Gianni Rodari, um defensor da vida – 1

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O barão Lamberto, com temor de ser esquecido para sempre, contratou seis pessoas para que repetissem incessantemente, de dia e de noite, seu nome: “Lamberto, Lamberto, Lamberto”, colocando em prática o provérbio que um ancião árabe lhe deu a conhecer nas margens do Nilo: “O homem cujo nome é pronunciado permanece vivo”. Do desenvolvimento lúdico e brincalhão deste provérbio surge uma das historias mais divertidas de Gianni Rodari: Era duas vezes o barão Lamberto.

Este é um convite a devolver-lhe, como uma homenagem ao professor e ao escritor, o mesmo provérbio oriental: “O homem cujo nome é pronunciado permanece vivo”.

Gianni Rodari

Sua vida

Gianni Rodari nasceu em Omegna, na Lombardia Italiana, em 1920, e morreu em Roma, em 1980. Sua infância não foi muito abastada, sobretudo nos aspectos afetivo e econômico. Foi criado por uma ama devido ao fato de que seus pais precisavam trabalhar duramente cuidando de um forno de padaria do qual a família derivava o sustento. Seu pai morreu em 1929 e Rodari foi enviado para viver com uma tia. Posteriormente, entrou no seminário de San Pedro Mártir, onde permaneceu até os 14 anos. Embora sempre tenha desejado ser músico, acabou sendo professor, graduado pelo magistério italiano, e dava aulas particulares. Em 1939 se matriculou na Faculdade de Língua da Universidade Católica de Milão, mas não concluiu seus estudos e regressou para sua casa. Quando a Itália começou a participar ativamente na II Guerra Mundial, Rodari foi recusado pelo Exército, por conta de sua saúde frágil. Continuou em sua carreira de professor até que, graças a sua vinculação com o partido comunista italiano, começou a viver do jornalismo.

Gianni Rodari

A esse respeito, José Luis Polanco afirma:

“Como muitos outros jovens que nasceram durante a época fascista – havia colaborado com o partido do regime –, sua aproximação com o marxismo se produziu entre incertezas e contradições no caminho da busca de ideais e valores distintos daqueles que lhe haviam sido impostos pela escola e pela cultura do regime ditatorial. Assim, logo após a queda do fascismo, Rodari se aproxima do partido comunista italiano, no qual se inscreve em 1944 e conhece a clandestinidade durante a época da Resistência, onde participa no trabalho psicológico da imprensa, editando o periódico Cinque punte”. (Revista CLIJ, No. 36. Febrero1992)

A partir de 1945 decide dedicar-se à política. O partido lhe encarregou da direção do periódico L`Ordine Nuovo de Varese, que lhe levou a descobrir uma vocação que não lhe abandonará. Começa assim uma extensa etapa de dedicação política exercida através do jornalismo, profissão que lhe permite um conhecimento próximo dos problemas e das realidades do povo italiano.

É através do exercício de um jornalismo comprometido, próximo das pessoas mais desprotegidas, dos personagens de rua e marginalizados, das análises sobre a realidade do leitor comum que Rodari chega à literatura. Suas primeiras publicações literárias ele as publica no L’Ordine Nuovo, assinando com o pseudônimo de Francesco Aricocchi, com o qual publicou uma coletânea de lendas populares, Lendas de nossa terra e dois contos fantásticos: O beijo e A senhorita Bibiana.

Posteriormente sendo cronista do periódico L’Unitá, publicação milanesa, Rodari descobre sua vocação de escritor para crianças, quase sem se propor a isso.

“Me converti em escritor para crianças por acaso. Foi uma necessidade profissional: em uma página dominical, do periódico onde trabalhava, se necessitava algo para crianças. E assim comecei a escrever narrações. Foi uma descoberta, inclusive para mim, que depois me monopolizou, gostei, incitando-me a compreender que ofício era esse, que sentido tinha.” (Revista CLIJ, no. 36, 1992. Pag. 20)

Classe

Começa a publicar narrações curtas, de tom humorístico, dedicadas de maneira genérica à família. Ali nascem suas primeiras Filastrocche, quer dizer quadras e ladainhas carregadas de humor, ligadas à poesia popular italiana, as quais têm tanto êxito que são apreciadas pelos leitores grandes e pequenos. Rodari satisfazia sua demanda inventando novos poemas e contos curtos que assinava com o pseudônimo de “Lino Picco”. Alguns destes contos foram compilados posteriormente e publicados em espanhol no livro Cuentos largos como uma sonrisa (Barcelona, La Galera, 1988). Desta experiência surgem seus primeiros livros para crianças Il livro delle filastrocche (O livro das ladainhas) y Il romanzo de Cipollino (As aventuras de Cipollino).

Rodari começa então uma carreira como escritor de livros infantis, que se consolida definitivamente com sua vinculação à editoria Einaudi, e que o leva a ser merecedor do maior prêmio a que um escritor para crianças pode aspirar, o prêmio Andersen, que recebe em 1970.

Sem nunca abandonar o jornalismo, nem a escrita para crianças, Rodari retoma na década de 60, sua vocação inicial, a de pedagogo e começa a visitar as escolas italianas para trabalhar com as crianças. Este contato direto com a visão infantil, não apenas dá uma força imaginativa a sua obra literária, mas também o leva a consolidar sua maior contribuição para a pedagogia da infância através de seu livro A Gramática da Fantasia, de 1973.

Entre nós talvez essa seja sua obra mais conhecida, e a que paradoxalmente contribuiu para tornar um pouco opaco o escritor de livros para crianças.

Contudo, a mesma Gramática foi submetida a um reducionismo dentro do âmbito escolar, convertendo-se muitas vezes em meros jogos técnicos. Não se trata de por duas palavras juntas para que as crianças inventem histórias e justificar com isso que estamos contribuindo para o desenvolvimento de sua imaginação. Vale a pena observar o legado de Rodari um pouco mais de perto. Descobrir todo o potencial liberador e verdadeiramente revolucionário de sua proposta. Aproximar-nos do homem vital e comprometido, do político, jornalista, pedagogo e escritor que fez da palavra sua ação.

Permaneçamos um momento com o pedagogo da imaginação, com o homem que se pôs abertamente ao lado das crianças, defendendo-as como criadores ativos com capacidade de transformar o mundo, desordenado, violento, impositivo e incoerente que os adultos sempre quiseram impor a elas. O pedagogo que demonstra às crianças as mil maneiras de inventar o mundo, de modificar o que não está bem.

Gianni rodari
Gianni Rodari

Para isto Rodari nos transmite uma poética da imaginação, a partir de uma proposta prática e reflexiva, que é precisamente o que expõe em sua Gramática da Fantasia.

Depois de vários anos tratando de desentranhar os segredos da criação, tomando notas em um caderno de fantasia, que levava sempre consigo e cada vez que ocorria um ato criativo, registrava o procedimento de como se havia produzido. Talvez com olhar de padeiro, herdado do ofício de seu pai, toma nota e observa como se faz o pão.

Mas escutemos o próprio Rodari que nos conta como surge sua Gramática:

“Durante o inverno de 1937-38, depois de ser recomendado por uma professora, esposa de um policial municipal, fui contratado para ensinar italiano em suas casas, aos filhos de alguns judeus alemães que acreditavam – o acreditaram por poucos meses – ter encontrado na Itália refúgio para as perseguições raciais. Vivia com eles em uma oficina sobre as colinas que beiravam o lago Maggiore. Trabalhava com as crianças das sete até as dez da manhã. Passava o resto do dia nos bosques, passeando e lendo Dostoievski.
Um dia, nos Fragmentos de Novalis (1772-1801) encontrei a frase que diz: “Se tivéssemos uma Fantástica como existe uma Lógica, se teria descoberto a arte de inventar”.

Poucos meses depois, quando descobri os surrealistas franceses, acreditei ter encontrado em sua forma de trabalhar a “Fantástica” que Novalis buscava.” (Gramática da Fantasía).

Ordenando suas anotações e a partir de sua prática direta com as crianças, desentranha um dos segredos da arte criativa através de duas condições que lhe são inerentes: o movimento binário e rítmico: sístole, diástole e a possibilidade do estranhamento.

Aqui está a tese central da pedagogia da criação de Rodari: no movimento permanente dessa conjunção binária entre a linguagem e a realidade surge a possibilidade de uma alteração. Ao modificar essa relação ao azar, mas cuidando que o binômio seja o suficientemente sugestivo para desatar uma história, surge uma nova realidade. Porém, essa realidade nos pertence porque a criamos. A pedagogia da criação se torna ativa, a criança deixa de ser passiva e se converte em criadora. Abarca sua realidade e a transforma.

Sob este mesmo princípio do estranhamento, Rodari nos propõe um sem número de jogos possíveis entre a linguagem e a realidade. Surge assim a hipótese fantástica, materializada no desenvolvimento de uma pergunta lançada ao azar O que aconteceria se…? O que aconteceria se um homem desperta transformado em um imundo inseto?, exemplo sobre A Metamorfose de Kafka, que Rodari traz à mente para demonstrar como muita literatura não é mais que o desenvolvimento bem elaborado de uma hipótese fantástica.

Assim, cada capítulo da Gramática é uma nova possibilidade de incentivar a imaginação da criança a partir de um manejo lúdico e criativo da linguagem: o prefixo arbitrário, a criação de novos limeriques a partir de variações feitas em uma estrutura codificada e organizada, a construção de adivinhas através da observação das qualidades essenciais de um objeto, o jogo de parodiar as fábulas tradicionais, enfim, jogos que não se esgotam em uma receita nem em uma fórmula, mas que nos entregam uma senha mais profunda para permitir às crianças o desenvolvimento de um pensamento criativo capaz de transformar o mundo.

Ele mesmo esclrece que sua proposta não é nem uma teoria, nem muito menos um livro de receitas, diz:

“A presente Gramática da Fantasia – este me parece o momento para aclará-lo definitivamente – não é nem uma teoria da imaginação infantil, nem uma coleção de receitas, uns “sabores” das histórias, mas sim, creio, uma proposta para por junto a outras tantas que tendem a enriquecer de estímulos o ambiente (casa ou escola) no qual a criança cresce. A mente é uma. Sua criatividade se deve ser cultivada em todas as direções. As fábulas (escutadas ou inventadas) não são “tudo” o que serve à criança. O uso livre de todas as possibilidades da língua não representa mais que uma das direções em que pode expandir-se. Mas tudo está. A imaginação da criança estimulada para inventar palavras, aplicará seus instrumentos sobre todos os aspectos de sua experiência que desafiem sua criatividade. As fábulas servem às matemáticas como as matemáticas servem às fábulas” (Gramática da Fantasia).

Rodari estava convencido da capacidade transformadora da linguagem, do poder que tem a palavra para projetar-se sbre todos os outros âmbitos da realidade interior e exterior do ser humano, sobretudo quando ela se libera de seus significados mais convencionais, da lógica imposta por um sistema racional e rígido de pensamento. Daí sua insistência em desentranhar como funciona o pensamento criativo e divergente; daí também sua revalorização do jogo como possibilidade de liberdade. O jogo como a expressão mais natural da infância, através da qual a criança faz uso das diferentes linguagens e o faz para expressar seus próprios conflitos, suas próprias aspirações e sua forma de julgar o mundo. À medida que a criança cresce e se socializa se vê imersa em um mundo cheio de convenções impostas pelo adulto, um mundo que começa a ser alheio a ela, um mundo que se impõe, que a submete a uma adaptação que beneficia ao adulto. E como diz ele com suas próprias palavras:

“A criança é uma personalidade completa e aberta antes que sua socialização e a educação a que a submetemos lhe adaptem à sociedade em que cresce, aos seus fins, ressaltando somente as qualidades que servem para esta adaptação e qualificando de inadaptada a criança que não se dedica a essa única linha e que não aceita estar feita para um mundo que somente contempla uma parte dela e não tudo aquilo que pode ser.” (Rodari, Ejercicios de Fantasía, 1997, pág. 92)

Surge de novo o político, mas agora no âmbito pedagógico. Faz-se necessário reformar a escola, introduzir nela uma transformação vital. Rodari advoga por uma escola que ria, que não seja aborrecida e que entregue ou devolva à criança a confiança de que pode modificar as coisas, que através de uma criação ativa com a linguagem pode transformar o mundo. Permitir a criança que siga manejando a linguagem com o poder mágico que tinha quando aprendeu a falar, a linguagem em forma de ação.

A prática, como dizia o militante; jogar com a linguagem, fazer mágicos exercícios de estranhamento, imaginar novas histórias nas quais não há limites impostos pela lógica ou pela convenção, e jogando, devolver à linguagem e a sua possibilidade criadora, toda sua função simbólica. Organizando as coisas de muitas maneiras possíveis.

Todo o pensamento de Rodari acerca da criatividade, do jogo, inclusive da necessidade urgente de uma reforma da escola esteve sempre mediado pela reflexão acerca da linguagem. Rodari foi, sobretudo, um linguista, um linguista convencido de que a palavra é ação e que somente através do uso criativo desta é possível não somente transformar o pensamento, mas também, a realidade. Muitas de suas reflexões se centraram em observar como a criança se apropria de sua língua materna e como constrói sua visão do mundo sempre mediada pela linguagem:

“Estou de acordo, pelo contrário, com quem considera a magia e o conhecimento como dois componentes em interação; por exemplo, a criança que aprende a falar recorre também a usos mágicos da linguagem. Usa a linguagem de forma que o adulto já não crê poder utilizar. A usa para dar ordens à mesa, ou para repreendê-la se bateu a cabeça contra ela; usa a linguagem também neste plano mágico, mas não inventa em absoluto uma língua mágica ou imaginária para realizar estas operações. Enquanto as realiza, se constrói seu sistema linguístico segundo a gramática e a sintaxe da língua materna em que cresce” (Ejercicios de Fantasía, pág. 88).

No plano linguístico, talvez um de seus maiores aportes foi o de “sacudir” as palavras, como se fossem objetos materiais, até fazer surgir delas novas significações. Trabalhava com os significantes buscando novos significados. Rodari espremia a linguagem com a emocionante promessa de que dali brotariam novas maneiras de ver e entender a realidade. E isso se vê muito claramente refletido em sua produção literária.

Gianni Rodari

Tradução Thais Albieri

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  • Beatriz Helena Robledo

    Nasceu na Colômbia. Especialista e pesquisadora nas áreas de literatura infantil e juvenil e leitura. Com mais de 25 anos de experiência na área, é autora de vários livros. Foi subdiretora de leitura e escrita do CERLALC, de 2006 a 2007 e subdiretora da Biblioteca Nacional da Colômbia, de 2008 a 2010. Atualmente é consultora e professora. Membro da Rede de Apoio Emília.

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