Um mergulho em algumas obras infantis – Parte 2

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A equipe da CE CEDAC acrescenta sete obras à sua lista de indicações e compartilha o que considera as particularidades de cada obra que podem ser exploradas com os leitores.

No nosso último texto, abordamos a importância que o mediador deve dar à escolha do título a ser lido na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, e a necessidade de que cada leitura seja planejada a partir da obra específica.

Pontuamos que, como formadores de professores e coordenadores pedagógicos, buscamos propor situações de estudo e aprofundamento que nos permitam ultrapassar as primeiras camadas da leitura, em que predomina o tema, para podermos alcançar, gradativamente, o desenvolvimento das competências leitoras almejadas.

É preciso avançar, se quisermos que nossos leitores em formação aprendam a: utilizar cada vez com mais autonomia diferentes estratégias no processo de leitura; conhecer e utilizar características formais do texto para ampliar a compreensão; usar o contexto para enfrentar obstáculos no processo de leitura; antecipar e verificar hipóteses sobre o conteúdo do texto no decorrer da leitura; interpretar os textos indo além do conteúdo explícito e fazendo inferências; elaborar comentários e opiniões fundamentadas sobre o texto, entre outros conhecimentos que estão em jogo nesta formação.

Neste sentido, a conversa sobre o livro, após a leitura em voz alta do professor para a turma, é essencial. E, para guiá-la o professor precisa ter mergulhado em cada uma das obras e ter buscado compreender primeiro quais as experiências estéticas que elas lhe proporcionam para si e, então, preparar-se para provocar um diálogo entre os leitores e entre eles e a obra que pode ser mais profundo e efetivo.

Para colaborar com esta imersão, Fátima Fonseca e Sandra Medrano, duas das coordenadoras pedagógicas da área de Língua Portuguesa da CE CEDAC, com atuação em projetos voltados à formação de leitores, estão selecionando algumas obras de literatura infantil e elaboraram textos em que, destacam as características literárias de cada uma, buscando salientar o que é específico e especial. No total, serão 20 selecionadas. Em julho, compartilhamos as experiências das duas enquanto leitoras de seis livros. Desta vez, abordaremos mais quatro. Esperamos que sejam bem aproveitadas por professores e mediadores de leitura, para que muitos leitores em formação possam se impactar com o que há de especial nestes livros e, assim, ampliar seus conhecimentos como leitores literários e como formadores.

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Livro: Lulu adora histórias
Autores: Anna MacQuinn – Rosalind Beardshaw
Editora: Pallas

Lulu adora histórias é um livroque desde a capa nos convida a compartilhar da experiência que aquela criança está vivenciando. Ao mesmo tempo, já nos dá algumas pistas de que essa experiência com as histórias perpassará por outras relações também: o abraço a esse adulto – que, inicialmente, parece ser seu pai e o olhar atento para o objeto livro que demonstra atenção e satisfação. Que sensações temos ao olhar com atenção essa capa?

E quando você abre o livro, outro impacto. O convite é reforçado com a frase “Porque todo mundo adora uma boa história…” em uma ilustração que envolve a guarda e a primeira página e é como se envolvesse o leitor; “todo mundo” pode ser todo leitor que estiver lendo, sozinho ou acompanhado, essa história.

A narrativa se desenvolve ao longo de uma semana, começando em um sábado, quando o pai leva Lulu à biblioteca, e a partir daí todas as aventuras permeadas pelas histórias lidas acontecem. Há uma sequência que se repete e possibilita que os leitores acompanhem e participem da história: ela lê ou ouve uma história que, de alguma forma, alimentará o imaginário das suas brincadeiras no dia seguinte.

As ilustrações são bastante coloridas e alegres. As histórias lidas a cada dia da semana e as aventuras vividas pela personagem, aparecem organizadas em páginas duplas, o que favorece que os pequenos leitores possam acompanhar a relação entre as histórias e as aventuras imaginadas.

Essas aventuras envolvem outros personagens, desde a mãe, que também lê para Lulu, até os seus bonecos, os seus amigos e amigas, imaginários ou não. E estes personagens aparecem de diferentes formas durante toda a narrativa, o que contribui para criar um clima de familiaridade para os leitores. Tudo bastante relacionado ao universo infantil.

