafa e o menino, que no começo teve seu pescoço esticado e ao final encolhido até a metade.

Tudo na história se relaciona ao absurdo, ao inusitado, que por este motivo, traz graça ao que é proposto. Como se utiliza uma cadeira como pente? Como podemos puxar um dragão em um carrinho de mão? É possível todos caírem no buraco do tatu e sair com um bambu? Ou uma baleia receber uma carta do correio?… essas indicações impossíveis e surpreendentes fazem com que as crianças bem pequenas se engajem e fiquem imersas aguardando o que acontecerá na próxima virada de página.

E é exatamente esse suspense – que se pode criar antes de cada virada de página – que ganha um lugar especial quando todos caem no buraco o tatu. Aqui a história seguirá outro rumo – o da “desacumulação” – e vale a pena chamar a atenção dos leitores em formação: é o “ponto de virada” da narrativa.

A relação entre o texto escrito e a imagem é de um casamento perfeito. É pela composição desses dois aspectos que a narrativa ganha força. Note como só ver as imagens ou só ler o texto escrito, não tem a mesma força, como por exemplo, na página em que o texto escrito indica que todos caíram no buraco do tatu e o leitor tem à sua frente uma página com muito espaço em branco, justamente para mostrar a ausência dos personagens, e vê nas imagens o menino com olhar desolado, olhando um pequeno buraco (em que caíram todos!!!) e que de lá saem duas orelhas (que também parecem folhas) e uma rosa. Só podemos afirmar com certeza que são as orelhas da girafa porque sabemos que a rosa foi colada no seu focinho. Mas, notem: só chegamos na beleza dessa passagem, nos surpreendendo e nos divertindo, se juntarmos todos os elementos oferecidos intencionalmente pelo autor.

Há ainda outro aspecto da composição do livro que aproxima o leitor ainda mais da história, como se o autor soubesse o que sabe aquele que o lê. São referências às narrativas da cultura da infância, como em “buraco do tatu” e “rato que não roeu”, nos remetendo a um repertório anterior que nos envolve na leitura.

Por fim, um aspecto que não é possível deixar de citar, são as rimas com que a história é narrada, que dão musicalidade e colabora na produção de um clima ainda mais inusitado ao apresentar palavras especialmente escolhidas para descrever as situações e personagens que indicam que esta é Uma girafa e tanto.

Livro: Tanto, tanto!
Autores: Trish Cooke e Helen Oxenbury
Editora: Ática

Tanto, tanto! é um livro que transborda sentimentos: amor, alegria, amizade, fraternidade. De que maneira o leitor acessa esses sentimentos? Pela forma de sua composição: projeto gráfico, imagens e texto escrito, juntos possibilitam uma experiência leitora exatamente nessa direção.

Como? A começar por seu tamanho e cores utilizadas. Maior do que a maioria dos livros, permite que os bebês e as crianças bem pequenas mergulhem em seu universo ao abrir suas páginas. Cores fortes, como azul, vermelho, amarelo são intencionalmente utilizadas para apresentar passagens da narrativa dando luz e aura festiva ao que é representado. Mas há também imagens produzidas somente com 3 ou 4 cores em tom ocre. Essa distinção colabora na criação de uma atmosfera, ora enfadonha (com poucas cores), ora radiante (com muitas cores fortes).

Além disso, a organização gráfica permite apreciar algumas imagens em toda a página e o texto escrito ao lado, composição esta que gera uma percepção quase teatral do que se desenrola na história. Observe como vemos algumas passagens, em uma espécie de zoom que foca em uma cena, deixando algumas imagens “sangrarem” da página.

A forma de contar a história de Tanto, tanto! é bastante peculiar e envolvente para as crianças que iniciam seu percurso leitor. São utilizados recursos como a repetição e a acumulação para aproximar ainda mais o pequeno leitor da narrativa. Assim, trechos como “eles não estavam fazendo nada”; ou “e então… TRRRRIM! TRRRRIM!”; ou “eu quero ____ esse bebê, eu quero ____ essa coisinha TANTO, TANTO!”, são repetidos e as crianças podem antecipar o que vai ocorrer, após as primeiras cenas, e participar da história. A “acumulação” de parentes queridos que vão chegando e brincando com o bebê, além de possibilitar uma identidade, pois essa situação pode ser bastante comum aos pequenos, também vai acrescentando personagens e faz todo o sentido ao final, quando o último deles entra – o pai – e é o aniversariante para uma festa surpresa. Aqui a felicidade se completa!

