Ele avançou na escuridão até as prateleiras e projetou a luz
balançando-a para frente e para trás diante das estantes.
Sentei na cama – O que você vai fazer? – perguntei.
– Acho que vou ler para ela – respondeu Seymour, e pegou um livro.
– Mas, por favor, ela só tem dez meses – eu disse.
– Eu sei –, respondeu Seymour –. mas tem ouvidos. Escuta.1
A discussão e defesa da importância da leitura desde a primeiríssima infância não é recente. Algumas das teorias mais significativas sobre este tema foram desenvolvidas na América Latina por autores como Evelio Cabrejo-Parra, Yolanda Reyes, ambos colombianos, e María Emilia López, argentina2. E, como diz Seymour: a pequena Franny “tem ouvidos. Escuta”. E é justamente essa voz, a voz poética presente nas canções de ninar, nas cantigas, nas histórias transmitidas oralmente, nos livros, a grande responsável por fornecer o alimento emocional necessário que pode garantir um desenvolvimento psíquico saudável, como insiste em afirmar Evelio Cabrejo-Parra3. E junto com disso, é a porta de entrada para a cultura, ou melhor, para as culturas, pois sejam elas orais ou escritas, encontramos em todas uma grande riqueza de canções, brincadeiras e histórias que acompanham bebés e crianças na infância.
A pequena Franny escuta…
E aqui temos um primeiro desafio. Um dos problemas que afeta as sociedades contemporâneas, em consequência do processo utilitarista cada vez mais acelerado que rege as nossas vidas, é a perda progressiva, geração após geração, das referências culturais ancestrais da tradição oral. Quais as consequências disso? María Emilia López, em seu texto recente “Democracia para as infâncias e adolescências”, afirma que tem ouvido frequentemente testemunhos deste tipo: Não sei brincar com meu filho, não sei como falar com ele, não sei falar com ele, não sei falar. Esta carência de repertório afeta profundamente o desenvolvimento das crianças cada vez mais privadas de ferramentas para viver plenamente a sua infância.
Talvez esta seja uma das primeiras pistas da profunda crise civilizatória e do processo de brutalização que vivemos, cujos reflexos mais evidentes se manifestam na polarização de um mundo cada vez mais marcado por uma desigualdade social irreversível que revela, sem nuances, a falta de alternativas para superá-lo dentro do capitalismo. Estes são limites estruturais impostos pela própria lógica do capital, que revela, nesta fase do seu desenvolvimento, as suas raízes colonialistas e imperialistas e a sua incapacidade de resolver as profundas contradições que ele próprio gera e das quais se alimenta, se repõe e sobrevive.
Sei que não se trata de fazer aqui uma análise sociológica da contemporaneidade. Porém, a partir deste contexto, uma questão central se coloca: a final a que infâncias nos referimos quando pensamos, por exemplo, em “literatura infantil”? Pensamos nos territórios, nos entornos em que essas crianças vivem? Se em algum momento, em certos países, se viveu uma certa estabilidade, isso hoje é impensável, a periferia chegou aos centros e ali se instalou. A separação (ilusória) entre Norte e Sul foi apagada pela força das contradições insolúveis que a desigualdade, os conflitos, as guerras provocam.
Se tomarmos como exemplo “a infância” no Brasil, é muito provável que a maioria dessas crianças e desses meninos e meninas vivam em condições desfavoráveis e de risco, em situações de extrema vulnerabilidade. Podemos estender isto a outros países latino-americanos, às crianças refugiadas na Europa, na África, às crianças ucranianas, palestinas, arménias… Como não pensar, desde nossa responsabilidade como mediadores, quer sejamos editores, bibliotecários, professores, autores ou ilustradores, em todas estas infâncias, nas infâncias? Criamos e pensamos “literatura infantil”, mas para quem? Para aquelas crianças que vivem “sob a proteção do mercado” e nele estão incorporadas e por ele “protegidas”?