Lulu, junto com seus amigos, pode ser o que quiser: uma linda fada, uma aventureira, uma fazendeira, uma engenheira. A obra rompe com estereótipos de forma natural e sútil. A personagem principal é uma menina negra – poderia ser branca, ou japonesa, ou italiana, não importa porque a narrativa trata de questões comuns a qualquer criança, ao mesmo tempo, importa muito, pois garante a representatividade afrodescendente em uma história infantil o que, como se sabe, ainda não é algo comum.

Assim, a obra traz sutilmente algumas questões que reforçam sua importância como experiência literária para as crianças:

  • a menina pode ser o que ela quiser – fada ou engenheira;
  • é o pai – e não apenas a mãe – que lê, conta histórias, leva a filha a biblioteca, cuida da filha, compartilha experiências com ela;
  • Lulu brinca com outras crianças, meninas e meninos;
  • o amigo brinca de boneca e toma café, a amiga explora a floresta junto com ela.

Essas questões são tão intrínsecas a história e um leitor desatento pode nem percebê-las, mas elas estão ali reforçando o quanto também fazem parte do universo infantil, simples assim. Não há uma intenção de “ensinar” uma coisa ou outra, elas apenas fazem parte da narrativa.

Livro: Quero colo!
Autores: Stela Barbieri e Fernando Vilela
Editora: SM

Há algo mais gostoso que um colo? O colo é universal, representa carinho, aconchego, cuidado, afeto, proteção, tranquilidade… Este é um livro assim, acolhedor, aconchegante!

E para as crianças, o que representa o colo? Você já parou para pensar? Para as crianças ele é uma necessidade tanto afetiva como física. Os bebês começam sua exploração do mundo, suas primeiras descobertas quando ainda estão no colo. Assim, esse é um lugar de acolhida, de cuidado, de proteção, mas também de locomoção, de descobertas.

Como contam os autores, no texto que está na última página do livro (vale a pena ler), a ideia deste livro surge da curiosidade deles justamente em saber como crianças são carregadas em diferentes partes do mundo; e também em relação aos bichos, sobre como carregam seus filhotes.

O livro apresenta o colo em diferentes situações e em diversas culturas. Tanto na capa, como nas guardas, há imagens, não muito definidas, que mostram pessoas, homens e mulheres, com suas crianças em diferentes formas de colos e também uma sombra de um gorila carregando seu filhote. Na primeira página, parece que até as letras do título servem de “colo” para diferentes personagens. Ideia retomada novamente, na página 3, entretanto, agora aparece um jacaré com seu filhote acima do título. Na primeira dupla de páginas, além da dedicatória, vemos uma criança em uma posição de quem pede colo, com os braços abertos estendidos e vemos apenas os braços de alguém que parece atender ao pedido da criança.

A partir daí em cada dupla de páginas, há uma frase e um colo diferente. Aliás a pluralidade, inclusive cultural, é uma marca nessa história. Há uma diversidade de colos – do pai palhaço, da mãe indígena, e também do canguru, do urso, do macaco; há uma diversidade de emoções – humor, tranquilidade, tristeza, aconchego; há diferentes situações em que o colo é bom – para dormir e até para viajar, tomar sol ou pegar fruta do pé. O colo realmente serve para tudo e possibilita realizar diferentes ações. Conversar com as crianças e explorar essa diversidade pode ser bem divertido.

Ao final, os autores fazem uma brincadeira e o menino, que pede colo no início do livro, volta, afirmando “ah, eu gosto muito de colo!”, só que agora ele está no colo do gorila e na página seguinte juntamente com a pergunta “E quem não gosta?” aparecem os diferentes colos com as crianças e filhotes trocados: o palhaço carregando o pinguim; a mãe trabalhadora carregando o filhote do canguru; o canguru carregando o menino; numa deliciosa brincadeira que nos remete a pensar que tudo é colo e que todos gostam dos colos por mais diferentes que possam ser. Isso é comum para gente e para bicho.