Mas ainda não acaba a história. Como a narrativa está focada na vivência do bebê, é ele que o leitor acompanha quando fica tarde – mesmo que a festa continue para os demais – e vai com ele para seu berço, bastante realizado e feliz e dorme sabendo que todos o amam Tanto, tanto!

Este livro tem ainda muitos detalhes que valem ser explorados. Um deles é a imagem da 3a folha. Um bebê nos recepciona na entrada, assim como recepciona ao longo do livro aos convidados que chegam em sua casa, ele abre seus braços e nos acolhe e nos inclui na narrativa. Somos assim, mais um dos convidados para a festa.

Outro detalhe que merece uma segunda leitura e apreciação cuidadosa são as imagens desenhadas somente a lápis, junto ao texto escrito. Essas imagens contam e complementam a história.

Um ponto de destaque deste livro é a representação de uma família afrodescendente em um livro para crianças. A literatura infantil não tem, ainda, uma representatividade negra que garanta um equilíbrio e a possibilidade de oferecermos às crianças essa diversidade é fundamental, para que todas possam se sentir representadas e possam ter acesso à variedade de etnias da qual o mundo é constituído.

Livro: Vozes no parque
Autor: Anthony Browne
Editora: Pequena Zahar

Vozes no parque é um daqueles livros que considera toda a potencialidade de quem o lê. Conta com o envolvimento e a inteligência do leitor para construir o sentido da narrativa. Isto porque é composto por muitos detalhes e tudo conta para apresentar a história e proporcionar uma experiência leitora arrebatadora.

Muitas são as possibilidades de exploração deste livro, destacaremos algumas. A começar pelo título: o que são ou de quem são as “vozes” no parque? Repare como a palavra é escrita com diferentes tipos de letras. Esse detalhe se completa ao adentrarmos na história. São diferentes pontos de vista – precisamente quatro – que relatam o mesmo acontecimento (um passeio no parque), cada um a partir de sua visão, seus sentimentos e sua personalidade.

A beleza desta composição está na forma que o autor vai dando pistas de como cada um dos personagens vive o momento. Browne utiliza vários recursos ao mesmo tempo para marcar cada ponto de vista: o tipo de letra, o texto escrito e as imagens que compõem as páginas dessa passagem. Por exemplo, ao apresentar o ponto de vista da mãe que leva sua cachorra com pedigree e seu filho para passearem, podemos ver no texto escrito muitos indícios de suas características pessoais: preconceito ao falar que há no parque “tipos assustadores”, relação com seu filho e valorização maior de sua cachorra (que tem pedigree) ao se dirigir a eles: “Carlos, venha aqui. Agora!” e “Venha aqui, Leopoldina, por favor”. As imagens a mostram séria, com chapéu, lenço e um casaco que remete a uniformes militares, além de outras formas de a representar gritando, andando…

As imagens de cada página mostram outros detalhes que vão além dessa primeira camada narrativa. Note como a forma de representar o parque também muda: são diferentes estações do ano, apesar de todos estarem se referindo à mesma situação. Essas diferentes épocas do ano, principalmente em países do hemisfério norte (como é o caso do país em que vive o autor – Reino Unido) são marcadas com cores e paisagens muito distintas. O outono tem cores fortes devido ao fato de as folhas das árvores ganharem tons avermelhados; o inverno é bastante escuro, acinzentado, com as árvores parecendo mortas, totalmente sem folhas; a primavera é uma estação em que a luz começa a surgir, o verde renasce e tudo começa a rebrotar; e o verão é a explosão de vida, a luminosidade é intensa e as flores e frutas ganham sabor e dão cor a paisagem. E são exatamente essas características que o autor explora e relaciona com cada personagem da história.

Aqui mais um exemplo de detalhe (presente que o autor nos oferece): observe como as pegadas dos filhos mostram as estações do ano representadas por seus pais… Carlos traz nas pegadas as folhas caídas do outono de sua mãe. Manchinha traz os flocos de neve do inverno de seu pai.

