Colonialidades, infâncias, imaginação e livros ilustrados

No mundo que cá estamos, no aterro que custeou a sustentação da Europa como centro, haverá ainda um luar que acenda a beira d’água, e, ali, os de vista forte e intuição segura irão ouvir as risadas dos curumins que brincam.
Luiz Rufino, Vence demanda

O autor quilombola Antônio Bispo dos Santos, também conhecido como Nêgo Bispo, se vale, em sua obra, de um vocabulário poético e pungente para desmantelar os fundamentos coloniais que nos são impostos ampla e cotidianamente, evocando, em sua escrita encharcada de oralidade, outros modos de vida, outros saberes possíveis. Semeando palavras; germinando vivências; e confrontando as muitas camadas da monocultura desenvolvimentista da empreitada hegemônica, a obra de Bispo se firma como chão de terra fértil para a contra colonialidade, em um projeto de enfrentamento e crítica ao colonialismo que, vale ressaltar, diz do movimento de resistência que se inaugura desde os primórdios da invasão colonial. No que diz respeito aos estudos da atualidade, é possível considerar que a contra colonialidade também se alinha, mais amplamente, com outras nomenclaturas de epistemologias insurgentes, como a descolonialidade e a decolonialidade.

Uma pista para a possibilidade aqui pretendida – de tessitura de relações entre contra colonialidades e o período da infância – consta nos parágrafos iniciais que inauguram o livro A terra dá, a terra quer. A obra começa com um relato de Bispo a respeito do começo de sua vida, em uma generosa partilha de suas memórias de menino, impregnadas pelo canto dos pássaros; o encontro de gerações; a observação das mudanças meteorológicas dos dias; a fartura dos frutos nas árvores; a palha e a madeira das casas; os ruídos e sensações da natureza; os caminhos na roça; a força da coletividade presente nas atividades do quilombo. Nas palavras de Bispo, “são memórias recorrentes, para as quais eu volto sempre que encontro um obstáculo na minha caminhada. É onde me reanimo e é de onde sou novamente remetido, agora com uma força maior, que ultrapassa obstáculos e dá continuidade ao percurso” (Bispo dos Santos, 2023, p. 10).

Como autora ilustradora de livros ilustrados, procuro exercitar com frequência o caminho de retorno não apenas às memórias de infância, mas também a um certo estado criativo que percorra as possibilidades da inventividade infantil, no bojo das inesgotáveis possibilidades da imaginação como repertório do potencial1. E quantos não somos os que, em diversos momentos de nossa vida adulta, sentimos que podemos percorrer um longo caminho de volta aos primeiros dias, remando contra a corrente do tempo (Bosi, 1979, p. 342)? Ecléa Bosi, em Memória e sociedade: lembrança de velhos, sugere possibilidades de compreensão do tempo para além do paradigma colonial da linearidade, nos contando sobre “uma apreensão do tempo dependente da ação passada e da futura, diversa em cada pessoa” e de um “tempo represado e cheio de conteúdo” (Idem, p. 344). Para a autora, os períodos da vida operam em ritmos singulares, sendo que a infância “é larga, quase sem margens, como um chão que cede aos nossos pés e nos dá a sensação de que nossos passos afundam” (Idem, p. 336).

Assim como Nêgo Bispo, é nos passos fundos da infância que encontro a essência do que me reanima e de onde retorno fortalecida, apesar das muitas diferenças contextuais entre meus antecedentes urbanos e a vivência quilombola de Bispo. No meu caso, retorno, entre muitas lembranças, aos livros na estante; aos cadernos de desenho e giz de cera; às cidades impossíveis construídas sobre o tapete; aos cacarecos e miudezas nos meus bolsos; aos túneis misteriosos; aos tanques de areia; às bonecas de plástico; à sombra das árvores na calçada quente; ao cheiro de borracha dos pneus cantando no asfalto; ao medo de atravessar a rua; às flores sujas catadas no chão; ao ateliê de pintura de meu pai; ao frio na barriga ao descer o barranco de bicicleta; às brincadeiras de faz-de-conta; ao baú de fantasias; e, principalmente, ao interesse em decifrar e recriar o que está em minha volta como se estivesse conhecendo o mundo pela primeira vez.