As ilustrações são fantásticas. Com cores fortes, vibrantes, cada dupla de páginas é marcada por fundos com diferentes texturas que vão ajudando a construir diferentes cenários ambientais e culturais. Os desenhos feitos a partir da utilização de diferentes técnicas, do lápis à xilogravura, complementam o que o texto diz. O projeto gráfico do livro parece utilizar cada detalhe para dizer algo a mais. Na última página, ao lado das informações sobre o livro, temos o desenho de um gato carregando seu filhote. Tudo diz alguma coisa, nada escapa.

Livro: O animal mais feroz
Autor: Dipacho
Editora: Vergara & Ribas

Qual é o animal mais feroz? E para as crianças, qual deve ser o animal mais feroz? O leão? A onça? O tigre?

Nesse livro, o colombiano Dipacho já começa a brincadeira na capa, dando algumas pistas de qual é o animal mais feroz e do jogo que o livro propõe, por meio da ilustração e do texto da quarta capa. Em um trecho desse texto, ele diz: “Se você olhar só um pedacinho, pode não adivinhar. Mas, se tomar distância e ver o todo, vai perceber que não há animal mais feroz do que esse. ” Dessa forma, convida os leitores, a explorar essa ilustração, abrindo a capa e a 4a capa juntas, para olhar a imagem tomando certa distância, observar o desenho todo que há nela e descobrir novas pistas, arriscando-se a adivinhar qual é o animal mais feroz. Alguns podem tentar, para outros talvez ainda não faça muito sentido e assim o próximo passo, para os leitores, será abrir o livro e continuar a brincadeira.

Na guarda e na primeira página, parece que o autor/ ilustrador deseja continuar instigando e, ao mesmo tempo, dando pistas de que animal se está falando.

Então, após a folha de rosto, na primeira dupla de páginas da história, o leitor depara com uma pergunta: “qual é o animal mais feroz?” e com uma grande boca, com dentes afiados. Na dupla de páginas seguinte, as perguntas continuam: o tigre? E a ilustração mostra um desenho que parece ser uma parte de um tigre, pelas cores e formas; mas, na próxima dupla de páginas as respostas são: Não Não Não … repetidas vezes. Seguindo essa sequência, continuam as perguntas e as pistas: O tubarão? A cobra? O jacaré? Sempre em um jogo que leva os pequenos leitores e leitoras, a partir de uma parte, pensarem qual pode ser o animal mais feroz.

“Então qual é?” Chega-se na pergunta definitiva. A resposta surpreendente vem na dupla de páginas seguinte: “A galinha!”

Como será que as crianças reagem a essa resposta? O que pensam? Quais os impactos dessa nova informação. Como assim? Uma galinha, o animal mais feroz?

E na próxima dupla de páginas, a história continua de forma a estabelecer o sentido: “Dizia a mamãe minhoca para suas filhas minhoquinhas.”. Sim, para as minhocas, qual o animal mais feroz? A galinha!

E, ao virar a página, aparece a galinha comendo uma minhoca. Se ainda restava alguma dúvida… A página seguinte está em branco, o que parece ser um espaço destinado pelo autor, intencionalmente, para que seus leitores e leitoras façam as relações, atribuam sentido e possam associar essa ilustração que acabaram de ver com aquela pequena parte dessa ilustração que aparece na capa aberta. Vale a pena olhar novamente a capa aberta, assim como vale a pena olhar a última página e a guarda final e voltar para a primeira guarda e a primeira página e observar a relação entre elas.

O livro propõe um rico jogo de relações entre o texto, as ilustrações e tudo o mais, conhecimentos, saberes, crenças.

Qual o animal mais feroz? Não se tem uma única resposta. Depende. Para a mosca, o sapo. Para a galinha, o lobo. E para a formiga?

É um livro que aposta na inteligência dos seus pequenos leitores e leitoras.

Livro: Na floresta
Autor: Anthony Browne
Editora: Pequena Zahar

Um livro escrito por Antony Browne, renomado e premiado escritor inglês, é sempre um livro de muitas camadas. Nada está posto por acaso. Às vezes, em uma única leitura não é possível acessar tudo o que o livro oferece.

Já na capa, mais do que o título, que está fixado em uma pequena placa numa árvore, chama nossa atenção a floresta cinzenta e assustadora, com árvores enormes, em que só vemos a parte de baixo dos troncos. Essa sensação causada pela imagem da floresta na capa se amplia quando abrimos a capa e a quarta-capa juntas, pois a floresta ganha maior dimensão. Também na capa chama atenção a única ilustração colorida: um menino sozinho, carregando uma cestinha, entrando na floresta. Onde ele vai? Para onde ele nos leva? O que faz um menino sozinho nessa floresta tão sombria?

