Um orfanato lotado. Centenas crianças amontoadas. As mais novas dividem o mesmo berço; as mais velhas, encarando uma parede branca, balançam o tempo todo a cabeça para frente e para trás. Para frente para trás com o olhar perdido. Não se percebem sorrisos. As crianças não brincam. Um cheiro horrível toma conta desse ambiente. Também não se escutam choros.
Na década de 60, o então ditador romeno, Nicolae Ceausescu, criou uma política para aumentar a população e o seu exército. Para tanto, criou o que ficou conhecido como “polícia menstrual”: membros do governo responsáveis por recolher métodos contraceptivos, perseguir e prender médicos e mulheres que praticavam o aborto, checar a frequência sexual e a fertilidade da população. Casais que não tivessem filhos tinham que pagar impostos altos. A natalidade disparou, porém essas famílias, não tendo condições de criar essas crianças, tiveram que abandoná-las.
O governo então construiu orfanatos para recebê-las. Lá, qualquer tipo de atenção e sobretudo carinho eram proibidos. Além disso, se as crianças chorassem, deviam ser ignoradas até se “acostumarem” e, à medida que cresciam, eram proibidas de brincar, deviam usar a mesma roupa, ter o mesmo corte de cabelo e esvaziarem frequentemente seus penicos. Algumas ficavam anos sem ver a cor do dia e, aos dezoito anos, eram “jogadas” no exército ou na sociedade – quase todos com danos psíquicos irreversíveis. Afinal, essas pessoas nunca tinham sido “cuidadas”, apenas “contidas” – como estudos científicos posteriores revelaram. Em 1989, Ceausescu foi deposto e 170 mil crianças foram encontradas em mais de 700 orfanatos nessas terríveis condições.
Minha família judia fugiu da Romênia. Meu avô saiu de lá novo e tivemos a sorte da vida (quase a totalidade da população judia da região foi assassinada nos pogroms e nos Campos de Extermínio durante o Holocausto). O acaso me presenteou por não ter sido uma dessas crianças, ou por não ter sido obrigado a ter filhos nessas condições de barbárie.
Tive a sorte de receber cuidados, carinhos, olhares e amores. Tive a sorte do zelo e da atenção (até exagerada das famílias superprotetoras). E tive ainda o grande privilégio do esquecimento: “Não me lembro daquele primeiro período da vida que se iniciava em que dormia horas e horas feliz e amamentado. Também não me lembro do toque no meu corpo nu, das mãos carinhosas e amáveis dos meus pais. Não me lembro do meu cheiro, do cheiro da minha casa, do cheiro da minha bisavó que tanto tomava conta de mim. Não me lembro de abrir os olhos, de abrir a boca, de babar, de chorar, de fazer manha. Não me lembro da noite, do dia, da minha respiração e da respiração dos meus entes amados. Não me lembro do meu pé gordinho, dos meus joelhos inchados, das minhas coxas redondas, da minha boca sem dentes. Não me lembro dos abraços, dos beijos, das carícias, dos suspiros, das conversas, dos sorrisos e nem das lágrimas. Não me lembro do amor dos outros, nem tampouco do meu”.
No meu livro As coisas de que não me lembro, sou, conto das coisas de que não nos lembramos, mas que nos tornam o que somos. O que nos molda, nos constrói, nos forma enquanto indivíduos capazes de ter e seguir uma vida “saudável”. A escrita de “tudo o que me tornei em função de não me lembrar” homenageia as crianças romenas. Essas tristes crianças que não tiveram o meu privilégio. O privilégio do amor e principalmente do esquecimento: “Não me lembro de estar no colo dos meus pais, dos meus avós, da minha bisavó, dos vizinhos, dos falsos amigos. Não me lembro do bafo de ninguém. Não me lembro da minha primeira refeição. Da minha primeira banana amassada. Da primeira maçã raspada. Da minha primeira papinha. Também não me lembro de ficar na cadeirinha esperando o tão aguardado aviãozinho da refeição. Não me lembro da mamadeira, das estórias contadas antes de dormir, de não ter medo algum de nada e nem de ninguém. Não me lembro da alienação, não me lembro de ter sonhos e desejos, não me lembro de nenhuma noite dormida. E de nenhum dia acordado. Não me lembro de saber o que era o amor”.
As coisas de que não me lembro, sou é também um livro ilustrado. Imagens resgatadas do inconsciente. As belíssimas ilustrações da Raquel Matsushita revisitaram as obras do surrealismo: imagens ricas e profundas dos passados (histórico e pessoal), das lembranças (coletivas e fundadoras) e dos estímulos que recebemos – estímulos os quais essas crianças romenas nem sequer sonharam.
Se o meu (o nosso) livro de deslembranças é rico em sonhos fantásticos e surrealistas, repleto de “lembranças encobridoras”, como postulou Freud, o livro dessas pobres crianças romenas é vazio. Sem cor, sem forma, sem vida. Sem, infelizmente, os nossos mais lindos esquecimentos.

Autor: Jacques Fux
Ilustração: Raquel Matsushita
Editora: Aletria
ISBN: 978-65-86881-77-6
Idioma: Português
Formato:15 x 22 cm
Nº de páginas: 56
Ano de publicação: 2022
Onde encontra
Livraria Martins Fontes
Solisluna
Movimento Literário
Imagem: Os decretinhos, de Ceausescu, Jornal Opção