Nestes dias, me pego pensando em alguns temas que sempre me rondam, como parte das problemáticas contemporâneas insistentes, entre eles o que chamo de “sofrimento da linguagem”: a oralidade face a face que se desvanece na vida cotidiana, as interações cada vez mais mediatizadas pelos aparatos tecnológicos, a ausência dos corpos com seus aromas, seus movimentos, suas vibrações construindo significados sutis na conversa, a não conversa. E pensar nessas mutações da linguagem humana (que não são efeitos somente da pandemia) me leva, é claro, aos bebês e às crianças pequenas, que ocupam grande parte da minha vida profissional.
Penso na linguagem e penso na leitura, que nesse tempo de distanciamento, sem escolas nem centros infantis, se converteram, mais do que nunca, em aliadas para um encontro, tentando recuperar as vozes queridas nas gravações que enviamos às famílias, produzindo experiências transicionais entre os afetos do jardim de infância e os lares, abrindo janelas para viajar longe, para imaginar, mesmo estando fechados em sessenta metros quadrados.
As crianças pequenas aprendem a sincronizar com outros humanos graças à linguagem oral e corporal, assim ingressam na intersubjetividade. As interações de linguagem também facilitam o apego, por isso podemos pensá-las como fontes de sobrevivência psíquica (e não só com as crianças: quantos adultos se perguntaram por seu equilíbrio e bem-estar psíquico nesses tempos em que muitos não tiveram com quem conversar).
E falando de linguagem e de leituras, queria compartilhar hoje a definição do verbo “leiturar” [lecturar]. É uma nomeação que nasceu para mim faz um tempo, enquanto lia com um grupo de bebês, nesse ambiente tão particular que se constrói quando estamos entregues ao vaivém do jogo e da vida, histórias e poesia, fazendo traduções de gestos mínimos, capturando significados e intenções quase imperceptíveis, tentando nos oferecer integralmente a essa aventura da conversa literária com seres tão deliciosos e sensíveis como são os bebês.
E por que leiturar? Eles não conseguem “ler”, a princípio precisam que outros façam a leitura para eles, então há ali algo mais que o ato de “ler”. Não é suficiente “dar a ler”, porque esse “dar a ler” não dá conta de algumas sutis implicações subjetivas desse processo de quem recebe. Ao mesmo tempo, cada experiência de leiturar contém marcas próprias da subjetividade de quem lê: suas formas pessoais de dizer, de se relacionar com as palavras, com o jogo, com o tempo, com a ternura, com a ficção, sua amabilidade e sua riqueza.
Leiturar é, para mim, produzir esse banho narrativo, linguístico, poético, que tem caráter de iniciação, e que põe em ação profundos processos psíquicos, intelectuais, afetivos, simbólicos, dos quais depende em grande parte o acontecimento de se tornar leitor.
Leiturar reúne algo do verbo “ler” e algo do verbo “amar”. Algo assim como trasvasar amorosamente aos outros a bagagem e as habilidades iniciais para construir, cada vez com maior autonomia, a experiência plena e emancipatória da leitura. Por isso leiturar supõe uma relação de compromisso e intimidade entre quem leitura e quem se leitura, como condição mesma da experiência.
Sobre leiturados e leituradas
Que habilidades leitoras têm os bebês leiturados aos cinco, aos oito, aos doze meses? Em minha experiência, compartilhando a leitura com diferentes famílias e em variados contextos, observo com insistência que precocemente eles diferenciam desenho de escrita, reconhecendo desde muito pequenos o significado através das ilustrações, compreendem sequências narrativas, podem antecipar e buscar a página preferida com facilidade. Eles memorizam relatos, têm autonomia para escolher o livro que desejam, selecionam livros por autores favoritos. Balbuciam quando leem, colocam suas acertadas protopalavras e propõem uma cadeia de ritmos e melodias. Têm uma muito boa concentração; seguem com seus dedinhos a escrita e mudam as entonações de acordo com o que a cena ilustrada oferece, reconhecem perguntas e exclamações. Eles se divertem, se comovem, se consolam, escolhem ler entre muitas outras opções de brinquedos.