Ao abrir o livro somos impactados por um vermelho forte que ocupa todo o espaço da guarda e da primeira página. O que esse vermelho pode indicar? E ao chegar na folha de rosto avistamos uma janela com um pequeno aviso no vidro: “volta pra casa, papai” e do lado de fora, a floresta. O que todas essas pistas iniciais nos dizem?

A história já começa colocando um problema. Depois de uma noite com raios e trovões o personagem-narrador, que é um menino, nos conta que seu pai não está em casa e sua mãe não sabe quando ele volta. A ilustração que acompanha esse primeiro acontecimento é de um vazio enorme explicitado não só pela cadeira vazia, mas também pela mesa do café da manhã e pela expressão entristecida do rosto da mãe.

A partir desse momento o leitor encontra o mesmo bilhetinho, da página de rosto “volta pra casa, papai” – espalhado por lugares estratégicos da casa. A solução gráfica para esse bilhete recorrente, que aparece em diferentes lugares, é bastante interessante: o espaço da ilustração é dividido em quatro quadros, para representar esses espaços diferentes e dar aos leitores uma informação que pode confirmar algumas inferências iniciais, é o garoto quem escreve os bilhetes. O bilhetinho ainda continua aparecendo na ilustração da página ao lado.

Quando a mãe solicita que o filho leve bolo para a vovó, que está doente e não entre na floresta encontramos uma referência clara, não será a única, ao conto “Chapeuzinho Vermelho”, bastante conhecido pelas crianças.

Em toda essa parte inicial da história a ilustração é colorida e essa questão das cores e da ausência delas compõe a narrativa.

Na continuidade da história, o menino entra na floresta para chegar à casa da sua avó. De novo, como na capa, o recurso da cor tem papel importante. A floresta é cinza, sombria e assustadora. Só o menino é colorido.

Ao entrar na floresta o menino encontra três personagens dos contos clássicos. Em cada encontro com um personagem o menino enfrenta dilemas, mas segue em frente. Entretanto, o mais interessante desse trecho da história é não perder todos os indícios de diferentes contos que estão escondidos na floresta. Assim é possível encontrar o lobo mau, o sapatinho da Cinderela, os três ursos da história Cachinhos Dourados, uma abóbora, uma chave, a trança da Rapunzel e outros elementos do imaginário das crianças, que enriquecem a narrativa e não podem passar despercebidos.

Ao final dessa caminhada o menino encontra o capuz da Chapeuzinho Vermelho, que é o único elemento colorido que aparece na floresta. Uma última referência ao conto clássico, que inclusive é lembrado pelo menino. Ele colocará o capuz e finalmente chegará a casa da vovó.

É interessante observar como todo esses elementos de intertextualidade, presentes na narrativa, podem enriquecer a experiência literária das crianças ao lembrarem e estabelecerem relações com outras histórias. Vale destacar também o papel simbólico que a travessia pela floresta pode significar como rito de passagem de quem enfrenta seus medos.

É importante notar o quanto o livro aposta literariamente no leitor, dando pistas, mas deixando muito sem dizer. Sabemos que o pai saiu de casa, não sabemos porque até o final (isso fica para cada um); sabemos que é um momento difícil para essa criança desde o início e seus medos são representados de diferentes formas. O uso do cinza na floresta representando seus medos em contraposição ao colorido que representa a segurança da família, a casa. Uma representação forte de dois sentimentos opostos.

Quando o menino chega na casa da avó usando o capuz vermelho e bate na porta há um diálogo, que, de novo, nos faz lembrar do conto Chapeuzinho Vermelho e que gera uma expectativa no leitor sobre o que o menino encontrará ao entrar na casa. Na virada de página, então, nos deparamos com um zoom no rosto da vovó e com seu enorme sorriso nos surpreendendo com o óbvio. Na casa da avó está a vovó, como o próprio texto diz. O tom amarelo e um colorido leve da cena aquece, aconchega e traz luz depois de tanto medo passado na floresta. Esse tom amarelo continua nas próximas imagens e o colorido volta a ocupar a ilustração. Por fim, o menino encontra o pai na casa da avó e os dois voltam para casa.

