“Foi uma luta constante… com os muitos
pequenos traços de caráter que mostram o quão similar
suas mentes são das nossas.”
Charles Darwin1Toumey, Christopher P.; Jemmy Button. In: The Americas. Vol. 44, No. 2 (Oct., 1987), pp. 195-207.
“Muito tempo atrás, numa ilha distante havia um menino.
Algumas noites, ele subia no galho mais alto da árvore
mais alta para olhar as estrelas. Ele ficava escutando o marulho das ondas
e imaginando como seria viver no mundo do outro lado do oceano.”
Alix Barzelay2Barzelay, Alix; In: Jemmy Button: o menino que Darwin levou de volta pra casa. Pequena Zahar. Rio de Janeiro, 2012.
Além de contar a história do menino nativo da terra do fogo, apelidado de Jemmy Button pelos ingleses, viajantes naturalistas, o livro fala da curiosidade humana pelo além-mar, por aquilo que parece muito novo e diferente por ser distante, mas principalmente conta o que acontece com a perspectiva de quem se desloca no espaço, por diferentes hábitos e culturas. A grande beleza desta narrativa, tanto do texto como da imagem, talvez esteja no fato de tratar de uma parte importante da história do século XIX – as expedições naturalistas e suas descobertas – do ponto de vista do objeto de estudo – o pequeno “selvagem” – e não do ponto de vista do europeu colonizador.
O texto começa contando o sonho de um menino em conhecer o mundo do outro lado do oceano. A imagem mostra o pequeno, em uma noite estrelada, sentado sobre a copa de uma árvore, em meio a uma floresta de cores brilhantes. Narra a chegada dos viajantes de terras distantes e a imagem mostra enormes silhuetas sem um caráter definido chegando à floresta luminosa. O menino é convidado a conhecer o mundo destas pessoas, com destaque para o seu olhar de espanto e encanto diante delas. Os visitantes oferecem à família do menino um botão precioso feito de pérola, o que justificaria seu apelido – “Button”. A ilustração vai além da narrativa ao apresentar o botão como o rosto do menino. Ele aparece descalço e pequeno, em meio aos homens altos e bem vestidos, por entre uma mão gigante e rosa. O contraste dos tamanhos nesse caso parece intencional, Jemmy Button sendo visto como uma joia rara, de perto, por alguém que lhe é familiar, ou a necessidade do olhar estrangeiro e suas novas perspectivas para reavaliar o que está bem próximo.
O menino e os viajantes, representados por silhuetas, andam por uma floresta enorme, com grande diversidade de vegetação. O narrador conta que Jemmy Button se despede de sua ilha, árvores e céu estrelado, e a imagem mostra uma pequena caravela vista ao longe numa imensidão de azul profundo. A viagem é longa, em um mar escuro e agitado e na ilustração aparece o rosto curioso do menino na janela do convés, observando águas claras com enorme profusão de peixes coloridos.
Na chegada ao mundo do além mar, o olhar do menino se espanta com as casas feitas de pedras empilhadas e a ilustração traz os prédios vistos em corte, colagens de papeis de cadernos. O espanto do menino com a organização das pedras para a construção das casas também é traduzido na ortogonalidade das linhas nos diferentes tipos de papeis de cadernos pautados.
Então, ele sai para explorar uma profusão de coisas deste mundo desconhecido. Nesta diversidade de pessoas e coisas retratadas na ilustração, Jemmy Button continua sendo a única imagem com traços de expressão definidos, o que indica ao leitor que sabemos da existência deste outro mundo mas só o conhecemos sob o ponto de vista do menino. É possível ver, por meio da imagem, o que parece pensar Jemmy Button. As coisas ganham nomes, chapéus, roupas e sapatos, mas as pessoas continuam sendo neutras, rostos sem expressão e caráter, segundo a ilustração construída a partir do ponto de vista do menino, colocado como observador da cena. Estas novidades todas despertam desejos e o menino vai, então, se vestindo como este “outro”. E com o tempo, vai se assemelhando progressivamente aos “outros” mas não chega a ser exatamente igual, como revela a ilustração ao mostrar apenas a expressão de estranhamento do menino e as silhuetas dos europeus, sem nenhum traço que permita identificar a expressão de qualquer afeto. Jemmy Button conhece as coisas mais especiais deste outro mundo, as luzes mais brilhantes, as músicas mais doces, e nesta aproximação sua imagem também passa a se misturar um pouco com a silhueta do “outro”.
Em pouco tempo, Jemmy Button parece sentir-se quase em casa, mas não propriamente, o que se percebe na sutileza da imagem que mostra o menino tomando sorvete na varanda de uma sorveteria da cidade, mas olhando para o alto como que buscando alguma coisa para além daquele lugar. Neste momento, o texto fala da saudade de casa, do desejo de voltar ao seu lugar de origem depois de conhecer o mundo de outro ponto de vista. Então, os visitantes concordam que Jemmy deve voltar para sua ilha e ensinar ao seu povo tudo o que viu e aprendeu.
Ao retornar, observa que a ilha continua a mesma, assim como a natureza que a rodeia. Ele mostra aos seus familiares os novos bens adquiridos, roupas e sapatos, que não tem o mesmo sentido a eles atribuído nas terras do outro lado do oceano. Jemmy Button, então, sobe no galho mais alto da árvore mais alta, escuta o marulho das ondas, sente o cheiro do vento, olha o infinito e lembrando o mundo do outro lado do oceano murmura “boa noite” com a tranquilidade de quem experimentou o que há do lado de lá e decidiu retornar as origens. O texto neste trecho é singelo e a imagem coloca o menino numa escala de grandeza também singela – o que está além não parece tão distante em uma linha do horizonte próxima. Os elementos espaciais que se destacam são a proximidade do céu estrelado, a diversidade das copas das árvores e a profundidade das águas próximas a ilha. Esta característica singela do texto e da imagem ao longo da narrativa nos aproxima de forma poética tanto do ponto de vista do pequeno “selvagem” como de uma ideia filosófica lembrada por Darwin nos textos em que conta a história de Jemmy Button: a noção de que todos os seres humanos, por mais diferentes que sejam suas origens culturais, possuem traços de comportamento comuns que comporiam uma forma essencialmente humana.
O fato da história de aproximação das culturas ser contada a partir do olhar do menino, dá ao livro a importância de narrar uma parte significativa da história ocidental de um ponto de vista pouco comum. O autor apresenta um estilo direto, e facilmente compreensível de escrita, despojado de detalhes, personagens e situações supérfluas. Há simplicidade e sobriedade no texto. Em contrapartida, a imagem transporta o leitor por diferentes espaços e brinca com a percepção, permitindo-se ousadias no uso da escala, dos contrastes cromáticos e de tratamento formal ao tratar de temas tão complexos como o desejo de conhecer terras distantes, a valorização do olhar estrangeiro àquilo que nos é comum e a complexidade da aproximação de culturas distintas. Enquanto o texto é sóbrio e direto, a imagem é prolixa e sutil potencializando poeticamente a narrativa. O leitor mergulha no olhar de Jemmy Button e transita entre dois mundos distintos alinhavados pela complementaridade entre as linguagens verbal e visual.
Notas
- 1Toumey, Christopher P.; Jemmy Button. In: The Americas. Vol. 44, No. 2 (Oct., 1987), pp. 195-207.
- 2Barzelay, Alix; In: Jemmy Button: o menino que Darwin levou de volta pra casa. Pequena Zahar. Rio de Janeiro, 2012.