Valentín, um leiturado
Valentín tem cinco meses. O livro Emma en casa [Ema em casa], 1 BAUER, Jutta. Emma en casa. Madrid: Lóguez Ediciones, 2011. de Jutta Bauer, é um de seus preferidos. Ele lê sozinho. Já recebeu muitas leituras amorosas de sua mãe, de seu pai, de sua irmã e de suas professoras. Construiu uma interioridade. Folheia com facilidade, vai e vem entre as páginas porque deseja regressar à sua preferida: aquela onde aparece a chupeta de Emma, objeto de profundo interesse para ele mesmo. Parece que ele realiza derivas de sentido quando lê, “pensa em voz alta”, repete sílabas, não só aponta com o dedo, mas também acionando colaborações com o personagem de Ema. Tem um alto nível de atenção, sua leitura autônoma dura quase vinte minutos. Sustenta uma atitude corporal muito útil para o ato de ler sozinho.
Margarita e Arcoíris
Margarita tem quatro anos de idade, terminou no ano passado o jardim de infância que dirijo; estamos na distância da pandemia e ela recebe, por meio de seu irmão menor, os poemas, os contos, os materiais que elaboramos para as famílias via WhatsApp. Margarita é uma leitora com muita experiência. Faz umas semanas, sua mãe me enviou a seguinte mensagem por telefone:
Ontem à noite chegou em casa uma gatinha que adotamos. A alegria de Margarita foi deliciosa. No dia anterior, ela amanheceu me perguntando: “— Mãe, hoje é amanhã?”.
Passou o dia todo seguindo a gatinha, que, timidamente, percorria o novo território. Margarita foi pura contenção, porque precisou conter cada impulso ao entender que a gatinha se afastaria se ela a perseguisse.
Fomos dormir já era tarde. Vamos para o quarto das crianças. Oliverio dormia há horas. Acomodamos a caminha ao lado da cama de Margarita. Ela escolhe dois livros (um fala de gatos) e nos deitamos para ler. A gatinha se levanta e começa a explorar o quarto, os briquedos espalhados, os livros no chão, a roupa, os sapatos…
Margarita se levanta. “— Espera mamãe, tenho que ler um livro para a Arcoíris”. Pega um livro de um sapo e lê para ela. Inventa uma história. Termina e volta para a cama. “— Agora é a vez de lerem para ela”.
Margarita uma leiturada disposta a leiturar. Fico comovida com o relato e invento um poema para Arcoíris (seu nome ajuda a inspiração), e lhe envio.
Ontem, sua mãe me contou que todas as manhãs, como um ritual, quando Margarita acorda, e junto com ela a gata, sua primeira ação do dia é fazê-la escutar o poema Arcoíris. Ela já o sabe quase de cor e o recita junto comigo, que estou tão longe.
Margarita, além de ler livros, lê gatos, porque quando sua mãe conta que está se regulando nas intervenções amorosas, está nos falando de “leitura”. E isso não é só um exemplo simpático, é um sintoma da profunda compreensão da intersubjetividade e do significado da comunicação, da riqueza dos gestos com suas múltiplas camadas de sentido.
(Quanto mais duro é o presente – e o futuro –, mais necessário se torna ler com sensibilidade de artista a nebulosa e surpreendente realidade que nos incomoda e desconcerta, a cada passo).
