Conversas com o mundo de Katsumi Komagata

Tenho trabalhado com papéis para livros e também workshops. As crianças precisam aprender a tratar os papéis com delicadeza, do contrário eles se danificam facilmente. A sensibilidade humana deve ser aprendida na infância. Livros ilustrados, portanto, devem permitir às crianças experienciá-los como objetos, além de compartilhar com a mãe e o pai experiências que irão dar apoio ao seu processo de crescimento.1

Gostaria de fazer desenhos para que as pessoas sentissem o ar, o tempo e o espaço.2

Katsumi Komagata

Os nadinhas-tudões e a figura da espiral

Uma vez, um artista disse para outro artista que uma vez me disse que os artistas muitas vezes pesquisam de um modo interesseiro, ao contrário dos críticos, historiadores e outros teóricos.

Eu estava começando a me aventurar pelo campo das artes visuais, e fiz umas esculturas minúsculas, onde um ínfimo brilhinho ou barulhinho ou rebarbinha eram fundamentais para serem percebidos. Mostrei para um amigo designer e ele me disse: mas como você vai mostrar esse trabalho para o mundo? Na época, ainda não sabia responder. Já tinha feito murais de grandes dimensões, e já havia observado também um certo trabalho de uma aluna que, de tão delicado, não tinha tido força suficiente para nascer. Comecei a chamar o que fazia de nadinhas, e, aos poucos, vieram também os tudões. Percebi que os tudões precisavam ajudar os nadinhas a nascerem.

Caso contrário, eles ficariam para sempre escondidinhos, sem ter presença suficiente para serem notados.

Komagata é um grande mestre, capaz de fazer nadinhas nascerem em seus livros-tudões. Em I’m gonna be born, por exemplo, ele faz uma analogia entre o útero de uma mãe e um céu estrelado. Utiliza uma espiral de papel como metáfora tátil do cordão umbilical e também aberturas circulares nas páginas para mostrar o túnel por onde todos nós passamos antes de conhecer o mundo.

Pequena árvore

Tive contato com sua obra pela primeira vez através do livro Little Tree. Algum tempo depois, já havia iniciado meu mestrado cujo ponto de partida eram alguns livros de Bruno Munari, quando Valquíria Prates, curadora e estudiosa da área, me apresentou o arquivo ÓPLA Merano (Itália), que contava com alguns títulos do autor. Foi então que conheci também a associação Les Trois Ourses, responsável pela divulgação de seu trabalho na França e em outros países. Em 2012, Dolores Prades me fez uma proposta irrecusável: ajudá-la a ciceronear Komagata durante sua estadia em São Paulo por conta de uma série de eventos. Enfim, teria a honra de conhecer pessoalmente o autor daquela obra prima: o livro álbum mais lindo e delicado que eu já havia pegado nas mãos. E mais: eu havia sido encarregada também de algo que não era do meu domínio profissional. Teria a responsabilidade de traduzir a sua oficina no SESC Pinheiros, parte da programação do Conversas ao Pé da Página. Ele chegou, nos cumprimentou e começou a falar.

Ichigo ichie

Komagata iniciou a atividade nos contando que, durante a tradicional cerimônia do chá, havia descoberto a expressão ichigo ichie, que em português significa “primeiro encontro, última oportunidade”. E então pediu a todos que prestassem atenção naquele momento único e valioso. Afinal, não nos veríamos mais depois da oficina. Não como parte daquele mesmo grupo, não naquele contexto específico. 

Em determinado momento, eu estava tão atenta ao que ele dizia, que me esqueci da minha incumbência. Então ele falou, com muita simpatia: “– Você não vai traduzir?” E eu respondi: “– É mesmo!” Todos riram. Ainda bem que a maioria dos participantes sabia falar inglês. Mesmo assim, a comunicação naquele contexto era principalmente não verbal. Não só através dos desenhos coloridos sendo recortados pelas tesouras, mas também pela expressão calorosa de quem está, de fato, se divertindo.