Nesse movimento de rememoração, cada um de nós acessa suas particularidades e histórias de vida e retorna a lugares diversos. A infância não é uma coisa só, no singular. As infâncias são múltiplas, são plurais, assim como os tantos saberes que a ideologia dominante branca, masculina e eurocêntrica busca invisibilizar no Brasil. Neste país, apesar dos mais de trinta anos de ECA2, o direito à infância lamentavelmente está longe de figurar uma garantia para toda a população, e crianças negras e indígenas ocupam o centro dessa problemática. As infâncias tem arrancadas suas possibilidades de serem exercidas em sua plenitude quando são alvo das muitas violações de direitos decorrentes das desigualdades que caracterizam o colonialismo – e, em especial, de sua forma de violência mais estruturante, o racismo.

Segundo dados do IBGE de 2016, 2,4 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos estavam em situação de trabalho infantil no Brasil. Destes, 1,7 milhão exerciam também afazeres domésticos de forma concomitante ao trabalho ou estudo. O problema afeta, em especial, meninas e meninos negros. Do total em trabalho infantil no Brasil em 2016, 64,1% eram negros. Na Região Norte, este percentual era ainda maior, 86,2%, seguido da Região Nordeste, com 79,5%, e do Centro-Oeste, com 71,5%. No Sudeste e no Sul eram 58,4% e 27,9%, respectivamente (UNICEF, 2020, grifo nosso).

É insuportável que uma experiência tão fundamental quanto a da infância possa constituir um privilégio em decorrência da destrutividade da trama colonial. Infância é direito, e um direito primordial jamais deveria constituir um privilégio. Tocamos o ritmo dos nossos dias, entretanto, tomando a barbárie por normalidade, habituados ao embrutecimento e ao rastro de violência que se inscreve em nossas histórias. No contexto da redoma blindada da branquitude que me engendra, há um esforço colonial de justificar privilégios como méritos individuais, ou de naturalizar a segregação de ambientes e de territórios como algo corriqueiro, inevitável, que não nos diz respeito, como se nossas existências pudessem estar dissociadas das injustiças sociais que permanecem sangrando com o legado escravocrata da invasão europeia, como se fosse possível se esquecer disso. Conforme aponta Luiz Rufino, em Vence-demanda: educação e descolonização, trata-se de uma “longa herança colonial que nos escolarizou e que não se envergonha em esconder que tudo o que foi esquecido diz também sobre a capacidade de naturalizarmos esse mundo radicalizado na violência” (Rufino, 2021, p. 23).

Dentre a capilaridade de caminhos a serem percorridos no enfrentamento ao colonialismo, desde a camada mais sutil até suas mais gritantes manifestações, talvez alguns percursos possíveis morem justamente nesse movimento de retorno à meninice praticado por Nêgo Bispo, revisitando as pulsantes “memórias maravilhosas” de seus primeiros passos (Bispo dos Santos, 2023, p. 10). Penso que uma das chaves da postura contra colonial reside justamente na poesia de se estar no mundo em estado de infância.

Nesse sentido, urge a necessidade de recuperação das infâncias. Das infâncias maltradas, das infâncias que não puderam ser vividas, das infâncias que perdemos dentro de nós, das infâncias plurais vitimadas pelo apagamento que resulta da ideia de uma infância única. Não se trata aqui do romantismo de uma suposta “pureza” infantil, sendo a criança compreendida como receptáculo simplório e inofensivo do monopólio discursivo da moral e dos “bons” costumes; nem do pressuposto de que o território da infância esteja imune às disputas coloniais que se impõem sobre nossos imaginários desde nossos primeiros dias de existência em sociedade, conforme evidenciado pelo frenesi mercadológico que mira e capitaliza o público infantil com conteúdo estereotipado, desprovido de diversidade e aprofundamento. Trata-se, ao contrário, de certa curiosidade interrogante que a criança possivelmente consegue manter acesa mesmo em contextos adversos, como característica de um período da vida em que talvez tenhamos mais facilidade de nos preservar dos cânones binários que almejam separar o corpo da mente, a razão da emoção e o pensamento da imaginação.