Úrsula, entre o jardim de vozes e o silêncio interior
Entre as novas intervenções culturais que a pandemia nos legou está nossa feira virtual de livros. Todos os anos, realizamos uma feira de três dias, em julho e em dezembro, um grande banquete com cerca de três mil livros para ler, folhear, escutar, desfrutar e, quem quiser e puder, comprar. Mas dessa vez não havia como nos encontrarmos fisicamente nem entre nós nem com os livros. Pensei, então, na possibilidade de criar uma feira virtual. Selecionamos livros preferidos, gravamos videoleituras de contos, poemas, livros-álbum, quadrinhos, novelas. Para crianças e para adultos. Construímos categorias, pastas de drive [nuvem] que funcionavam como “estantes”. E o mais interessante foi que se juntaram, como leitores, muitos dos meninos e meninas que concluíram o jardim, e que agora tinham entre seis e treze anos. Aquela estante, das leituras realizadas pelos que já haviam saído do jardim, foi sem dúvida a mais bela e emocionante de todas. Tantos leiturados oferecendo suas vozes, suas habilidades leitoras, seus saberes e seu amor aos demais.
Úrsula, que tem seis anos, foi uma dessas leitoras; nos presenteou com El punto, de Peter Reynolds 2 REYNOLDS, Peter H. El punto. Madrid: Serres Ediciones Sl, 2004.. Mas o mais assombroso foi o seguinte: sua mãe me contou que ela passou vários dias, grudada à televisão, vendo e escutando cada vez mais leituras da feira. No meio desse processo, pegou uma caderneta e começou a anotar ali os títulos dos livros que já havia lido/escutado para revisar as pastas/estantes e não perder nenhum. Quando terminou de ler tudo o que lhe interessou, se fechou em seu quarto e colocou esse cartaz na porta: “Não passar. Úrsula lendo sozinha”.
A partir desse momento, ela começou a ler e reler livros de sua própria biblioteca, em silêncio, com a necessidade de construir uma intimidade, afastada dos outros. Passou vários dias ocupada nessa tarefa solitária e profunda. Lia na cama, como mostra sua ilustração. Uma leiturada, leiturando-se.
Benito e Magdalena
Um registro desses últimos dias, de uma família que vive profundamente a leitura desde que os filhos eram bebês. A mãe de Benito, de nove anos, e de Magdalena, de seis, é professora; trabalha de sua casa muitas horas por dia. Ela me contou que há alguns dias seus filhos apareceram com uma reclamação contundente: disseram-lhe que estão com ciúmes porque ela passa muito tempo com seus alunos e que não gostam disso: tê-la ao lado, mas não poder contar com ela, não interrompê-la, não brincar, não fazer barulho. Para remediar esse fato, lhe pediram, ou melhor, exigiram que, daquele dia em diante, ela deveria ler cinco livros toda noite (deram-lhe um castigo). A mãe aceita, mas está tão cansada, que vai caindo de sono logo no segundo ou terceiro livro. Para seus filhos, não importa; quando a mãe dorme, eles dividem os livros que sobraram entre si, alguns para Benito e outros para Magdalena. Claro, ela escolhe aqueles que sabe de cor porque ainda não lê letra minúscula.
E já não importa que a mãe tenha dormido enquanto eles leem, porque conseguiram seu principal objetivo: agarrá-la entre suas garras amorosas e tê-la para eles, banhada em contos; deter o tempo de trabalho desgastante da pandemia e retirar-se para um bosque onde eles são os donos da alegria (É uma sorte, para suas vidas pandêmicas, sua condição de leiturados).
Leiturar, para mim, acabou se tornando um conceito imprescindível. Uma vez pensei em escrever um abecedário de palavras imprescindíveis (amo os abecedários ilustrados). Leiturar poderia ocupar o “L” desse abecedário.
Susana, ou quem lectura quem…
Faz alguns meses, em uma oficina que coordenei em um Fórum de Leitura, introduzi o conceito de leiturar. Alguns dias depois, recebi um e-mail de Susana, fonoaudióloga e professora de formação docente, que havia assistido a oficina. Seu e-mail se chamava “Leiturar-me para poder leiturar”. Ela fazia alusão à sua prática e a tantas patologias (certas e inventadas, explica Susana) que vão se instalando pela ausência da linguagem entre pais e filhos, pela falta de uma estimulação amorosa.