Porque, queiramos ou não, as imagens estão aí, a violência, a pobreza, a miséria estão presentes, cada vez mais visíveis, na maior parte dos nossos países. Como fechar os olhos diante disso? Como “proteger nossas crianças” de um mundo tão violento e desigual? Afastando delas todas as contradições? Quem viveu da década de 1950 em diante sabe que as concepções “protetoras” da infância foram recuperadas e tiveram sucesso, e a literatura infantil é um dos seus testemunhos mais notáveis. Foi restaurada a crença na ingenuidade e pureza das crianças de tempos anteriores, crença que foi abalada, sem dúvida, pela Guerra do Vietnã e outros conflitos globais. Mas naquela época não existiam redes sociais…
Perry Nodelman, importante especialista canadense de literatura infantil, em seu ensaio Somos mesmo todos censores, publicado pelo Selo Emília em parceria com a Editora Solisluna, testemunha e revela os meandros dessas concepções e suas profundas contradições. Quando solicitamos autorização para publicar este texto, ele concordou com uma condição: publicar um segundo ensaio “Ainda somos todos censores – e isso inclui Perry Nodelman” que fosse uma revisão crítica do primeiro. Neste novo texto, o autor surpreende pela sua honestidade intelectual ao reconhecer os limites e as dificuldades teóricas presentes na sua análise anterior, onde defendeu a ideia de que: “Não há nada que deva impedir uma pessoa de dizer ou escrever, nada, não importa quão ofensivo, estúpido ou perigoso possa parecer.” Uma generalidade que à primeira vista não coloca em risco a segurança das crianças.
Isto porque, como muitos de vocês devem de estar pensando, é evidente que ninguém concordaria com um livro que fosse ofensivo ou preconceituoso. Contudo, se olharmos para grande parte da produção dos “livros infantis”, até muito recentemente, as preocupações com aspectos sexistas e racistas, por exemplo, não eram consideradas inaceitáveis. Pelo contrário, autores reconhecidamente racistas, com passagens altamente ofensivas em seus livros, ainda são considerados referências importantes da literatura infantil. Não é preciso ir muito longe, Monteiro Lobato talvez seja um dos maiores exemplos entre nós.
E aqui estamos frente a um novo desafio: Trata-se de cancelar Monteiro Lobato? Devemos parar de ler clássicos como Tom Sawyer? Penso que não. Essa não seria a solução, ainda que ela esteja em profunda sintonia com o espírito do nosso tempo, um tempo de censura em que debate e reflexão dão lugar às fake news, à intolerância, ao obscurantismo e a tudo o que pode romper com a tradição e a propriedade de uma sociedade branca e patriarcal. Como tratar então estes casos? Talvez com uma mediação critica, cujo repertório apresente leituras diversas, resultado de uma seleção criteriosa capaz de questionar cânones estabelecidos e destronar mitos. Com mediadores capazes de estimular a reflexão e a troca de ideias, ouvintes atentos, leitores fervorosos dos livros e do mundo.
O que foi que Perry Nodelman quis mudar em 2020 do ensaio escrito em 1992, ou melhor, o que aconteceu que o levou a perceber os limites de sua primeira formulação? O mundo mudou e ele teve sensibilidade para perceber tais mudanças. Prometo não voltar a entrar no modo análise sociológica, mas é inevitável mencionar algumas transformações. Como resultado das profundas contradições geradas pela complexidade social, na contracorrente, ao longo das últimas décadas, ocorreram mudanças que tomaram forma e conquistaram espaço, colocando em cena agentes sociais até então na invisibilidade.
Por um lado, a afirmação económica, social e política das mulheres que questiona a tradição patriarcal e sexista de nossa sociedade. Por outro, a conquista de visibilidade por parte de amplos setores sociais que, até recentemente, eram invisíveis e completamente marginalizados. Isto levou à afirmação das lutas e à conquista da representação dos afrodescendentes e dos povos indígenas, bem como dos movimentos minoritários que têm ganhado destaque e iluminado as margens. Foram levantadas questões sobre identidade de gênero, discussões sobre sexualidades e questionamentos de estruturas sociais reproduzidas durante séculos. O movimento das periferias mudou o eixo do olhar e da maneira de pensar.