A última dupla-página é ocupada inteiramente pela mãe de braços abertos, enorme, com uma expressão sorridente usando o mesmo casaco vermelho que na cena inicial, mas que agora está aberto. O fundo branco destaca a figura da mãe ampliando a imagem.

Ao virar a página, na guarda final, nos deparamos novamente com o mesmo vermelho forte, da guarda inicial, ocupando todo o espaço como quando abrimos o livro.

Livro: Roupa de brincar
Autores: Eliandro Rocha – Elma
Editora: Pulo do Gato

Qual criança não gosta de brincar com roupas de adulto? Que tal ter um guarda-roupa inteiro cheio de roupas coloridas e esquisitas para brincar?

Esse é o convite colocado já no título desse livro “Roupas de brincar” e na delicadeza da ilustração da capa, em que aparece uma menina com um vestido preto longo com uma cauda que vai ficando florida e perpassa para quarta-capa. Quando abertas juntas, capa e quarta-capa, completam a imagem e ficamos sabendo que uma criança está colorindo a cauda do vestido. Um fundo de um azul suave completa a delicadeza dessa cena, fazendo pensar que não poderia ser de outra cor.

Mas quem são essas meninas da capa e que brincadeira é essa?

Ao abrir contracapa e a orelha do livro encontramos muitas roupas clássicas de adulto em tons de cinza espalhadas aleatoriamente no espaço. O que será que essas roupas estão fazendo ali? Na folha de rosto retomamos o título e aparece, sozinho, o pote com pinceis e tintas, usado pela menina para colorir o vestido preto.

Ao virar a página seguinte nos deparamos com uma ilustração de casas, em página dupla, sem texto, que causa grande impacto, pois quebra com nossa expectativa de encontrar um texto que comece a história. Esse silêncio do livro garante um espaço ao leitor que pode pensar, quem mora nessas casas? Quem está indo até essas casas? Que casas são essas? O que essa imagem tem a ver com o que já supomos sobre a história a partir do título, da capa, da quarta-capa e da orelha do livro?

Na continuidade, descobrimos que chegamos à casa da tia da personagem-narradora, que nos conta essa história. Uma menina que tem uma tia, Lúcia, muito legal não só porque faz bolo de chocolate, conta história e imita animais, mas principalmente, porque deixa nossa personagem brincar dentro do seu guarda-roupa! A partir daí ressignificamos as personagens apresentadas na capa e quarta- capa.

Mas um dia quando a menina insiste em ir à casa da tia Lúcia alguma coisa mudou: o guarda roupa está vazio, tia Lúcia veste um vestido preto e está triste.

Acompanhar a história dessa menina exige um olhar atento. Com um fundo claro, nenhum cenário e traços limpos muito da história está contada, e até podemos dizer sentida, nas ilustrações delicadas, que além de não serem óbvias, acrescentam ao que está sendo contado por escrito, num casamento perfeito entre texto e imagem.

Além disso, em alguns momentos da história, quando a personagem explicita seus sentimentos, principalmente pelas roupas e pela brincadeira no guarda-roupa, há uma mudança do tipo gráfico das letras, que passam a ser escritas em caixa alta. Um outro aspecto interessante é que essas declarações, feitas pela menina, estão sempre em uma dupla página com ilustração, mas ficam em destaque sozinhas em uma das páginas. É interessante perceber que o texto em caixa alta volta em outros dois momentos: quando a menina se dá conta do que está acontecendo pela ausência das roupas e quando ela diz que a tia está sorrindo.

Quando a menina resolve espantar a tristeza somos invadidos por duas cenas de página dupla, sem texto, de um fundo azul forte, que nos traz a força e, ao mesmo tempo, a inocência da infância e explicita todo o esforço da menina para recuperar o colorido da vida da tia, que se concretiza, ao final, ao levarem juntas as roupas coloridas para o guarda-roupa.

Por último, ao abrir a orelha do livro nos deparamos com as mesmas roupas sérias do início, mas agora desenhadas com detalhes coloridos e alegres, demostrando que algo realmente mudou.