O que é preciso para poder leiturar? Basta ter intuições? É preciso conhecer os pequenos leitores? Uma experiência própria com a leitura literária? Um exercício de mediação reflexiva? Uma disponibilidade e um desejo especiais? Como leiturar com jovens ou adultos?
Ela também disse que queria começar a trabalhar com a linguagem das crianças desde a gestação, que queria orientar as famílias, e que “porque pensar que as mães e os pais têm que saber, de antemão, que ler com seus filhos é tão importante” (essa foi uma pergunta que propus aos participantes para pensar) a havia deixado muito mobilizada. Susana queria leiturar, sente que leiturando poderá fazer muito pelas crianças e pelos adultos que estão por perto.
Mas acrescenta: “— Preciso me leiturar com alguém que me ensine a leiturar”. E então surgem novas perguntas: o que é preciso para poder leiturar? Bastam intuições? É preciso ter saberes sobre os pequenos leitores? Uma experiência própria com a leitura literária? Um exercício de mediação reflexiva? Uma disponibilidade e um desejo especiais? Como leiturar com jovens ou adultos (é o mesmo que com as crianças?). Quaisquer que sejam as respostas, gosto de destacar, por um lado, esse carácter lectoamoroso também na transmissão entre adultos já leitores, como Susana e eu – e, por que não, entre adultos e ponto –, assim como a inquietacão e o efeito de contágio que nos faz pensar nesta possibilidade de encontro humano.
Suspeitas e elucubrações
Leiturar é uma intervenção cultural e afetiva que alimenta a capacidade metafórica de pequenos e grandes, uma forma de garantir o direito à poesia, à conversa, ao intercâmbio, à cultura escrita, independentemente da idade cronológica dos implicados.
E nesses tempos tão complexos, talvez gozar da condição de leiturados proporcione uma base simbólica e intersubjetiva que permite superar parte da mesquinhês do isolamento, à força de sensibilidade, linguagem, um vínculo intrafamiliar mais generoso e a continuidade do jogo.
Suspeito que esses meninos e meninas de que falo, e muitos outros como eles, ainda com as interferências das mediações tecnológicas, estão protegidos. Porque sabem ler o mundo com sensibilidade de artistas, porque descobriram a potência de ter uma interioridade e, ao mesmo tempo, a crescente habilidade de compartilhar os estados mentais e afetivos dos outros (seres reais ou ficcionais). Leiturar é, então, e também, uma intervenção sobre a escuta, e a escuta é – provavelmente – um dos bens em extinção, pelo qual haveremos de pagar no futuro.
Leiturar e seu hipotético valor político: uma deriva
Byung-Chul Han, o filósofo coreano, se pergunta pela escuta como forma de hospitalidade – além de ressaltar seu valor comercial iminente – e retorna a Nietzsche, à sua ideia de “a alma superabundante”, como aquela que é capaz de experimentar ternura para com o estranho, entre outras amabilidades.
Penso a escuta como uma “ternura para com o estranho”, para o desconhecido, o não sabido dos outros. E se somarmos a isso a valorização da heterogeneidade de sentidos que os livros oferecem, as diferentes e infinitas cosmovisões que aprendemos a amar através deles, seria exagerado supor que um mundo de leiturados, leituradas e leiturades (que não é só gente que sabe ler) seria capaz de fazer avançar a sociedade no sentido da empatia humana – que sempre tem algo de poético –, na inclusão, na hospitalidade e na alteridade? Ou será só uma elucubração ingênua e desesperada que, para se transformar em esperança, dissimula o risco de não ser?
Imagem: Foto de @IvanMarques
Notas
- 1BAUER, Jutta. Emma en casa. Madrid: Lóguez Ediciones, 2011.
- 2REYNOLDS, Peter H. El punto. Madrid: Serres Ediciones Sl, 2004.