Mas há ainda muitos e quase infinitos detalhes nas imagens, note:

  • como o autor explora a borda de algumas ilustrações, como quando desenha um pedaço do sapato do pai ou o focinho de Alberto, na imagem da 2a página, ou um pedacinho do braço e perna de Manchinha na 3a página, já oferecendo indícios de quem irá aparecer na sequência;
  • há imagens inusitadas em alguns desenhos: um homem que parece puxar um jacaré desenhado da mesma forma que as sombras das árvores; bocas nas árvores e olhos nas sombras como se estivessem replicando os gritos e o olhar da mãe; patas e trombas de elefantes que se misturam aos troncos escuros de uma parte sombria do parque; os galhos de árvores e os postes de luz que reproduzem o chapéu da mãe em sua onipresença; a sombra da mãe sobre Carlos que parece simbolizar a opressão que produz sobre o filho;
  • a presença de referências que o leitor pode ter e que ampliam a narrativa: uma princesa passeia pelo parque; Mary Poppins alçando voo com sua sombrinha; pinturas clássicas ora choram ora dançam; o king kong aparece em cima de um dos prédios; e muitas outras imagens que podem ser encontradas com um olhar mais atento e minucioso.

Outro aspecto relevante é a forma de composição das imagens com o texto, pois alguns momentos são totalmente complementares ora são opostos, como quando a mãe indica que Alberto perseguiu o tempo todo Leopoldina no parque e na imagem vemos exatamente o contrário.

Aliás, é exatamente a relação entre os dois cachorros – que não têm seus pontos de vista narrados no texto escrito – que permite outra leitura para acompanharmos a história que se pode construir a partir das imagens que mostram a interação entre eles, presentes na narrações de todos os pontos de vistas e que se dá de modo muito distinto dos demais personagens.

Por fim, (mas não esgotando todas as possibilidades) mais uma chave que pode ser abordada nessa leitura: por que os personagens – que têm características marcadamente humanas, são representadas por símios (gorilas e macacos)? Seria uma experiência leitora distinta se fossem desenhados como pessoas?

Livro: Tudo muda
Autor: Anthony Browne
Editora: Pequena Zahar

Anthony Browne é conhecido por produzir suas obras com riqueza de detalhes que permitem ao leitor uma variedade de entradas para acessar a narrativa que oferecida. Tudo muda não foge à regra. É um livro que permite várias leituras para desvendar as diversas camadas que o autor nos proporciona.

A imagem da capa nos convida a mergulhar no universo criado em que tudo munda, inclusive a letra do título e a chaleira que está virando gato ou um gato que está se transformando em chaleira.

Mas o que será que muda e por quê?

Um narrador onisciente nos narra o dia que se inicia para Gregório, que parece ser um dia especialmente diferente e que seu pai anunciou que tudo irá mudar a partir dali. Na tentativa de compreender o que vai mudar, Gregório começa a notar algo estranho. Parte das coisas estavam iguais, mas outras…

Por meio da relação entre as imagens e o texto escrito, o autor conduz o leitor na angústia do menino em descobrir o que muda e nesse percurso vamos acompanhando o que ele vai vivenciando (ou criando em sua imaginação?): a pia que tem nariz e boca; a poltrona que ganha dedos e se transforma em gorila… Simbolicamente animais ou partes deles aparecem em lugares inusitados ou objetos ganham novos contornos representando possibilidades de mudanças.

Além disso, várias imagens rementem a nascimento: parte de um quadro na parede que faz referência ao quadro clássico de Madona com menino Jesus, do artista renascentista italiano Rafael; a TV que mostra um pássaro, depois um ninho com ovos e depois um passarinho comendo da boca de sua mãe. Nessa mesma sequência, em cima da TV o porta-retratos mostra Gregório, sua mãe e seu pai nas duas cenas e na terceira um porco junto aos três. Por que será que há um porco nessa representação? Outra sequência mostra Gregório chutando uma bola que se transforma em ovo e que ao final sai um pássaro.

Browne é um autor que oferece também a seus leitores uma entrada ao mundo das artes. Em muitos de seus livros inclui referências a pinturas, esculturas ou outras formas artísticas. Em Tudo muda, além da Madona, de Rafael, há uma alusão ao artista holandês Van Gogh. O próprio quarto de Gregório é uma referência ao quadro pintado pelo artista, assim como o quadro “A noite estrelada” que enfeita a parede, juntamente com quadros que remetem a mudanças: fases da lua, planetas e ET (do filme).