O corpo infantil, inteiramente ativo, pronto para explorar o mundo que se desdobra em uma infinidade de novidades a serem descobertas, é um dos principais alvos da dominação colonial. Sobre ele, recaem tentativas desesperadas e agressivas de disciplinar, normatizar, adequar, limitar, compartimentar, doutrinar, adestrar. Como se a escolarização estivesse em função de aniquilar, pouco a pouco, os traços da própria infância, objetivando a formação de adultos sem imaginação. Conforme observa Luiz Rufino, “é inegável que o projeto de mundo sustentado na lógica colonial submete a criança à condição de subordinação de um modo adultocêntrico” (Rufino, 2021, p. 70). Com efeito, o autor também nos conta que a “colonização não se faz sem que haja um plano de ensino e um currículo que institua a aprendizagem do ser colonizado via violência e esquecimento de si para sua transformação em algo permanentemente em desvio e submisso” (Rufino, 2021, p. 22).

As tentativas generalizadas de contenção da força infantil evidenciam justamente a natureza libertária e transgressora de se ser criança no mundo. Não por acaso, em Vence- demanda, Luiz Rufino abre o capítulo Desaprender o cânone com o relato de um diálogo que presenciou entre uma criança e sua professora. No episódio evocado, a menina, cobrada pela professora a respeito de uma aprendizagem dos encontros anteriores, afirma: “eu aprendi a esquecer” (Rufino, 2021, p. 18). Rufino, a partir dessa provocação, desenvolve seu ensaio tecendo a ideia de que “desaprender é um ato político e poético diante daquilo que se veste como único saber possível ou como saber maior em relação a outros modos” (Idem, p. 19). Ato político e poético dentre as tantas insurgências que brotam do espírito questionador da criança. Mais adiante, no capítulo A escola dos sonhos, Rufino, tal como Bispo, também evidencia seu processo de remar de volta aos primeiros dias.

Se tem algo que persigo desde quando me percebi adulto, alterado pelo acúmulo de coisas apresentadas ao longo do temos, é caçar nessa “adultice” o menino que ainda sou. Não é porque uma pessoa tem a idade que for que ela deixa de ser o que ela era quando estava nisso que convencionamos chamar de infância. A sabedoria de rodopiar nas voltas dessa espiral conhecida como existência está exatamente na capacidade de encontrar a meninice no velho e a força do tempo naquilo que é movido pela curiosidade, pela brincadeira e pelo descobrimento das coisas (Idem, p. 58).

Deixar-se guiar pela “curiosidade, pela brincadeira e pelo descobrimento das coisas” é movimento de resgate do encantamento da vida, na contramão de um processo colonizador que “incutiu traumas e desvios nas crianças” (Idem, p. 69). Rufino encerra o livro Vence-demanda: com um capítulo chamado Guerrilha brincante, abrindo caminhos para as tramas da esperança a partir da recuperação do brincar. Um brincar que não se limita ao período da infância, mas que é modo de existência em todas as fases da vida. A “perda da brincadeira como estrado matricial do ser” aqui caracteriza o desvio imposto pela lógica dominante de que “brincar não é coisa para adultos, e ser adulto é a condição a priori desse mundo que não brinca – somente produz, consome, descarta e visa lucro” (Idem, p. 70).

Para um mundo que investe na dominação e alteração das formas de se usar o corpo, invocar a memória, sentir o afeto, viver a comunidade e tecer a partilha, a brincadeira como expressão da liberdade do ser é um ato de descolonização. […]

Acredito, pois cultivo um jeito gaiato de tramar a esperança como plano infalível, que a rebeldia e a inconformidade diante desse mundo sisudo não sejam nutridas somente com dosagens de amor e fúria, mas também com um tanto de brincadeira. Afinal, a lógica colonial é escassa de poesia. Dribles de corpo, gargalhadas, esconderijos, invenções mirabolantes, bodoques, bexigas d’água, exércitos de pés sujos e dedões arrebentados nos paralelepípedos são sempre bem-vindos para ajudar a desatar os nós dos corpos que se acostumaram a permanecer tensos e em prontidão para a batalha (Idem).

Nessa infância caudalosa que transborda para a vida inteira, a transgressão brincante tem a força de desmantelar a lógica dominante com o jorro da poesia, e evoca o brincar como expressão da liberdade do ser.