Ao tratar da morte, o livro não perde sua leveza e delicadeza. E por que falar de um tema tão difícil para as crianças? Primeiro, porque a literatura trata daquilo que é do humano e nada mais humano do que a morte. Segundo, por uma visão respeitosa de infância e de criança, que, como qualquer ser humano, está inserida nesse mundo e não em outro onde a morte não existe, que como qualquer ser humano lida com perdas e sofrimento.

Livro: Um dia, um rio
Autores: Leo Cunha – André Neves
Editora: Pulo do Gato

Esse é um livro em que a exploração do título, da capa e da quarta-capa pode ser muito interessante.

Na capa há o que parece ser um menino que apoia algo sobre seus ombros como se tentasse romper o que está sobre ele. Ele parece submerso. E todo o espaço é ocupado por uma cor marrom acobreado. O título escrito em azul, colocado embaixo no canto direito, – UM DIA, UM RIO – traz um tom misterioso ao usar o artigo indefinido “um”. Mas ao virar e olhar a quarta-capa saímos desse espaço que parece trazer uma tensão, para um outro ocupado por um azul lindo, forte em que alguém parece nadar. Esse cenário da quarta-capa é acompanhado por um pequeno texto que homenageia todos os rios e em especial o Rio Doce. Como essas duas capas “conversam” com a história que vai ser contada no livro?

Esse é o cenário quando exploramos o livro antes de abri-lo. A observação dessas informações iniciais não pode passar despercebida pelos leitores e pode provocar uma boa conversa sobre as expectativas e antecipações sobre a história.

Quando abrimos o livro na parte de fora da orelha encontramos um trecho de um poema de Fernando Pessoa, como se fosse uma dedicatória ao rio Doce. Ao abrir a orelha deparamos de novo com a cor marrom acobreada que ocupa todo espaço da orelha e da contracapa e no canto esquerdo uma torneira aberta com um filete de água azul cristalina, que contrasta com o fundo marrom.

Parece que algo se anuncia só pelo contraponto entre estas duas cores – marrom e azul – que ocupam espaços diferentes.

Logo na primeira página da história vemos um menino vestido de roupa de banho azul, com uma toca de nadar e um patinho na cabeça puxando algo e na página ao lado um texto que nos avisa “ UM RIO”, escrito em azul, e nos conta a partir daí as belezuras de ser um rio. Nas páginas seguintes em texto curto, extremante poético e belo, num fundo branco e personagens variados vamos sabendo pelo próprio rio, que narra a sua história, todos os seus encontros e suas “bonitezas” ao fluir no leito, ou seja, ao puxar seu balde de água limpa.

A opção por uma ilustração leve e simples parece ter a intenção de colocar foco no personagem e no texto poético, o que realmente valoriza a narrativa.

Mas o menino-rio tem um encontro que vai transformar sua vida tragicamente. Na página dupla, em que aparece esse encontro, o menino-rio ocupa o canto de uma página e o texto em azul anuncia EU ERA MELODIA... No canto da outra página uma “coisa” desconhecida e enorme aparece. Eles estão frente a frente e a partir daí uma tensão se instala e cresce. A “coisa” começa a cuspir e sujar o papel daquela cor marrom acobreada até que imagem e texto se perdem afogados no lamaçal e é preciso uma atenção do leitor para vê-los. E a frase se completa HOJE SOU SILÊNCIO.

A partir daí, nesse fundo escuro enlameado, o menino-rio, de novo num texto conciso e poético, conta a sua dor e o balde que antes levava sua água limpa chora sangue. E o vermelho toma conta das próximas páginas duplas. Tudo e todos, representados por peixes, são levados e o rio declara EU FUI UM RIO, UM DIA.

O texto poético, das páginas seguintes, descreve também o que foi e o que agora é aquele lugar. A vida e a ausência de vida.

Uma cena muito forte e que merece atenção é quando o fundo vermelho vai se tornando marrom acobreado de novo e no fundo do rio encontramos bonecas quebradas e crânios infantis. Por fim, num fundo completamente marrom acobreado, esqueletos de peixe nadam e a frase se repete: EU FUI UM RIO, UM DIA.