Antes de sua chegada, eu estava preocupada até com o modelo das tesouras que a produção do evento iria comprar. Afinal, Komagata tinha mandado trazer todos os papéis diretamente do Japão, e por isso, pensei: ele deve ser muito exigente! Qual não foi a minha surpresa ao observar a espontaneidade de seu gesto ao cortar a primeira folha para uma demonstração inicial. Eu esperava um outro Komagata, já que seus livros têm acabamento impecável e muitos recortes extremamente precisos, com grande rigor construtivo. Fiquei pasma, examinando a forma solta com que trabalhava, enquanto explicava a proposta aos presentes. Em seguida, pensei: acho que essas tesouras estão ótimas! Tempos depois, me lembrei do braço relaxado do arqueiro Zen, como relata Eugen Herrigel em seu livro sobre aulas de arco e flecha no Japão.3

Komagata costuma oferecer essa mesma oficina para crianças ou adultos. Isto faz muito sentido, considerando que, em seus livros, a leitura é capaz de promover um encontro verdadeiro entre gerações. Ao final da atividade, ele pediu para que cada participante mostrasse seu trabalho na frente da sala, para toda a turma, um por vez. Eram cartões dobrados ao meio que continham surpresas, e a cada nova imagem revelada, ouvia-se um longo “Ohhhhhhh!” coletivo e risadas divertidas, ritual que acabou reforçando uma conexão muito particular entre as pessoas, como se fosse o ato de costurar alguma coisa, formando laços sucessivos.

Anna Castagnoli, em seu maravilhoso blog Le Figure dei Libri, descreve outra oficina em que ele seguiu um princípio semelhante ao propor que todos criassem imagens na parte de dentro de cartões dobrados em forma de sanfona. Ela conta que, no final, ele explicou-lhes o significado do exercício: “Não devemos confiar na forma como as coisas aparecem, elas escondem sempre tesouros. Se você se abrir e deixar as pessoas verem o que você esconde dentro, será uma festa para todos.”

A experiência e o silêncio

Tenho a impressão que Komagata não gosta de filmes de zumbis. Estamos precisando nos escutar mais, e não falar o tempo todo. Seus livros nos ensinam a parar e escutar o outro e a natureza, para que de fato as pessoas conversem, e prestem verdadeira atenção aos detalhes do mundo. O primeiro passo para isso é a desaceleração. Prestar atenção nas crianças, e deixar que elas prestem atenção nas coisas, pois estamos virando um monte de zumbis. Ele nos ensina que os campos da informação e da comunicação precisam estar conectados com o campo da experiência para que tenhamos mais qualidade nas relações humanas.

Segundo o teórico espanhol Jorge Larrosa Bondía, uma experiência pode ser definida como algo que nos acontece, e se torna cada vez mais rara num mundo tão acelerado e tão cheio de informações. Em seu texto Notas sobre a experiência e o saber da experiência4, ele diz o seguinte: “o sujeito moderno está atravessado por um afã de mudar as coisas. (…) não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece. A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (…) o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura.”

Os livros de Komagata são meditativos. Ele me ensinou a criar os meus próprios a partir de experiências verdadeiras. Nunca vou esquecer a primeira vez que vi um Rothko ao vivo, ou as pinturas de Agnes Martin. O mesmo aconteceu com Little Tree. E não será nunca possível reproduzir aquela sensação, pois a experiência de ter contato com algo pela primeira vez será sempre única. Estou fazendo um projeto no momento, e ao observar de relance uma cena no turbilhão da cidade, me dei conta de que a “experiência” está relacionada intimamente com a falta. E também com a memória. Recebemos um estímulo, criamos algo na nossa cabeça e completamos o que falta com invenção, sem perceber. 

O silêncio aguça os sentidos. Komagata trabalha com pouquíssimos elementos, o que nos faz perceber a importância dos “vazios”, potencializados ao máximo enquanto elementos fundamentais da comunicação. Ele deixa espaço suficiente para que o espectador – de qualquer idade – participe da criação e portanto tenha a sua própria experiência durante a leitura. Em A cloud, seu livro mais silencioso de todos, ele propõe que o leitor atue de forma análoga a um diretor de cinema, desmaterializando nuvens recortadas através de sombras tênues, que formam imagens em movimento sobre o papel.

Komagata e Munari

Tanto Munari quanto Komagata exploraram novas estruturas de organização para o livro como objeto.5 Os pequenos livros quadrados da coleção Little Eyes constituem um requintado estudo sobre percepção visual, com estímulos para as crianças investigarem o mundo. A obra de Munari é uma grande inspiração para ele. Ambos começaram a fazer livros para crianças quando seus filhos nasceram, tendo o jogo e a brincadeira como mote central. Livros para comunicar algo através do afeto. Livros para ensinar e aprender. “Sempre uma ideia nova para que a diversão nunca acabe”6. Segundo Kazumasa Nagai, um dos maiores nomes do design japonês, “a rara qualidade dos livros do Sr. Komagata vem do fato de ele saber ver sua filha crescer com amor e atenção. Acompanhando as etapas de seu desenvolvimento, ele conseguiu complexificar as formas e o jogo das cores utilizadas, ajudando assim a desenvolver sua inteligência e sensibilidade. Uma vez publicados, os seus livros facilitaram sem dúvida o diálogo e a confiança entre muitos pais e filhos.”7