No desfecho para entendermos a qual da mudança, em um super zoom somos apresentados a uma bebê, como se estivéssemos no lugar de Gregório.

Mas é na página de encerramento que um círculo se completa, pois presenciamos o mesmo sentimento que inicia a narrativa. Algumas coisas estão diferentes (a bebê no colo), mas outras continuam iguais: são três canecas aos pés da família, mostrando como em uma promessa, que por um tempo algumas coisas permanecerão como antes, só entre os três.

Livro: Para onde vamos
Autores: Jairo Buitrago e Rafael Yockteng
Editora: Pulo do Gato

Para onde vamos é um livro que aborda de maneira singela um tema bastante atual. Parece difícil falar de refugiados com as crianças, mas este livro é a prova de que é possível e necessário, para que desde muito cedo elas possam entender quão árdua pode ser a vida de pessoas que precisam viver esse processo e possam refletir sobre o que necessitamos conhecer para tentar mudar esse cenário.

A forma como os autores Buitrago (texto escrito) e Yockteng (imagens) harmonizam as informações e narram a história possibilita um envolvimento especial com o tema. A começar pela escolha de quem narra a história: a menina. É ela quem nos conta o que vai vivenciando na jornada que inicia de maneira muito animada, como em uma viagem de férias e vai ganhando contornos mais tensos à medida em que ninguém responde “para onde estão indo” mas ainda de modo ingênuo acompanhamos o que a ela se descortina.

Porém, são as imagens a que o leitor tem acesso – como se estivesse em um lugar privilegiado de onde vê tudo – que dão a dramaticidade do que vivem na viagem em busca de um novo lugar. Pelo olhar da menina (que acompanhamos no texto escrito), a travessia do rio em embarcações improvisadas parece não chamar atenção, mas o leitor começa a entender as condições em que se inicia a viagem; para a menina, as pessoas que vivem ao longo da linha do trem não causam espanto, mas o leitor observa as fisionomias e as condições precárias que mostram uma moradia que se deseja provisória; a menina não vê ou não entende por que as pessoas sobem no trem de maneira perigosa e clandestina (exatamente nesta parte não há texto escrito – narração da menina – só imagens que o leitor acompanha); no olhar da menina, ela aprecia a viagem em cima do trem em companhia do pai e brinca ao ver as nuvens no céu formando desenhos, o leitor observa as condições perigosas em que todos estão viajando; ao ter que descer, a menina não vê os policiais interceptando o trem e algumas pessoas sendo presas, mas entende – pelo que explica seu pai – que nem sempre se consegue chegar aonde se quer ir e por isso é preciso descer.

As imagens neste livro têm papel muito especial. Como já comentamos, elas são responsáveis por um descompasso entre o que acompanhamos na narração da menina e o que vemos nas cenas, agregando informações e ampliando a experiência leitora. Mas as imagens trazem elementos que acrescentam ainda outros dados. Por exemplo: um animal aparece em quase todas as páginas: um “cachorro grande”, que na verdade é um coiote. Esta inclusão intencional faz uma referência à pessoa que cobra para ajudar na travessia dos imigrantes ilegais e que nem sempre age de forma a garantir que o serviço cobrado chegue a ser realizado. Por que será que ele está incluído em diversas passagens do livro?

Outra informação que nos é oferecida pelas imagens e que possibilita ao leitor construir representações e agregar dados para apreciar a narrativa se encontra nas guardas do livro (espaço do verso da capa e da 1a página e verso da quarta capa e última página) em que algumas bonecas artesanais parecem ter saído de uma caixinha para formar uma roda. A última boneca (a maior) é uma referência à bonequinha “quitapenas” mexicana, que, segundo a lenda, ajuda a resolver problemas. Essas imagens dão indícios do local em que se passará a história e do que será apresentado nela.

Além disso, a forma de composição do livro nos faz testemunhar a maneira como o adulto – aqui provavelmente o pai – protege a criança nessa jornada, sem expô-la às durezas dessa travessia. E por que será que nenhum dos dois tem nome? Podemos supor que esse anonimato possibilita que muitos refugiados se vejam representados nesses personagens, podendo ser muitas Marias, Joãos, Pedros, Julianas, Helenas, Arturs… todos aqueles que um dia passaram por essa situação tão delicada!