Ao final do livro texto e imagem, de novo, trazem um fio de esperança em duas dupla-páginas em que o fundo claro retorna, o texto poético canta a esperança e o menino-rio reaparece dentro do balde, com uma lágrima nos olhos.

Ao abrir a orelha final do livro somos inundamos por um azul que ocupa todo espaço e a torneira agora está fechada. E ao retornar a quarta-capa, ao final da leitura, vemos que ela faz parte dessa esperança.

O contraste das cores, as ilustrações e o texto tornam essa uma obra poética capaz de tocar aos leitores de forma profunda. Mesmo diante do desastre de proporções tão alarmantes, ainda queremos ter esperança de que volte a ser UM DIA, UM RIO.

Livro: Se você quiser ver uma baleira
Texto de Julie Fogliano
Ilustrações de Erin E. Stead
Editora: Pequena Zahar

Sabe quando você quer muito, mas muito alguma coisa? Esse livro conta sobre um menino que quer muito ver uma baleia. É um livro singelo, delicado, especial.

Texto e ilustrações dão leveza a obra e constituem a narrativa com uma graça que vai nos envolvendo desde a capa e a cada virada de página.

A técnica do linóleo utilizada pela ilustradora – semelhante a xilogravura, mas que, nesse caso, utiliza material sintético ao invés de madeira – dá essa impressão suave para as diferentes texturas que ajudam a compor a delicadeza dessa obra.

Essa simplicidade, do texto e da imagem, aparece desde o início e vai crescendo durante toda a história marcando a narrativa.

Na primeira página, o texto bastante direto e preciso coloca: “se você quiser ver uma baleia vai precisar de uma janela” e na página seguinte, está o garotinho sentado, pacientemente, olhando pela janela. É interessante como a cena comunica uma sensação de tranquilidade e paciência. Alguns elementos remetem a essas sensações, o verde clarinho de fundo; a amplitude da janela; os pés do menino pendurados e juntos; a postura do menino que só se vê, nesse momento, de costas.

Na dupla de páginas seguintes, novos elementos são agregados à janela: aparece o oceano, um barquinho e um passarinho que olha para o menino e se aproxima. Um texto integra a cena “e de um oceano”, complementando a informação dada na página anterior. E o garotinho, então, esboça algum movimento.

Na sequência, a imensidão do oceano invade a dupla de páginas e agora além do passarinho, temos também um cachorro.

A partir daí, passarinho e cachorro parecem compartilhar do desejo do garotinho de ver uma baleia e seguem com ele nessa aventura de espera.

No caminho encontram rosas, um barco de piratas, um pelicano, o verde, as nuvens, mas quando se sabe o que quer, é preciso saber para onde olhar, o que ver e não desviar a atenção com outras coisas. É preciso esperar atento porque ela pode aparecer a qualquer momento. E num instante, ali está ela.

O livro como um todo é uma poesia. Olhar, esperar, estar atento, desejar são ações que estão em jogo. É preciso ajudar as crianças a olhar para isso da forma como alcançam e com uma mediação que possibilite a atenção ao que acontece durante a narrativa, ou seja, a esperar o que pode acontecer e a compartilhar do desejo desse garotinho em ver uma baleia.

Ao escolher uma baleia a autora parece querer brincar com seus leitores, afinal se trata de um animal imenso e que dificilmente possa passar despercebido, ao mesmo tempo, não é algo que esteja ao alcance dos olhos o tempo todo. A brincadeira é proposta com muito cuidado e inteligência e logo os leitores estão totalmente envolvidos com o desejo de ver uma baleia também.

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  • Patrícia Diaz

    Diretora de Desenvolvimento Educacional da CE CEDAC, Patrícia Diaz formou-se em Pedagogia na Faculdade de Educação da USP e é mestranda em Didática, Teorias de Ensino e Práticas Escolares na mesma instituição. Foi professora e coordenadora pedagógica do Ensino Fundamental e iniciou sua atuação na Comunidade Educativa CEDAC em 1997 como formadora de professores. Antes de compor a diretoria da CE CEDAC, passou também pela coordenação pedagógica. Supervisiona todos os projetos que possuem como foco o desenvolvimento de práticas pedagógicas na formação de professores e coordenadores pedagógicos das diversas áreas e segmentos, além de continuar atuando como formadora.

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