A resposta a tudo isto tem sido a polarização política e o surgimento de propostas obscurantistas, regressivas e profundamente reacionárias, que conduziram à fórmula que tem caracterizado a maior parte dos processos políticos mais recentes em todo o mundo, com nuances únicas, mas colocando no centro o dilema: civilização x barbárie. Estas novas vozes ganharam espaço e questionaram o que até muito recentemente era considerado normal, “tolerável”, pelo menos para os privilegiados com acesso à cultura e, no caso aqui, à literatura, aos livros.
Na literatura, todos os cânones ruíram, surgiram novos géneros e uma multiplicidade de vozes tornou-se presente, também na literatura para as infâncias. A artista e escritora Grada Kilomba4 deixa claro essa questão em um trecho de seu livro Memórias da plantação: Episódios de racismo do cotidiano: “Meus escritos podem ser repletos de emoção e subjetividade, pois, diferentemente do academicismo tradicional, os intelectuais negros são nomeados, também como seus lugares de expressão e escrita, criando um novo discurso com uma nova linguagem. Eu, como mulher negra, escrevo com palavras que descrevem a minha realidade.”
Mas, afinal, e as crianças, em tudo isto?
A prática tem mostrado a importância dos leitores se identificarem com os personagens e realidades que os livros narram. Em países como o Brasil, até recentemente, o racismo estrutural impôs a hegemonia da literatura para infâncias centrada em personagens brancos dentro de um imaginário na melhor tradição ocidental. Uma produção editorial distante das realidades vividas à margem. Com a conquista e apropriação de espaços por leitores, autores e ilustradores negros e indígenas, esse panorama mudou e ampliou os nichos do mercado. Esta nova produção, pelo seu significado e representatividade, rompe barreiras e amplia fronteiras, chegando a locais que até recentemente eram de difícil acesso.
Porém, como muitas vezes acontece, o mercado, o tal da “mão invisível”, rapidamente se apropria destas novas vozes, nem sempre da forma mais genuína e honesta, muitas vezes com obras estereotipadas e distantes da verossimilhança. Mas há um outro lado desta mesma moeda: a defesa linear e simplista de muitas destas vozes a partir de uma posição “politicamente correta”. Nestes casos, os livros tornam-se pequenos manuais, quando não manifestos, de ideias ou princípios que fecham qualquer possibilidade de reflexão e imaginação que a literatura possa oferecer. Muitas afirmações, muitas respostas para poucas perguntas.
Apesar de tudo isto, livros com temáticas cada vez mais diversas e inclusivas, clássicos de todas as épocas, escritos por autores de todas as culturas e nacionalidades, chegam cada vez mais a meninas e meninos, seja através de escolas, bibliotecas públicas ou bibliotecas comunitárias, que desempenham um papel fundamental na promoção da leitura e na formação de leitores nas periferias. Como afirma Bel Santos Mayer, uma das principais promotoras do livro e da leitura no Brasil, no seu livro Parelheiros, Idas e Vindas – Ler, viajar e movimentar-se com uma biblioteca comunitária5: Enquanto as bibliotecas públicas são criadas e mantidas pelo Estado, as bibliotecas comunitárias no Brasil têm sua origem diretamente relacionada à distribuição desigual dos recursos culturais nas cidades e à falta de atenção do Estado às políticas do livro, da leitura e das bibliotecas /…/ Indivíduos e grupos comunitários /…/ escolhem a defesa do a democratização do acesso à leitura e à escrita como causa. A defesa do “direito humano à literatura”, tal como o promoveu Antonio Candido, é, como todos sabemos, em nossos países, um trabalho de militância.
Aceitar esse compromisso já é um desafio, mas quando o incorporamos no contexto do mundo digital, o desafio torna-se ainda maior. Até hoje ficamos surpresos ao ver bebês segurando o celular, deslizando os dedos para abrir imagens, conectando-se sem a menor dificuldade, muitas vezes com mais destreza do que muitos adultos. Parece que nascem sabendo fazer. Mesmo aquelas crianças privilegiadas “protegidas” das telas acabam sendo contagiadas pelos produtos da moda. Que criança é essa cujas antenas vão de Frozen6 ao problema da destruição da Amazônia, da destruição da Amazônia ao extermínio dos povos indígenas, e daí à invasão de Gaza, à guerra na Ucrânia, e a pobreza que tropeça toda vez que sai às ruas?
