Catarina Sobral nasceu em Coimbra, tem 27 anos e vive entre sua cidade natal e Lisboa. Formada em Design pela Universidade de Aveiro, estudou também em Barcelona, antes de emendar o mestrado em Ilustração no ISEC, na capital portuguesa. Talento novo e indiscutível do país, chamou a atenção na Feira de Bolonha de 2012 com Greve, seu livro de estreia – Menção Especial do Prémio Nacional de Ilustração de 2011 – em que os pontos resolvem não mais trabalhar, nem para as letras, costureiras ou qualquer instituição. Pontos de vista já não se viam mais também. É com humor e inteligência que a autora carrega suas obras de modo bastante original. Seu último livro, Achimpa!, prêmio na categoria de “Melhor Livro Infantojuvenil”, da Sociedade Portuguesa de Autores 2013, é sobre uma palavra que as pessoas descobriram que existia, mas não sabiam como usar. De boca em boca, ela ganha sentido e retrata com leveza e ironia um pouco do ridículo da sociedade contemporânea. As técnicas da ilustração são mistas e revelam pinturas, colagens, cores e texturas incríveis, num traço em que as proporções podem tudo! Conheça um bocadinho mais da autora e sinta-se feliz ao admirar as imagens que seguem nessa entrevista.
Thaís Caramico – Sobre a infância e o desejo de pintar desde cedo. Quais são suas memórias e como isso fez parte da sua vida?
Catarina Sobral – Da mesma forma que faz parte da vida de todas as crianças. Pintar é intuitivo, vem antes da expressão escrita e não precisa de ser aprendido. Depois aprende-se a ler e muitas vezes para-se de desenhar (embora nunca se pare de escrever). Lembro-me de desenhar nas paredes e nos livros dos meus pais (que não eram para colorir). Lembro-me de ler muita banda desenhada, ver muitos filmes de animação e tentar copiar aquilo que via. Há crianças que querem ser bailarinas ou astronautas, eu queria ser pintora. Depois quis ser muitas outras coisas mas nunca parei de desenhar.
TC – Em que momento você decidiu estudar artes e quando veio a escolha dos livros infantis?
CS – Em Portugal, temos de escolher um curso quando vamos para o 10º ano. Nessa altura tive muitas dúvidas – já não achava que ia ser pintora –, mas sentia que tinha de seguir uma área criativa e, portanto, escolhi o curso de artes. No final do 12º ano, já sabia o que queria fazer: livros, sobretudo capas, então fui para Design. Como não consegui fazer nenhum ao fim de dois empregos como designer gráfica, decidi fazer uma especialização em ilustração. Já tinha pensado em fazê-la quando acabasse a licenciatura, porque divertia-me muito mais a fazer ilustração e não me era tão difícil como trabalhar a tipografia, a paginação etc. Entretanto, fui fazendo alguns cursos de ilustração. Tal como nunca parei de desenhar, também nunca parei de comprar livros ilustrados “para crianças”. Percebi então que era o que mais gostava de fazer, tirei o mestrado e, antes de o acabar, já tinha publicado um livro.
TC – Teus dois livros seguem um estilo de brincar com as palavras, trazem narrativas autênticas e sequenciais, meio sem fim, são completamente harmoniosos com as ilustrações incríveis. Como você cria, o que vem antes, a ilustração ou o texto?
CS – As minhas ideias podem ter origens muito diferentes: uma peripécia (o desaparecimento de todos os pontos), uma forma de encadear os eventos da história (o elo narrativo – a palavra achimpa é como um objeto que vai mudando de dono), a relação de congruência ou incongruência entre o texto e a ilustração (há um terceiro livro a caminho que sairá no início de 2014). São inspiradas por várias formas de arte: o HQ, a literatura, o cinema, outros álbuns ilustrados… e depois transformam-se num tema ou num enredo.
Por isso, o texto tem aparecido sempre antes das ilustrações, mas a ordem das páginas ou as imagens que a história me sugere, por vezes, ajudam a arrumá-lo. Depois tento traduzir o tom da história para a ilustração (a harmonia de que falas), e esse é um processo muito demorado e muito frustrante, porque não consigo repetir técnicas ou formas de representação se o tom das histórias é tão diferente – e então tenho de descobrir uma expressão que ainda não existe, que nunca fiz antes, e que também é minha.
Greve tinha de ser proletário, sindicalista, com referências aos cartazes construtivistas, à arte degenerada, às composições de imagens fotográficas em preto e branco e tipologia vermelha. O Achimpa teria se ser uma espécie de travelling urbano, não apenas porque a palavra vai passando de boca em boca, mas para ir revelando um pouco do ridículo da sociedade contemporânea. De uma forma sutil, é um retrato irônico de um certo modo de ser português: a inércia em avançar, a acrítica adoção de pontos de vista dos especialistas, a inveja do que vem de fora. Na frase “No estrangeiro ainda as há… e são verdes!”, subverte-se a expressão “Ah, mas são verdes!”, que exprime um falso desdém. Neste caso, manifesta-se uma grande consideração pelo estrangeiro, mais à frente reforçada na exclamação “Que país é este onde já não há achimpas?!”. Por isso os meus livros podem parecer, à primeira vista, tão diferentes.
TC – Quem são seus mestres nos livros infantis, referências que estão sempre por perto?
CS – Tantos! Ou porque são grandes ilustradores, grandes picture book makers, mestres em composição, contraste, predomínio, cor…. Para citar alguns: Wolf Erlbruch, William Wondriska, Enzo Mari, Oliver Jeffers, Afonso Cruz, Madalena Matoso, Anne Herbauts, Beatrice Alemagna, Blexbolex, Tiago Albuquerque.