Peço licença para estabelecer, novamente, relações entre os assuntos aqui desenvolvidos e minha experiência pessoal: como alguém que produz e pesquisa livros ilustrados, tenho uma trajetória de investigação a respeito das possibilidades de entendimento da imaginação como forma de resistência. Explorei, em meus trabalhos acadêmicos, a imaginação como possibilidade de reinterpretação do mundo, como atividade de alcance coletivo, como agente potencial de transformação, sempre amarrando relações entre essa faculdade e o universo dos livros ilustrados3. Na urdidura de relações que a Guerrilha brincante de Rufino me faz visualizar com meus escritos anteriores, vou experimentar aproximar o tema da brincadeira com o conceito da imaginação e o universo do livro ilustrado, campos de investigação que aqui vejo integrados em muitas camadas. Nesse contexto, o livro ilustrado, marcado pelas aberturas interpretativas possibilitadas pelo jogo semântico entre texto e imagens, é compreendido como objeto mediador, no sentido da ativação da imaginação, do pensamento crítico, de ressignificações possíveis de compreensão do mundo.

No estágio presente da caminhada em que me encontro, me interessa buscar exemplos de representações da imaginação infantil como forma de transgressão no contexto de histórias apresentadas em livros ilustrados. Ou ainda, recorrendo às palavras de Rufino a respeito do ato de brincar: desejo mapear histórias que retratem uma “remontagem” das dimensões fraturadas pela empresa colonial (Rufino, 2021, p. 74), por meio da imaginação, inventividade e brincadeira da criança. Para tanto, vou recorrer ao livro ilustrado Julián é uma sereia, de Jessica Love, como exemplo.

Capa da edição brasileira do livro Julián é uma sereia, Editora Boitatá, 2021.

Na contracapa do Julián é uma sereia, a narrativa é resumida da seguinte forma:

Todo sábado de manhã, Julián vai com a avó para a natação. Até que um dia, voltando de metrô para casa, eles veem três mulheres… e tudo muda: o garoto se encanta com aqueles lindos cabelos, com o brilho, com as caudas de sereia e com a imponência delas. Mas o que será que sua avó achará disso?

A pergunta “mas o que será que sua avó achará disso?” sugere a sutileza da tensão colonial que atravessa a história de Julián. Como esperamos, atualmente, que a maioria das avós reajam à crianças que não se identificam com a normatividade binária de gênero imposta culturalmente? Acompanhamos Julián e sua avó, Vozita, quando, na volta da natação, ambos se deparam com três mulheres que chamam a atenção de Julián. Para a criança, as três são sereias, em um encontro que expande sua imaginação feito um oceano inundando o vagão do metrô com uma imensidão de águas calmas em que Julián pode nadar livremente e também tornar-se sereia. Nesse devaneio, um grande peixe azul-marinho lhe entrega um colar.

O sonho é interrompido pelo chamado de Vozita para o desembarque na estação, mas o encantamento permanece em Julián, que conta: “– Vó, eu também sou uma sereia”. Ecoando novamente Rufino, “o sonho […] se expressa como uma espécie de alargamento do tempo, do espaço e da fruição de linguagens que possam mobilizar outras maneiras de sentir a vida” (Rufino, 2021, p. 24).

Quando os personagens retornam à casa, a avó se ausenta para tomar um banho, pedindo para que a criança “se comporte”, e Julián tem uma ideia. Utilizando as folhas da samambaia do vaso da sala para adornar os cabelos e o tecido da cortina para criar uma cauda, Julián improvisa adornos para mimetizar as características de uma sereia. No momento em que vemos Vozita se deparando com a situação, com um olhar de desaprovação e virando as costas, o corpo brincante de Julián murcha, inseguro, em um breve momento de suspensão na história, no qual a possibilidade da repressão por trás do carrego colonial4 quase se materializa.

No entanto, Vozita retorna, já vestida para sair, e, assim como o peixe do sonho, presenteia Julián com um colar. Vozita e Julián dão as mãos e saem pelas ruas, rumo ao encontro de um grande desfile festivo de pessoas ornamentadas com adereços que remetem à diversidade colorida das criaturas que habitam os mares. “Sereias…” – susurra Julián, em deslumbramento. Vozita encoraja: “Igualzinhas a você, Julián. Vamos com elas”. Com o acolhimento de Vozita, Julián pode expressar a liberdade de ser quem é, em uma narrativa permeada por sensibilidade e amor.

A história de Julián passeia pelas possibilidades metafóricas da água: se a imagem inicial retrata Julián nadando no espaço restrito pelo contorno da piscina; na ilustração que fecha a narrativa, após Julián ter caminhado ainda mais ao encontro de sua própria identidade, vemos sereias em um espaço aquático que não tem mais bordas, transbordando para além dos limites da forma física do livro.