Mas e o final? Talvez aqui esteja a maior generosidade deste livro. Ao possibilitar a identificação com muitas histórias reais, o livro não fecha nem conclui o que ocorreu ao pai e sua filha. O certo é que chegaram à fronteira, ao muro que divide dois mundos. De que lado estamos do muro? Será que conseguiram atravessar? Será que foram presos e deportados? O fato é que vemos somente os dois coelhos, que podem ter sido propositalmente deixados pela impossibilidade de levar consigo, podem ter sido deixados em liberdade, ou podem estar fugindo de uma cena muito difícil. Nunca saberemos o que houve, mas podemos – cada um – escolher o final que desejarmos.

Livro: Orie
Autora: Lúcia Hiratsuka
Editora: Pequena Zahar

O livro Orie é um exemplar da delicadeza que o mundo ocidental vê na cultura japonesa.

Foi com muita delicadezaque a autora traçou os desenhos de poucas e precisas linhas, a mesma que se encontra nos matizes de cores escolhidos e que estão nas palavras e na forma de narrar a história.

O vermelho vivo que chama a atenção na capa seria uma homenagem ao país a que se refere a história: o Japão?

O papel pardo, outra escolha intencional, nos remete às histórias antigas, a um universo que ficou lá atrás, oferecendo ao leitor um mergulho no cenário em que conhecemos Orie.

A poesia está presente em toda a composição do livro. Desde as imagens, com pequenos pontos brancos que, juntos aos traços negros, nos apresentam uma campina com flores delicadas; belas garças de alvura impecável; passando pelos olhinhos e cabelos arrepiados da pequena menina com pés em chinelinhos japoneses e um quimono gracioso, que olha os peixes nas águas transparentes em que navega com seus pais, vestidos em trajes típicos orientais, até as palavras que parecem ter sido esculpidas para oferecer ao leitor outras imagens mentais (ou sentimentais) além daquelas que vemos traçadas, como quando indica: “Os braços do pai são fortes. Os olhos da mãe são macios. O barco parece um ninho. Pai, mãe, Orie, que nem passarinho.” Poesia em estado máximo! Um deleite ao leitor!

O texto escrito também apresenta uma construção singular que promove uma experiência leitora distinta:

  • frases curtas, destacam as ações que são realizadas: “O rio chacoalha os peixinhos. Peixinhos vêm, peixinhos vão. / O remo de bambu vai e vem.”;
  • sons que se repetem dando sonoridade e ritmo à narrativa: “A beira do rio está o b / Balança, balança. A água balança. O barco balança.”;
  • sequência de palavras que mostram a quantidade de informações e experiências vividas por Orie na cidade nunca antes conhecida: “Hora de olhar gente. Roupa, cabelo, calçado. / Hora de ouvir barulho. Trombeta, conversa, passos. / Hora de sentir cheiro. Fritura, perfume, fumaça. / Hora de brincar. Bola peteca, máscara.”.

Outra experiência leitora proporcionada por esse livro é a imersão na cultura japonesa. Seja por conhecer as vestimentas, o meio de transporte da época, como era uma cidade e as pessoas nas ruas; alguns utensílios típicos; seja por adentrar um pouco na forma de viver, na oferta de um doce embrulhado em um lenço, na maneira como se relacionam na família.

O final parece romper com as expectativas do leitor de um final feliz. Apesar de não ser exatamente o contrário, traz um sentimento de cumplicidade com a pequena Orie que começa a crescer e viver novos desafios.


Imagem: Ilustração de Helen Oxenbury, para Tanto, tanto!.


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  • Patrícia Diaz

    Diretora de Desenvolvimento Educacional da CE CEDAC, Patrícia Diaz formou-se em Pedagogia na Faculdade de Educação da USP e é mestranda em Didática, Teorias de Ensino e Práticas Escolares na mesma instituição. Foi professora e coordenadora pedagógica do Ensino Fundamental e iniciou sua atuação na Comunidade Educativa CEDAC em 1997 como formadora de professores. Antes de compor a diretoria da CE CEDAC, passou também pela coordenação pedagógica. Supervisiona todos os projetos que possuem como foco o desenvolvimento de práticas pedagógicas na formação de professores e coordenadores pedagógicos das diversas áreas e segmentos, além de continuar atuando como formadora.

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