TC – Como você enxerga a literatura para crianças e jovens em Portugal hoje?
CS – Está a atravessar uma ótima fase. Eu preferia chamar-lhe literatura ilustrada (é para todos, convenhamos) e embora ainda não seja possível, com sucesso, produzir ou traduzir livros de imagens que fogem claramente ao rótulo infantojuvenil, tem-se caminhado nesse sentido. Para o nosso tamanho temos uma considerável lista de boas editoras, que fazem livros de autores portugueses com enorme qualidade e que também trazem os bons títulos de autores estrangeiros, dos clássicos ao mais atual estado da arte. Por isso não deverá estar assim tão longe o aparecimento de livros mais excêntricos, da natureza dos de uma Corraini ou de uma Éditions des Grandes Personnes. E para além de grandes editores, temos (sempre tivemos e continuam a aparecer) grandes escritores e cada vez mais, bons ilustradores.
TC – Há pequenas e excelentes editoras no seu país, gente que capricha muito. Me fala um pouco da sua “parceria” com a Orfeu Negro.
CS – Podes tirar as aspas, é uma verdadeira parceria. Na Orfeu Negro os livros são o resultado de um trabalho de equipe, as decisões são sempre tomadas em conjunto, o processo é acompanhado por todos ao meio milímetro. E digo ao meio milímetro porque um milímetro é demasiado grande quando se trata de aumentar um bocadinho um espaço entre caracteres, ou puxar uma coisinha-de-nada a imagem para o lado. E na Orfeu capricha-se assim. Nos livros, nos book trailers, nas newsletters, nos eventos… Pensa-se no álbum ilustrado como um livro-objeto, que comunica pelo volume que tem, pela textura do papel, pela tipografia, um livro que não acaba na forma do livro mas pode ser uma exposição, uma oficina para famílias, um jogo num jardim. E como a Orfeu há a Bruaá, a Pato Lógico, as Eterogémeas, a Planeta Tangerina, cada qual com uma linha editorial própria, mas com o mesmo cuidado e rigor a fazer boas edições.
TC – Greve ganhou destaque em Bolonha no ano passado. Achimpa acaba de ganhar um prêmio. Há novidades para Bolonha este ano?
CS – Greve foi selecionado para a Exposição do País Convidado, comissariada pelo Eduardo Filipe e pela Ju Godinho, que entretanto seguiu para São Paulo e agora vai para Bogotá. Mas também ganhou uma Menção Especial do Prêmio Nacional de Ilustração e por isso volto a Bolonha este ano. Sim, para esta feira já levamos Achimpa impresso (e não apenas em projeto) e levamos um novo projeto. Também vai ser lançado o novo livro da editora italiana Bas Bleu, com um capítulo ilustrado por mim. Chama-se Lisboa? e é o segundo livro da coleção CITYBOX – Guide per disorientarsi in città. É escrito pela equipe da Bas Bleu: Roberto Comunian, Valeria Cappelli, Chiara Di Benedetto, Alessandro Lise e Frank Rongue e é ilustrado pelo André da Loba, pela Sherley Freudenreich, pela Mariana Zanetti [autora de O Leão e a Estrela, Cia. das Letrinhas] e por mim.
TC – Além de autora, você também faz animações. Flerta com tudo que é arte?
CS – Flerto, claro! Por isso vou tentando escrever, dançar, fazer cinema de animação… Eu faço os book trailers da coleção Orfeu Mini, que são simples animações de computador. Embora também já tenha experimentado fazer animação de recortes e tenha tido um pequeno filme de 10 segundos em exibição no Festival Internacional de Cinema de Roterdã (num programa para crianças chamado Not Kidding), estes filmes são bastante diferentes. Não são desenhados nem escritos por mim, têm dois minutos no máximo e todos os constrangimentos de um book trailer (não são animações comme il faut). Só temos as imagens do livro e por isso não podemos fazer os movimentos, os raccords ou a narrativa que nos apetece. Ainda assim, adoro fazê-los e nunca me canso de os ver.
TC – Tem o sonho de ilustrar o livro de algum autor ou escrever para algum ilustrador?
CS – Gostaria muito de ilustrar textos de outros autores. Gostaria muito mesmo de ilustrar um texto do José Fanha, do Richard Zimler ou do Afonso Cruz. Acho menos provável o contrário, mas apenas porque não me considero uma escritora.
TC – Você estreou na literatura infantojuvenil, e Greve já foi levado pro Brasil. Agora, pós-Bolonha, sabemos que Achimpa também será publicado no país. Como é isso para você?
CS – É bom manter os nossos títulos na mesma editora, porque se nos revemos no seu catálogo – que é o mesmo que dizer na sua identidade – também estamos a manter a nossa identidade autoral. E ao publicar outra vez na mesma editora sentimo-nos em casa (ou não a designássemos por “casa editorial”). Sobretudo fico entusiasmada porque o Greve não foi apenas mais um título escolhido para o catálogo da WMF, mas representou um autor novo e o início de uma relação. Tal como a Orfeu Negro, a WMF Martins Fontes, no Brasil, e as Éditions Hélium, em França, gostam de seguir a obra de um autor, e por isso não sinto que estou a trabalhar de um modo distanciado com três editoras ou empresas, sinto que tenho três editores e que os conheço pessoalmente.
TC – Tem vontade de conhecer o Brasil e contar suas histórias para as crianças de lá?
CS – Muita vontade! Pelo país que é, pelo valor que dão à cultura, à literatura ilustrada e, claro, pela língua. Há sempre qualquer coisa que fica perdida na tradução, por menor que seja, mas entre o português dos dois países esse nada é significativamente menos importante. E como as minhas histórias giram à volta da língua, seria um país de excelência para as contar.