Em Julián é uma sereia encontramos um exemplo de representação da imaginação transgressora que articula subjetividades pessoais e espaços sociais para abertura de outras possibilidades perspectivas sobre o mundo. Explorando as relações entre texto e imagens, e economizando palavras de modo a ampliar aberturas poéticas da visualidade, a autora Jessica Love se atenta à representação de detalhes que sugerem que não há uma cisão absoluta entre o plano da realidade e o universo do devaneio imaginativo exercitado por Julián. Pelo contrário, realidade e imaginação aqui integram-se e transformam-se mutuamente, com o elemento da água atravessando tanto as passagens do cotidiano, quanto da fabulação. As ilustrações nos apresentam diversos indícios dos transbordamentos entre essas camadas: na rua, ao sair da natação, vemos uma pintura mural de peixes por trás de Vozita e Julián, com o cenário da arte urbana indicando um dos temas centrais que irão habitar o imaginário da criança. Ou, ainda, o peixe que aparece no sonho de Julián já anuncia e espelha o movimento acolhedor de sua avó, o que fica marcado pela escolha de representar Vozita, nas parte final da história, com um vestido da mesma cor e textura que a do corpo do peixe.

Nas imagens da grande festa em direção ao mar, já não vemos fronteiras tão nítidas entre o que é real e o que é imaginado. Vemos festa, pertencimento, corpos brincantes, alegria e esperança.

A imaginação retratada em Julián é uma sereia não configura uma “fuga da realidade”, como tão frequentemente essa faculdade humana é descrita. A imaginação aqui é força motriz da transformação, e não algo que se encontraria “à parte” dos processos cotidianos do pensamento. Conforme observa Regina Machado, podemos considerar a imaginação como “potencialidade humana fundamental para qualquer idade ou atividade; não existe pensamento genuíno sem imaginação” (Machado In Barbosa, 2012, p. 31). Nesse sentido, a imaginação aqui se relaciona com o que a autora Maxine Greene denomina como “imaginação social”: “a capacidade de inventar visões de como deveria e poderia ser nossa sociedade deficiente, de como deveriam e poderiam ser as ruas em que vivemos, ou nossas escolas” (Greene, 2005, p. 17). Nessa toada, imaginação é forma de resistência, pois “nos damos conta da dureza de uma situação somente quando temos em mente um estado de coisas melhor” (Idem). Poderíamos exercitar, a partir da imaginação social, uma espécie de “pensamento utópico” (Idem), sendo que em Julián é uma sereia essa reflexão passeia pela imaginação de outras formas de se compreender e trabalhar questões de gênero e sexualidade para além das representações limitadas a que majoritariamente somos expostos. No livro há um convite para o reconhecimento, acolhimento e celebração das diferenças por meio de exercício de se reinventar a organização da sociedade.

Que possamos, desde a infância, entrar em contato com obras diversas que desafiem os cânones hegemônicos e que promovam outras leituras de mundo, como é o caso de Julián é uma sereia, é algo que diz da importância da bibliodiversidade e da literatura como direito universal. O termo “bibliodiversidade”, nesse contexto, se alinha à definição da autora Julia Alves dos Santos, ao considerar que o mesmo se refere à “uma produção editorial que seja pautada na diversidade de expressões, formatos e culturas existentes […] dando liberdade ao acesso dos leitores e a uma igualdade literária” (Alves dos Santos, 2022, p. 4). O acesso a essa liberdade de expressões também ecoa a obra de Antonio Candido a respeito da relação entre direitos humanos e literatura, pois o autor acredita que “uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” (Candido, 2004, p. 126). Candido assim reconhece a literatura – em seu significado amplo, pois inclui “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura” (Candido, 2004, p. 124) – como uma necessidade universal.

Vista deste modo, a literatura aparece claramente como manifestação universal […]. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável deste universo, independente da nossa vontade. E durante a vigília, a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito – como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance. Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito (Candido, 2004, p. 125).

Aceitando-se a literatura como direito humano inalienável, distancia-se a ideia da arte e da imaginação como atividades recreativas reservadas à minorias privilegiadas ou entendidas como devaneios inofensivos. Se imaginar é existência, se é uma manifestação que diferencia a todos nós enquanto seres humanos, observamos aqui o reconhecimento de que “a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis de cultura” (Candido, 2004, p. 126).

