Em defesa de Planos Estaduais de Biblioteca, Livro, Leitura e Literatura
A história não se repete. Mas, ela nos ensina.
Em tempos de ditadura, durante décadas, fomos capazes de ações coletivas nos bairros, sindicatos, igrejas, associações etc. De diversas formas, com muitas e diferentes mãos, desenhamos na linha do horizonte o fio de luz do dia que passaria a marcar a vida democrática em nosso país. Quantas histórias escrevemos. Dentre elas, a da Constituição Cidadã.
Mesmo depois de assegurada uma carta magna com participação da sociedade civil, seguimos na luta, porque a igualdade é a utopia que nos move e ela segue no nosso horizonte.
Hoje, na continuação da luta pelo aumento da democracia, ameaçados que estamos pelo autoritarismo que avança em nosso país, contra a barbárie, o que nos dá unidade é a defesa do Direito Humano à Literatura.
Em nossas bibliotecas comunitárias, enraizadas em seus territórios, na ação miúda de todos os dias, vamos gestando, nesse novo momento da história, novas formas de ser e de estar em nosso país.
Nessa luta, a importância de termos um marco legal tem se colocado como elemento cada vez mais importante. No âmbito legal, planos estaduais e municipais indicarão quanto e como avançamos na concretização deste direito. Planos, que escritos, serão decisivos para a definição de políticas públicas perenes, para todos.
Inúmeros sinais já existem em nosso país, dando conta de nossos esforços na produção de um marco legal e de políticas públicas do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas. Os formatos e detalhamentos são distintos: de apenas um artigo de uma lei que ainda precisa ser regulamentada, passando por decretos, cartas de intenções, diretrizes gerais a planos municipais já aprovados e consagrados. Um conjunto de sinais potentes que agora precisam ganhar a luz dia no âmbito dos Estados, especialmente, porque a nossa jovem democracia está ameaçada. E que no interior dos Planos Estaduais, os municípios sejam incentivados a criar suas políticas locais de livro, leitura e literatura, bem como de bibliotecas acolhedoras, democráticas, que não discriminam.
Na Região Sudeste, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, onde a desigualdade se faz presente, os desafios são enormes. As cidades mais ricas do país, São Paulo e Rio de Janeiro, encontram-se no mesmo espaço regional de cidades muito pobres. Assim, por exemplo, tomando por base o ano de 2019 (IBGE), Lamim, uma pequena cidade de Minas Gerais, tinha como renda per capita R$11.764,38, enquanto que Niterói, situada no Rio de Janeiro, R$90.643,80 1 Dados referentes ao PIB per capita de municípios (2019), estão disponíveis em https://cidades.ibge.gov.br. Acesso em 27/10/22. . Números que indicam que esta cidade é quase 8 vezes mais rica do que aquela. Desigualdade que afeta também o acesso ao livro, à leitura, à escrita, à literatura.
Tal como escreveu Antonio Candido (2011) 2 CANDIDO, Antonio. O direito à Literatura. In CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011, p. 171-193 , nenhum ser humano vive vinte e quatro horas de seu dia sem fabular. Cada um de nós, dormindo ou acordado, carregamos literatura em nós, escrita ou oral, diferentes gêneros textuais: poesia, fábula, cordel, romance, causo…
Essa riqueza que cada habitante de um território carrega, nascida da alegria, da tristeza, da pobreza, da riqueza, das inúmeras vivências e sonhos, faz de nosso trabalho nas bibliotecas comunitárias um mar de possibilidades que enriquece a cada um.
Assim, a desigualdade que nos acompanha, e está presente em nossa Região como um enorme problema a ser combatido, encontra-se lado a lado com seus opostos, uma riqueza nascida das experiências de cada um, das diferenças que também estão presentes onde atuamos.
Experiências de bibliotecas comunitárias, fruto do encontro de cada um consigo mesmo, com o outro, com os moradores do lugar, vividas em cidades com áreas, número de habitantes, concentração ou dispersão de pessoas bastante diferentes, nos enriquecem porque somos capazes enquanto coletivos de aprender uns com os outros.
Assim, por exemplo, atuar em Poá, um pequeno município de São Paulo, com pouco mais de 17 km2 , é muito diferente de agir em Unaí, Minas Gerais, com mais de 8.445 km2. O mesmo acontece quando pensamos em Lamim, Minas Gerais, com 3.366 habitantes (2021) e, megalópoles, como a cidade de São Paulo, com 12.396.372 (2021) 3Dados referentes à área da unidade territorial e população estimada em 2021 estão disponíveis em https://cidades.ibge.gov.br. Acesso em 27/10/22 .
Esse debate enriquece as redes locais de bibliotecas, bem como a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias – RNBC, e permite que a dinâmica da vida que percorre as ruas dos territórios entre pelas portas de nossas bibliotecas comunitárias, fazendo delas lugares únicos, diferentes entre si, mas iguais na luta pelo direito humano à literatura, contra a desigualdade.
Bibliotecas diferentes porque seus frequentadores, os moradores locais, se apropriam delas como lugares seus. Do acervo ao horário de funcionamento, passando pelas formas de mediação de leitura e produção de escrita, revelando a complexidade vivida no seu interior.