Essas crianças protegidas tem ao seu redor adultos – na família, na escola – que se esforçam em lhes proporcionar condições para que aproveitem o melhor da infância: o direito de brincar e tudo o que isso implica, como “a exploração do enigma”, nas palavras da grande Graciela Montes7, alimento para a imaginação e para a construção do espaço próprio e de uma subjetividade saudável. Mas junto a essas crianças privilegiadas, sabemos que existem milhares de crianças em todo o mundo destituídas de seus direitos elementares, destituídas de suas infâncias. Talvez este seja o maior desafio: como garantir, restituir este direito à infância a todas as crianças desde uma perspectiva emancipadora? Afinal, é disso que se trata. Como fazer dos livros uma ponte para a humanização, para a emancipação? Graciela Montes afirma que “nossa época nos rouba o enigmático” porque “o que o mercado menos precisa é do enigma”. E continua dizendo que “restabelecer o enigma é hoje um gesto revolucionário. Hoje, o revolucionário é o enigma, não a norma… a instituição do diferente, do heterogêneo”. E este estabelecimento “da diversidade implica certas formas de desobediência. Isto é, resistência às normas”. E nada melhor que a literatura para enfrentar o “enigma”, esses “leitores desobedientes” capazes de dizer não às regras. Daí, a urgência de livros inquietantes que tirem o chão, que estimulem. Mais perguntas e menos repostas.
Isto nos coloca diante de um outro desafio. Mencionamos anteriormente que os bebês nascem praticamente conectados, mas quais são os desafios da leitura na era digital? Maryanne Wolf, neurocientista americana, em seu livro O cérebro no mundo digital – os desafios da leitura na nossa era8, alerta sobre uma série de questões. Ao analisar o que acontece no nosso cérebro quando lemos e como a proliferação das telas afeta a forma como lemos, a autora destaca a importância da leitura profunda na história da humanidade e como ela está sendo ameaçada. Ela explica: Os processos de leitura profunda levam anos para se desenvolver e, como sociedade, devemos prestar atenção ao seu desenvolvimento nos nossos jovens desde cedo. Um dos principais desafios, segundo ela, é a falta de atenção voltada para “explorar” e da atenção voltada para “sobrevoar”. Duas ações distintas responsáveis por aproximações à realidade totalmente diversas.
Mas Maryanne Wolf avança tematizando a leitura profunda, isto é aquela que permite “o ato de assumir a perspectiva e os sentimentos dos outros /…/, transportar-nos ao encontro de outros seres humanos” e, assim, testemunhar a “dimensão comunicativa” da leitura, que nos permite “estar na companhia dos outros”. Gerar “empatia pelo Outro”, pelo diferente é fruto de um tipo de leitura, cada vez mais distante das jovens gerações, expostas desde a mais tenra idade às telas. Tem que ver com a capacidade de aprofundar ou de sobrevoar, de ler os silêncios, ou ficar nas entrelinhas. De procurar indícios e construir sentidos frente aos enigmas que a literatura coloca. Este leitor requer uma formação e o desafio reside em que os estímulos atuais tendem a dificultar o desenvolvimento de pré-requisitos fundamentais ao desenvolvimento de leitores profundos. Mas, longe de ter uma visão de rejeição ou negação do mundo digital, Maryanne Wolf alerta para o perigo de crianças entre 3 e 4 anos usarem telas indiscriminadamente e destaca a importância dos livros e da leitura no desenvolvimento dos pré-requisitos para se tornarem futuros leitores profundos, leitores literários.
Como enfrentar este desafio? O modelo de leitura que as crianças têm (quando o têm) é exatamente o de adultos numa relação praticamente simbiótica com os seus celulares, com as telas. Impossível não lembrar aqui do consenso entre os altos executivos do Vale do Silício de manter os seus filhos afastados dos dispositivos tecnológicos na infância, uma vez que, segundo eles, os benefícios na educação seriam limitados e o risco de dependência elevado? Mas mesmo este aviso, vindo de onde veio, não foi suficiente.