Nessa tessitura de relações entre a literatura e a experiência humana, também podemos percorrer as reflexões da antropóloga Michèle Petit, que considera a possibilidade dos livros servirem de “molde ou magma concretos de uma vida e contribuir para sua estruturação” (Danon-Boileau, 2007, p. 150). Petit entende a literatura como “uma reserva da qual se lança mão para criar ou preservar intervalos onde respirar, dar sentido à vida, sonhá-la, pensá-la” (Petit, 2009, p. 285).

[…] a literatura, a cultura e a arte não são um suplemento para a alma, uma futilidade ou um monumento pomposo, mas algo de que nos apropriamos, […] que deveria estar à disposição de todos, desde a mais jovem idade e ao longo de todo o caminho, para que possam servir-se dela quando quiserem, a fim de discernir o que não viam antes, dar sentido a suas vidas, simbolizar as suas experiências. Elaborar um espaço onde encontrar um lugar, viver tempos que sejam um pouco tranquilos, poéticos, criativos, e não apenas ser o objeto de avaliações em um universo produtivista. Conjugar os diferentes universos culturais de que cada um participa. Tomar o seu lugar no devir compartilhado e entrar em relação com outros de modo menos violento, menos desencontrado […] (Petit, 2009, p. 347).

O depoimento de Petit espelha a possibilidade do contato com a literatura como experiência transformadora, no sentido do jogo de correlações despertado pelas convergências entre obras e espectadores, de modo que ampliamos aqui o recorte de interesse para além do conteúdo do livro, expandindo o campo de visão sobre obras literários para os desdobramentos e relações dialéticas que frutificam da experiência leitora. Para pensar sobre a especificidade da categoria do livro infantil e seus atravessamentos na formação dos sujeitos, podemos também percorrer as reflexões do pesquisador Dheiky do Rêgo Monteiro Rocha, que aponta pistas para a importância que a fruição de livros ilustrado pode representar na construção identitária de seus leitores:

Essa articulação das linguagens na narrativa do livro infantil ilustrado contribui para a formação de sujeitos leitores atrelados à história, que fazem uso das linguagens à sua disposição no exercício da apropriação e expressão da língua e das artes. Nesse sentido, isso os habilita para o diálogo com o mundo, munidos de suas visões construídas no aporte das sensibilidades, das reflexões e das ações que convergem para um estado contínuo e revolucionário da história de leitura de cada um deles (Rocha, 2023, p. 155).

No sonho do devir compartilhado, encaminho o encerramento deste experimento de relações, em um fechamento que, talvez, fale mais sobre começos do que conclusões. Na tentativa de costurar algumas das nuvens de pensamentos que aqui se encontraram, recorro novamente às memórias da infância e às palavras de Luiz Rufino quando ele pergunta: “Por que brincar?”. Gostaria de integrar mais duas perguntas à essa primeira, questões relacionadas ao meu campo de atuação que, a meu ver, correspondem ao universo do brincar: “Por que ler, ver ou ouvir histórias?”; “Livros ilustrados para que?”. A resposta de Rufino se faz casa para sentir e pensar esse questionamentos:

A brincadeira invoca um reposicionamento do ser via corpo, memória, afeto, comunidade, partilha e inacabamento de si. Brincar não é apenas algo reduzido a uma determinada experiência, mas uma libertação da regulação submetida a esses aspectos que compõem o seu ato. Para um mundo que investe na dominação e alteração das formas de se usar o corpo, invocar a memória, sentir o afeto, viver a comunidade e tecer a partilha, a brincadeira como expressão da liberdade do ser é um ato de descolonização (Rufino, 2021, p. 70).