Assim, dizer que o Sudeste é a região mais rica do país diz pouco sobre o que é esta Região. Nela há cenários complexos, ao mesmo tempo, diferentes e desiguais, fazendo emergir uma multiplicidade de experiências que no debate público sobre propostas de plano de leitura, do livro, da literatura e de bibliotecas contribuem decisivamente na definição de marcos legais e no desenho de políticas públicas que permitam avançar na concretização do direito humano à literatura.
A partir de experiências vividas em cada Estado da Região Sudeste, as redes locais de Minas Gerais (Sou de Minas, uai!), Rio de Janeiro (Baixada Literária, Mar de Leitores e Tecendo Uma Rede de Leitura) e São Paulo (LIteraSampa) desejam acentuar a complexidade que envolve o debate e a implementação de Planos Estaduais do Livro, da Leitura, da Literatura e Bibliotecas, uma vez que é necessário ligar e religar elementos diferentes 4Edgar Morin, pensador francês, é o filósofo da complexidade. Reflete sobre a questão em várias de suas obras, em especial em “Introdução ao pensamento complexo”, publicada pela Sulina (Porto Alegre) em 2015. no combate às desigualdades existentes nesse campo e acolher as inúmeras diferenças que nos habitam.
Um dos elementos diz respeito à participação de diferentes agentes no processo de elaboração do Plano: a) executivo, legislativo e sociedade civil; b) cadeia criativa do livro, cadeia produtiva do livro, cadeia mediadora do livro; c) diferentes territórios de cada Estado representados por seus moradores; d) bibliotecas públicas municipais e estaduais, escolares, comunitárias, privadas aberta ao público, especializadas; e) segmentos de profissionais das bibliotecas e de múltiplas linguagens (teatro, danças, fotografia, cinema, vídeo, palhaçaria etc). Estes últimos, cada vez mais são nossos parceiros no processo de concretização do direito humano à literatura. Um ligar e religar de profissionais dos mais diferentes matizes e campos.
Outro elemento a ser considerado, tal como no Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) 5Decreto n° 7.559, de 1 de setembro de 2011. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7559.htm. Acesso em 27/10/22. , são os quatro eixos: a) Democratização do acesso ao livro; b) Fomento à leitura e à formação de mediadores; c) Valorização Institucional da leitura e o incremento de seu valor simbólico; d) Desenvolvimento da economia do livro com estímulo à produção intelectual e ao desenvolvimento da economia nacional. A articulação do Plano Nacional com os Estaduais e Municipais será tarefa necessária a ser construída nos próximos anos.
Em todo esse processo, caberá a nós da sociedade civil, especialmente aqueles que atuam no campo das bibliotecas comunitárias, impulsionarmos o debate e a produção de um Plano em cada Estado da Região Sudeste, sua aprovação no âmbito legislativo e a concretização de políticas públicas pelo executivo, sem que aqueles que ocupem os lugares de poder façam dos planos letras mortas ou retórica que jamais alcançará a fase de concretização.
Que em 2023, na Região Sudeste, sejamos capazes de incidir sobre os executivos no sentido de ver nascer Planos Estaduais de Bibliotecas, Livro, Leitura e Literatura, em cada Estado de nossa Região.
Que possamos cunhar em nossos planos estaduais a riqueza que nossas bibliotecas comunitárias carregam na defesa e na ação ativa para fazer concretos: a) o acesso universal em todos os territórios e a todos os cidadãos ao livro, à leitura, à escrita, à literatura, à biblioteca; b) o acolhimento dos diferentes de forma incondicional; c) a diversidade de biblitoecas como elemento sinalizador do respeito pelos moradores dos territórios onde estão situadas de forma que se enraizem.
Finalmente, que os Planos Estaduais de Bibliotecas, Livro, Leitura e Literatura do Espírito Santo, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e de São Paulo sejam a expressão de uma das dimensões da riqueza da Região Sudeste, a mais rica do Brasil porque inclui em seus indicadores o direito humano à literatura para além daqueles de renda per capita e o do PIB.
______
Bel Santos Mayer – educadora social, coordenadora do IBEAC e co-gestora da Rede LiteraSampa; Maurício Paiva – Graduando em Marketing e Mobilizador de Recursos, fomenta a incidência política do livro no estado de MG; Cleide Moura, graduada em Letras, articuladora e mediadora de leitura em MG, Natália Reis integrante da Rede Baixada Literária e da RNBC.
Notas
- 1Dados referentes ao PIB per capita de municípios (2019), estão disponíveis em https://cidades.ibge.gov.br. Acesso em 27/10/22.
- 2CANDIDO, Antonio. O direito à Literatura. In CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011, p. 171-193
- 3Dados referentes à área da unidade territorial e população estimada em 2021 estão disponíveis em https://cidades.ibge.gov.br. Acesso em 27/10/22
- 4Edgar Morin, pensador francês, é o filósofo da complexidade. Reflete sobre a questão em várias de suas obras, em especial em “Introdução ao pensamento complexo”, publicada pela Sulina (Porto Alegre) em 2015.
- 5Decreto n° 7.559, de 1 de setembro de 2011. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7559.htm. Acesso em 27/10/22.