E aqui estamos diante de um novo desafio que surge de uma aparente contradição: Nunca se leu tanto como se lê hoje. Estamos constantemente conectados, independentemente da idade. Mesmo para as funções mais básicas do dia a dia, é necessária alguma familiaridade com a tecnologia digital, com a leitura. Contudo, vivemos uma realidade em que a simples leitura não significa muito face à barbárie contemporânea, à desumanização do presente, a que já nos referimos. Muita informação, pouco espírito crítico, pouca empatia, pouca sensibilidade social.
O que significa isto? Significa que é urgente repensar de que leitura estamos falando e que leitor queremos formar. Este já é um desafio importante por si só, mas há um agravante: em países como o nosso, pelo fato do acesso ao livro e à leitura não ser igual para todos, a luta deve centrar-se, como referiu António Candido, na democratização do direito humano à literatura. Um duplo desafio se tivermos em conta as conclusões de Maryanne Wolf.
Quando chegamos a este ponto, fica claro que estamos falando de uma leitura literária e de um leitor profundo que é capaz de se conectar com o Outro, lendo os enigmas, sendo um leitor desobediente diante das regras, que tem o distanciamento necessário para pensar e ver o mundo de uma perspectiva crítica e transformá-lo em algo melhor. Isto implica incluir o Outro, o diferente, algo que a literatura de alguma forma pode contribuir e conduzir nosso olhar.
Sabemos que não é uma tarefa simples e que a formação de leitores críticos não depende apenas de saber ler, mas de como se lê e do que se lê. Mas, não só, e ai temos as reflexões fundamentais de Constantino Bertolo9 para nos ajudar a pensar nas tramas leitoras e em como elas marcam os diferentes perfis leitores. Pois, o que vale enfatizar aqui é a leitura como prática inserida na complexidade histórico-social, e não como uma generalização abstrata portadora, em si, de qualquer beneficio ideal.
E chegamos ao último desafio desta exposição: o papel da mediadora, do mediador, isto é, daquele responsável pelo estabelecimento de pontes entre os livros e os leitores. Este desempenha uma função fundamental ao longo da história da leitura de qualquer leitor e, no caso da leitura na infância, o papel da mediação é fundamental. Se algo caracteriza e diferencia esta fase de formação das posteriores, é precisamente a necessidade constante de um adulto fornecer livros aos pequenos leitores. Isto envolve a escolha e disponibilização de títulos, o incentivo, o exemplo, a leitura compartilhada. Parece simples na teoria, mas na realidade não é, pois a forma como isto tudo é feito depende das concepções de infância, leitura, literatura e do perfil de leitor daquele mediador ou mediadora. Como afirma Bertolo no seu livro: Cada leitor lê na companhia de circunstâncias sociais e históricas que lhe fornecem critérios, hábitos, referências, teorias ou escalas de valores e, consequentemente, é a realidade que finalmente ler.
É da mediação a responsabilidade pela escolha de títulos que mexam com os leitores, que permaneçam nas suas memórias, como momentos estruturantes de um itinerário leitor que não acaba nunca. Quanto mais inquietantes forem os livros, quanto mais apaixonada e fervorosa for a mediação, certamente, maior a receptividade dos pequenos e jovens leitores. Selecionar, convidar, estimular, escutar, conversar com entusiasmo são algumas das ações que cabem na mediação.
Se estiver claro que a introdução precoce à leitura, ao livro e à poesia “facilita” (embora não garanta) a formação de futuros leitores, o papel da mediação é fundamental. Como diz María Emilia López10: Gostaria de pensar numa dimensão política para a visão partilhada. A democracia para bebés, meninos e meninas e suas famílias implica também repensar, discutir e instalar espaços e dispositivos que nos conduzam à visão partilhada, um eixo fundamental na experiência da alteridade e no desenvolvimento de si mesmo, essa enorme tarefa que todos os meninos e meninas têm pela frente.
Mediar, compartilhar “fazer parte de algo com alguém”. Que concepção de infância (ou infâncias) permite que o adulto compartilhe? Aquela que ouve a voz das crianças? Aquele que observa a singularidade dos seus gestos quando ainda não fala, mas comunica através do corpo? Aquela que mergulha nos mundos e significados da infância para os quais muitas vezes as portas estão fechadas? Aquele que se abaixa para olhar as crianças na altura dos olhos? Aquela que dá voz a cada uma das crianças, ou seja, “reconhece o direito das crianças de serem os primeiros autores das suas próprias vidas”?