Komagata desenha com recortes, e muitas de suas ilustrações, assim como muitas de Munari, não se limitam a uma página dupla. Por exemplo, nos livros Found it (Komagata), Na noite escura (Nella notte buia, Munari) e Nella nebbia di Milano (Munari), o papel vegetal é usado para dar transparência aos desenhos, possibilitando a leitura transversal do objeto. Nesses casos, qual seria a separação entre uma ilustração e outra? Algo parecido acontece em I’m gonna be born, em A cloud e também nesses dois livros de Munari, onde a unidade narrativa da página dupla é dissolvida através do uso de facas. Outra coisa que podemos observar é que tanto um autor como o outro transformaram seus livros em maquetes, seja pela utilização de mecanismos pop-up em Little Tree, seja pelo posicionamento de um gato desenhado que parece espiar do outro lado da página, em Na noite escura

O designer do papel e o papel do designer

Mais do que um criador de imagens, Komagata é um criador de objetos. Ou melhor, de imagens-objetos. Seus conhecimentos sobre design e produção gráfica permitem que já tenha em mente certos recursos como hot stamping, uso de facas e papéis específicos já nos momentos iniciais da concepção de seus livros. Tenho sempre a sensação de que os universos do design, da literatura, da criança e da arte deveriam se comunicar mais. Talvez seja por isso que Komagata tenha se identificado tanto com Munari, pois ambos transitam de modo exemplar nesses mundos, cada um à sua maneira.

Para finalizar, vou contar uma pequena anedota. Em 2012, quando Komagata esteve em São Paulo, numa ocasião em que tive a sorte de encontrá-lo com mais calma, eu lhe disse: “– Antes eu era designer, agora sou ilustradora…” E ele me respondeu: “– Como assim?” Fiquei meio desconcertada e tentei explicar. Ele então me falou, com delicadeza: “– Acho que você não entendeu muito bem o que é ser designer”. Eu pensei um pouco, e perguntei: “Qual o seu conselho?” E ele: “– Talvez procurar ter contato com grandes designers”. Não precisei pensar muito para responder, enfim: “Então eu já comecei!” E ele abriu um sorriso gigante. 

Viva Komagata!

Notas:

  1. Komagata, K. “O papel do papel”. Disponível em <https://emilia.org.br/o-papel-do-papel/>. Acesso em 7 de setembro de 2023. ↩︎
  2. AAVV. Farol de Sonhos: Katsumi Komagata. Cascais, Les Trois Ourses, 2006. ↩︎
  3. Herrigel, E. A arte cavalheiresca do arqueiro Zen. São Paulo, Pensamento, 2010. ↩︎
  4. Bondía, J. L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: Revista Brasileira de Educação n. 19 [online] 2002. ↩︎
  5. Beckett, S. Crossover picturebooks: a genre for all ages. Oxon, Routledge, 2012. ↩︎
  6. Les livres de… Katsumi Komagata. Paris, Les Trois Ourses, 2013. Ouvrage publié avec le concours du Centre national du livre. Préface de Kazumasa Nagaï et introduction d’Élisabeth Lortic. ↩︎
  7. Idem. ↩︎

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Laura Teixeira

    Laura Teixeira é artista visual, ilustradora e educadora. Fez mestrado em design de livros na FAU-USP e especializou-se na Eina-UAB (Barcelona). Ilustrou textos de Hilda Hilst, John Williams, John Banville e Raimundo Carrero. Publicou, entre outros títulos, “Pássaro-desenho” e “Bolinha branca” (Mov Palavras, 2015). Colaborou com as editoras Cosac Naify e Biblioteca Azul, e ainda com jornais e revistas como Folha de São Paulo, Le Monde Diplomatique, Quatro cinco um e Cult. É artista orientadora no programa Igual Diferente do MAM São Paulo, além de ter ministrado diversos cursos e oficinas (Instituto Emília, UNESP, SESC, CCSP, MASP, EBAC, Platô, entre outros).

Artigos Relacionados

BCBF24 | Um viva à BCBF 2024! Um viva às vozes do mundo!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *