
Como é difícil escolher um livro para analisar. Desmistificar o prazer do toque da ponta dos dedos ao roçar a capa. O farfalhar das páginas virando. Capas caprichadas, títulos enigmas ou não. Aquela potencialidade de leituras possíveis. E aquele cheiro de tinta e cola que só os ditos infantis têm.
Eis que depois de muito sofrer trago aqui a obra Três desejos para o Sr. Pug, de Sebastian Meschenmoser (Companhia das Letrinhas). O autor nasceu em 1980, em Frankfurt, na Alemanha. É formado em belas artes e atua como artista, além de autor e ilustrador infantil. Suas ilustrações já foram finalistas em prêmios em Bolonha e na Alemanha, Jugendliteraturpreis, tornando-o um dos mais admirados ilustradores da nova geração alemã.
Confesso que quando o livro foi lançado, li e achei a história comum. Tinha me atentado para a belíssima ilustração com aquele cachorro humanizado mal-humorado. Mas com o tempo, e dando mais atenção, meu apreço pela obra cresceu.
A capa da obra é bem comum, pouco chamativa, ainda que o desenho do cachorro que assumimos ser o Sr. Pug, já chame atenção pela expressividade e humanização.
Aliás, a tensão entre humanidade e animalidade é uma das principais chaves de leitura da obra. O nome Sr. Pug já remete de maneira ambígua a um humano respeitável, com nome e sobrenome, assim como nomeia a raça de cachorros Pug a que pertence o personagem. E na ilustração temos um cachorro de roupão, cuja pata tem uma espécie de indicador apontando para uma estrela.
Já nas páginas iniciais (verso do falso frontispício e frontispício) a história começa a ser narrada pelas imagens. O cachorro está entregue a um sono pesado e quiçá agitado, pois a cada ilustração figura dormindo numa posição diferente. Por vezes, quase caindo de sua cama. Ou melhor, saindo de seu tapete.
O texto verbal, em letra bastão, começa com o Sr. Pug acordando, com o despertador, já perto do meio dia. E com cara de mau humor. O estado de espírito do cão é informado pela ilustração, hiper-realista que ocupa grande parte das páginas do livro e parece ser toda feita a lápis.
Pelas imagens percebemos o Sr. Pug se arrastando até o banheiro e fazendo xixi como um humano. Caberia aqui pensar que não faz xixi como um cão e tampouco faz xixi de pé como um humano do gênero masculino poderia fazer. Um “homem” fazendo xixi sentado, transmite ainda mais a sensação de cansaço, preguiça e mau humor que rondam o cachorro.
As imagens do banheiro e cozinha são todas sangradas e nós leitores temos a impressão de estar dentro do banheiro e da cozinha do Sr. Pug tal é o esmero da perspectiva nos azulejos, móveis, papel de parede. Aqui fica evidente uma escolha de palheta de cores frias de cinzas a azuis que contribui ainda mais para compor o humor melancólico de Pug.
Seu humor piora ainda mais ao saber que a geladeira e o armário estão vazios. Não há leite, nem cereal, tampouco café. E o jornal estava encharcado…
Chama atenção, também, o formato do livro quadrado que contribui para a construção da perspectiva. O uso intencional do projeto gráfico se evidencia, igualmente, num jogo de equilíbrio entre texto visual e verbal. Nas duplas com ilustrações de página cheia, em geral, há pouco ou quase nenhum texto. Nas páginas com mais texto, em geral o fundo é mais neutro, com mais espaço em branco, e a ilustração do Sr. Pug e suas expressões têm mais detalhes e importância narrativa.
O dia estava tão ruim e cinza para o Sr. Pug que ele desejou não ter se levantado. Nesse ponto da história surge uma nova personagem: uma fada colorida, branca, loira, de olhos azuis e vestido rosa radiante que tentará resolver os problemas do Sr. Pug. Ela lhe oferece doces, bolos chocolates, bichos de pelúcia como companhia, piscina, carros e castelos. Todos figurados com cores fortes e chamativas e um desenho com contornos definidos e contrastes.
Nesse ponto da narrativa, é pela ilustração que percebemos a inflexão da história. Nós leitores já estávamos acostumados ao Sr. Pug cinza, de traços rabiscados, com trabalho sofisticado de sombras e bastante expressivos, havíamos construído uma espécie de compaixão pelo personagem e seu mau humor, que já flertava com uma espécie de graça e riso de identificação com o leitor. Afinal, quem nunca acordou cansado, com o dia pela metade e com a sensação de que tudo estava dando errado e que deveria ter permanecido na cama…
Aqui penso que certamente os adultos se identificam e o autor aposta que também as crianças são capazes de achar graça ou ter empatia por um cão/adulto real passando por um mal dia…
Justamente porque até esse momento estávamos acostumados a um mundo rabiscado, com cinzas, tristezas, amarguras e também humor é muito chocante a chegada dessa fada caricata e desse mundo “cor de rosa” – no sentido literal e figurado – comumente e mercadologicamente associado ao universo infantil, onde tudo tem contorno e controle, tudo é feliz e doce, com bichinhos fofinhos e bens materiais como carros, piscinas e castelos. E eles chegam de maneira violenta na ilustração, logo ocupando o espaço antes em branco das páginas do livro. E nesse jogo o Sr. Pug parece até diminuir de tamanho. Além de tudo isso, a fada, essa deusa ex machina mirim, se regozija de sua bondade ao conceder três desejos ao Sr. Pug.
Na sequência de páginas em que a fada aparece, oferece presentes e desejos a expressão facial do Sr. Pug passa a denotar por meio da ilustração sentimentos progressivos de surpresa, estranhamento, aborrecimento, irritação, braveza e uma raiva gigante que se evidencia na página com uma espécie close (zoom in) em seu rosto com a fada impertinente em seu ombro. Nessa dupla, a ilustração evidencia novamente a tensão entre humanidade e animalidade. A ilustração hiper-realista expressa sentimentos num crescente até chegar na raiva que humaniza o cachorro, ao mesmo tempo que o deixa com a cara de um cão feroz que está na iminência de abocanhar a fada indesejada. E a tensão extrema nessa ilustração funciona como uma espécie de antecipação de que, ao virarmos a página, com toda certeza o Sr. Pug irá se vingar. Permanece, porém, a dúvida de como se dará a vingança: se como bicho mordendo a fada, ou como humano sendo inteligente/esperto.
Nós leitores ficamos sabendo dos desejos do Sr. Pug apenas pela ilustração. Desejo número 1: café, cereal e leite; desejo número 2: jornal seco; desejo número 3: transformar a fada em porca. Na sequência de ilustrações dos desejos realizados para o Sr. Pug é possível perceber novamente os sentimentos progressivos do cão: contentamento, alegria irônica e felicidade misturada ao riso de deboche com a vingança concluída na transformação da fada numa porca. Pode-se pensar que se trata de uma sequência ilustrativa de contraponto do Sr. Pug em relação à fada.
Após a conclusão da vingança, fica a dúvida de como será o desfecho da história. As ilustrações voltam ao “padrão pré-fada” com a textura dos ambientes da casa ocupando quase toda a página dupla e a fada-porca passa a ser figurada com um traço rabiscado, impreciso e expressivo e realista como o do Sr. Pug, mas permanece com cor e certa graciosidade. Nesse ponto da história é a fada-porca que ganha uma sequência de ilustrações progressivas de seus sentimentos: surpresa, uma conformidade meio aparvalhada, interesse pelo jornal do Sr. Pug e companheira do Sr. Pug.
No desfecho, é possível perceber um jogo de ampliação de sentidos entre textos verbais e visuais. “E ASSIM O SR. PUG E A FADA PORQUINHA VIVERAM FELIZES PELO RESTO DE SEUS DIAS… (DIAS INTEIROS E DIAS PELA METADE.)”. O autor relaciona felicidade aos desejos genuínos e cotidianos já apreciados pelo Sr. Pug, em dias de mal e bom humor, tal sejam: café, cereal com leite e a companhia de uma fada porquinha, personagem animal-humana como ele.
Ao contar essa história e desse modo, com grande peso na ilustração e numa ampliação de sentidos com o texto verbal, podemos inferir que o autor expressa certa concepção de infância. Ele concebe as crianças como seres do mundo real capazes de lidar com o mundo quando as coisas não vão tão bem, quando há solidão, mau humor, ironia e graça diante de situações patéticas. Ele concebe ainda que a felicidade pode estar em coisas e momentos simples como café da manhã, jornal e a companhia de alguém imperfeito. Ao fazer isso, Sebastian traz, principalmente por meio da ilustração, uma crítica a certa concepção de infância como um mundo cor de rosa, sem problemas, com muito açúcar e personagens brancos, mágicos, perfeitos e rasos que tudo resolvem, principalmente com presentes.
Essa linha interpretativa ganha força na entrevista que Sebastien Meschenmoser deu para o site de sua editora australiana WilkinFarago. Nela o artista e ilustrador alemão disse que a inspiração para escrever Três desejos para o Sr. Pug veio de sua própria experiência “numa manhã encarando uma caixa de café vazia. Eu só quis criar um personagem pouco usual nos livros infantis, que não está sempre feliz ou amando o mundo todos os dias. De certa forma, o Sr. Pug é parte de certo tipo de realidade e as crianças também conhecem a realidade”.
Em poucas palavras, é possível dizer que o autor/ilustrador corrompe a estrutura do conto de fadas clássico ao tensioná-lo com um estranho protagonista híbrido, meio-homem meio-bicho, mal-humorado e que não muda de maneira redentora após a intervenção mágica da fada. Ao contrário, retomando a estrutura dos contos de esperteza e humor, é o protagonista gauche quem reverte (ou perverte) a fada-felicidade-edulcorada-dita infantil numa felicidade possível, real, cotidiana e, claro, imperfeita.
O livro apresenta uma forte precedência da ilustração sobre o texto. Exigindo do leitor uma atenção especial na leitura do texto visual, já que o textual é enxuto, quase o mínimo para garantir a inteligibilidade da narrativa. A inflexão, a graça e a ironia da história para serem compreendidas exigem do leitor essa empatia com o protagonista, bem como uma leitura atenta de seus sentimentos e expressões sugeridas na ilustração. Os três desejos para o Sr. Pug traz uma necessária discussão contundente sobre o que é infantil, seja literatura infantil, seja ilustração para crianças e faz isso eminentemente por meio das ilustrações da obra.
P.S. – Os ratinhos que são os fiéis companheiros do Sr. Pug desde os tempos de mau humor figuram numa narrativa paralela. Testemunham o quão miserável é a sorte do Sr. Pug ao se deparar com a geladeira vazia, o armário vazio, a xícara vazia e o jornal molhado. Eles lhe fazem companhia durante a constatação de que não deveria ter saído da cama. Os roedores também observam com curiosidade o aparecimento da fada e fogem da cena assustados quando ela promove uma chuva de doces coloridos. Ficam fora da história até o momento em que o Sr. Pug vira o jogo e transforma a fada em porquinha. Aí se “vingam” também roubando da fada-porquinha sua varinha, ou seja, destituindo-lhe de poderes mágicos. Tornam-se, assim, cúmplices dos planos do Sr. Pug.1Essa resenha foi produzida como parte das atividades da disciplina “As relações entre texto e imagem no livro para crianças”, da professora Sandra Medrano, do curso de Pós graduação Literatura para crianças e jovens, do Instituto Vera Cruz.
Referências Bibliograficas
MESCHENMOSER, Sebastien. Meet Sebastian Meschenmoser, the author and illustrator of ‘3 Wishes for Pugman’.
Notas
- 1Essa resenha foi produzida como parte das atividades da disciplina “As relações entre texto e imagem no livro para crianças”, da professora Sandra Medrano, do curso de Pós graduação Literatura para crianças e jovens, do Instituto Vera Cruz.