Que possamos aproveitar a literatura, o jogo, a imaginação, as infâncias e as brincadeiras para nos reposicionarmos diante da empreitada colonial por meio de afeto, partilha, pluralidade, brincadeira, curiosidade. Não esqueçamos que não há um só caminho possível de oposição ao colonialismo, pois se destrona um rei de muitos modos (Rufino, 2021, p. 72). Vamos remar de volta às nossas pulsantes lembranças dos primeiros dias no mundo, de encontro à sabedoria dos anciões, pois, enquanto nos vendem o modelo do “começo, meio e fim”; Nêgo Bispo nos faz lembrar do que, transfluindo, somos “começo, meio e começo” (Bispo dos Santos, p. 49), em um tempo espiralado em que a criança e o velho podem se integrar. Enquanto envelhecemos, conseguimos ainda regar a caminhada de infância e poesia. Se for para esquecer de algo em nossas trajetórias, que não seja a meninice. Ao invés do esquecimento de si como parte de uma política de morte e dominação cultural de desarranjo de nossas memórias e de apagamento das ancestralidades dos povos, que o ato do esquecimento se direcione somente à monocultura colonial de valores forçados sobre nossos imaginários por anos a fio.

Conforme convida Luiz Rufino, façamos como a menina questionadora, exercitando a desaprendizagem do cânone cuja métrica ressalta o poderio do “homem branco, macho, heteropatriarcal, judaico-cristão, europeu, monorracial e capitalista” (Rufino, 2021, p. 24). Que nossas imaginações, assim como a de Julián, possam percorrer outras configurações possíveis de existência que não apenas aquela que nos parece imediatamente imposta.

* Este artigo foi produzido como trabalho final e em diálogo com as discussões e leituras realizadas no curso da disciplina Contracolonialidades e antirracismo no ensino das artes, ministrada pela Profª Drª Clarissa Suzuki no programa de Pós Graduação da ECA USP, entre os dias 12 e 16 de Agosto de 2024.

Referências bibliográficas

ALVES DOS SANTOS, Julia. Bibliodiversidade: conceitos e abordagens. Artigo on-line, 2022. Disponível em: <https://pt.slideshare.net/slideshow/juliasantosgt05-bibliodiversidadepdf/ 252430566>. Acesso em Setembro de 2024.

BISPO DOS SANTOS, Antônio. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora / PISEAGRAMA, 2023.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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DANON-BOILEAU, Laurent. La Parole est un jeu d’enfant fragile. Paris: Odile Jacob, 2007.

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MACHADO, Regina In BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. 8ed. São Paulo: Perspectiva, 2012.

PETIT, Michèle. A arte de ler: ou como resistir a adversidade. Tradução Arthur Bueno e Camila Boldrini. São Paulo: Ed. 34, 2009.

RUFINO, Luiz. Vence-demanda: educação e descolonização. Rio de Janeiro: Mórula, 2021. SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Flecha no tempo. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.

ROCHA, Dheiky do Rêgo Monteiro. Ser criança no horizonte humanizador da literatura infantil: imaginários ilustrados de esperança. Humana Res, v.5, n.7, 2023. Disponível em:

<https://revistahumanares.uespi.br/index.php/HumanaRes/article/view/161>. Acesso em Setembro de 2024.

Notas:

  1. Menção a conceito cunhado pelo escritor Ítalo Calvino no capítulo Visibilidade do livro Seis propostas para o próximo milênio (Companhia das Letras, 2001). ↩︎
  2. O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que regulamenta o artigo 227 da Constituição Federal, define as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento, que demandam proteção integral e prioritária por parte da família, sociedade e do Estado. (Fonte: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/ publicacoes/o-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente>). ↩︎
  3. Ver Trajetórias de um fio de rio: narrar por imagens no contexto do livro ilustrado. Dissertação de Mestrado de Anita Prades. Disponível em: <https://repositorio.unesp.br/items/f93df79d-0659-4bd4-a8a0-3133c9e4e22c>. ↩︎
  4. Em Flecha no tempo, os autores Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino definem o “carrego colonial” como “um sopro de má sorte que nutre o assombro e a vigência de um projeto de dominação”, por meio da produção do esquecimento, da escassez e do desencanto, três aspectos relevantes do projeto moderno ocidental” (Simas; Rufino, 2019, p. 21). ↩︎

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  • Anita Prades

    Ilustradora, designer e atriz. Mestre pelo Instituto de Artes da Unesp. Ilustrou os livros Alberta e o pássaro azul (Terceiro Nome), de Cristina Mutarelli; Fábulas de La Fontaine (Melhoramentos), de Fernanda Lopes de Almeida; Cadê o Pintinho e Os incomodados que se mudem (Pulo do Gato), ambos de autoria de Márcia Leite; dentre outros. Autora do livro Fio de Rio (LIVRE/ Selo Emília). Membro da equipe editorial da Revista e do Selo Emília.

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