Na contemporaneidade, onde a diversidade de vozes é fundamental para a humanidade, não é mais possível falar de infância, adolescência e juventude no singular. Desde o título desta conferência, falamos de “infâncias” em relação a todas elas. Como mediadores de leitura, talvez essa seja a principal chave para chegar a esses bebês e crianças, cuja maioria, como sabemos, não tem seus direitos básicos garantidos. A questão pode não ser o que ler para eles, mas quais leituras podemos compartir para que também escolham e se identifiquem. O que importa aqui é o como, a forma como partilhamos, a forma como olhamos e ouvimos esses bebés e crianças. O respeito e a escuta que lhes dedicamos. Enfrentar todos esses desafios envolve a mediação, a forma como o mediador se posiciona diante desse universo de questões. E aqui, apenas algumas foram abordadas.
As crianças precisam saber;
É melhor saber as coisas do que as coisas acontecerem sem saber, como a guerra. A morte.
Se as crianças sabem das coisas, elas não têm mais medo e eles também sabem sobre coisas perigosas.
É importante aprender coisas importantes.
As crianças devem estudar; para que possam fazer o que quiserem.
“As crianças têm o direito de saber tudo, só não deveriam saber os segredos dos outros.
Maria Teresa, 5 anos, uma das autoras do livro “Uma Jornada pelos Direitos da Criança”.
Mensagem dada.
* Texto apresentado no Congresso Para Ler o XXI, La Habana, Cuba, Outubro 2023.
Imagem: Colagem Thais Silva – Black Collage.
Notas:
- JD Salinger. Carpinteiros, Levantem bem Alto a Cumeeira e Seymour, uma Apresentação. ↩︎
- Bibliografia sobre este tema em português: Evélio Cabrejo-Parra, “Entrevista Revista Emília”: https://emilia.org.br/evelio-cabrejo-parra/, Oralidade: destino individual e social das meninas e meninos, (no prelo); Yolanda Reyes, “Entrevista Revista Emília”: https://emilia.org.br/yolanda-reyes/;
A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância, Global Editora, SP 2010; Ler e brincar, tecer e cantar: literatura, escrita e educação, Editora Pulo do Gato, SP 2012; María Emília López, Um mundo aberto, Selo Emília, SP 2017; “Democracia para as infâncias e adolescências”, Revista Emília: https://emilia.org.br/democracia-infancias-adolescencias/; “Leiturar”, Revista Emília: https://emilia.org.br/leiturar/; Caderno Emília Nº 0. ↩︎ - Evélio Cabrejo-Parra, “Entrevista Revista Emília”: https://emilia.org.br/evelio-cabrejo-parra/. ↩︎
- Grada Kilomba, Memórias da plantação: Episódios de racismo do cotidiano, Editora Cobogó, SP 2019. ↩︎
- Bel Santos Mayer, Parelheiros, Idas e Vindas – Ler, viajar e movimentar-se com uma biblioteca comunitária, Selo Emília & Editora Solisluna, SP / BA 2022. ↩︎
- Frozen ou Uma Aventura Congelante filme de animação musical produzido nos Estados Unidos pelos Estudios Disney, 2013. ↩︎
- Graciela Montes, Buscar Indícios, Construir Sentidos, Selo Emília & Editora Solisluna, SP / BA 2019. ↩︎
- Maryanne Wolf, O cérebro no mundo digital – os desafios da leitura na nossa era, Editora Contexto, SP 2019. ↩︎
- Constantino Bertolo, O Banquete dos Notáveis: Sobre Leitura e Crítica, Selo Emília e Livros da Matriz, SP 2015; “O que ler”, Revista Emília: https://emilia.org.br/o-que-ler-2/; “Entrevista com Constantino Bertolo, Revista Emília: https://emilia.org.br/constantino-bertolo/. ↩︎
- María Emilia López, “Democracia para as infâncias e adolescências”, Revista Emília: https://emilia.org.br/democracia-infancias-adolescencias/. ↩︎