Uma das lições das minhas aulas de francês foi reconhecer o traço inconfundível de Jean-Jacques Sempé. Talvez porque depois de O pequeno príncipe, o rito didático da leitura literária em língua francesa leve os professores a apresentar O pequeno Nicolau (Martins Fontes) aos seus estudantes. Um personagem realmente apaixonante, cujos traços são tão eloquentes quanto as ideias. Um garotinho que nos devolve aos bancos e pátios da escola, à inocência trapaceira de todo aluno e à paixão tensa pelos colegas e pelas confusões. A história, que virou coleção de livros, série e filme, é uma parceria com René Goscinny – um grande criador de personagens, haja visto Asterix e Obelix. Mas Nicolas tem dois pais, nasceu em 1959 e foi batizado por inspiração no nome da famosa loja francesa de vinhos, cuja propaganda circulava na carroceria de um ônibus enquanto Sempé andava por Paris; cidade que foi, aliás, sua grande paixão.

Sempé nasceu na periferia de Bordeaux (1932) em uma família assombrada pelo álcool e pela pobreza. Descobriu ser filho adotivo com quase 30 anos e a voz doce e triste com que conta essas experiências de vida em entrevista são tão marcantes quanto seus desenhos. Deixou a escola aos 14 anos e se alistou no serviço militar para poder morar em Paris. Foi corretor de vinhos, entregador, manobrista, até conseguir vender seus desenhos à imprensa. E foi em 1978, pela capa do semanal The New Yorker, que Sempé ficou mundialmente célebre. Uma capa emblemática, retratando um pombo engravatado no beiral de uma janela no alto de um prédio, foi a primeira das centenas de desenhos inesquecíveis do ilustrador francês que estamparam The New Yorker, revista onde, aos 50 anos, encontrou enfim sua família, como dizia emocionado.
Sempre solitário, confessa que amava o rádio, sobretudo, os programas de jazz, que não perdia por nada. Certa vez, ainda adolescente, estava fora de casa no horário de sua emissão preferida e convenceu uma família de estranhos a deixá-lo escutar o programa na casa deles argumentando que seu pai tocaria no rádio.
Essa inclinação para a fantasia o fez levar a agruras com mais leveza e compor personagens com problemas singelos e profundamente metafóricos, como Marcelino Pedregulho – o menino que enrubesce sem motivo, Renê Rocha – que espirra o tempo todo, Filomena Firmeza – a bailarina que não foi, senhor Lambert – um careta apaixonado, Raul Taburin – um mecânico de bicicletas que não sabia andar de bicicleta e encontra um fotógrafo que nunca acertava o momento do clique. Todos eles imortalizados em livros-álbuns de estilo único, com traços ligeiros e elegantes que demandavam longas jornadas de trabalho. Fiel às edições Denoël, Sempé publicou um álbum por ano, sempre com títulos discretamente bem-humorados.
Um ônibus cruzando o rio Sena à noite, músicos, ciclistas, dançarinos, cenas no Central Park, no Mediterrâneo ou no Jardim de Luxemburgo. Em cada uma de suas obras, encontramos os temas prediletos de Sempé: a pequenez do homem diante da natureza, sua solidão na cidade, seus argumentos, seu ridículo, suas ambições excessivas, os limites do espírito de equipe. Os desenhos de Sempé são eternos, com linhas determinadas pelo acaso e que não devem nada à realidade – seus imóveis parisienses, por exemplo, não têm balcões no 2º e 5º andar, como na verdadeira arquitetura da cidade –, embora nos façam sonhar tanto com ela.
Em todas as suas declarações e obras, vemos em Sempé um homem simples, de elegância atemporal e terna ironia, alguém que, tendo sonhado ser pianista de jazz e jogador de futebol profissional, foi dos maiores desenhistas do mundo. Foi esse narrador requintado e pungente que reencontrei nas aulas do ilustrador brasileiro Odilon Moraes, um de seus discípulos, se prestarmos bastante atenção em suas obras. A paixão com que Odilon apresentou Raul Taburin naquela noite foi contagiante e mostrou tanto que desenho é sim literatura, tanto que a literatura transcende o tempo e as fronteiras.
Mas, ironicamente, no ano de sua morte, a SESI-SP, detentora dos direitos de alguns de seus livros no Brasil, anuncia que vai parar de publicar literatura. Os leitores brasileiros têm, no entanto, o direito de apreciar sempre a graça melancólica e filosófica dos desenhos narrativos do “gato”, como o chamavam seus admiradores, para quem o homem era um “animal inconsolável e alegre”.
Referências
BASSETS, Marc. Muere el dibujante francés Jean-Jacques Sempé, padre de ‘El pequeño Nicolás’. El País, 11 de agosto de 2022.
BUSNEL, François. Sempé : “Je crée des petits êtres perdus dans le vaste monde”. Podcast Les grands entretien Busnel. Radio France Inter, 28 de dezembro de 2011.
KRÉMER, Pascale. « Je dessine ce que j’aurais voulu être » : le dernier entretien « Je ne serais pas arrivé là si… » de Sempé au « Monde ». Le Monde, 12 de agosto de 2022.
MARMANDE, Francis. Le dessinateur Jean-Jacques Sempé est mort. Le Monde, 11 de agosto de 2022.