O que ler?

Post Author

1 Texto originalmente publicado na Revista ctxt – contexto y acción, Nº 285 – junho 2022. https://ctxt.es/es/20220601/Culturas/39981/diablo-dialogos-paramarxistas-lectura-presos-marx-constantino-bertolo.htm, 2m 21/06/2022. Conversa fictícia entre o filósofo alemão e seu negativo amigo, Menos2Este texto faz parte de uma série de diálogos fictícios criada por Constantino Bertolo entre Marx y seu amigo, Menos, seu oposto. Todos publicados na Revista ctxt – contexto y acción , sobre o direito a leitura.

Mural de Banksy que apareceu nos muros da prisão de Reading, 1º de março de 2021.

Olá Marx, vejo você muito pensativo.

—  Motivos não me faltam. Não consigo compreender bem a euforia com que a União Europeia se lançou nos braços dos EUA. Não deixa de me surpreender como a brutal batalha mediática levou a opinião pública europeia para posições que não deixam de celebrar jogar pedras no seu próprio telhado econômico.

—  Coisas de imperialismo assimétrico,  comentava você na outra semana.

— Não entendo nada, não entendo. A Europa que em 1918 bloqueou a revolução bolchevique direcionando-a para as distorções do socialismo em um só país, agora parece determinada a trancá-la em uma espécie de capitalismo em um só país que nada de bom pode trazer.

— Essa bobagem do internacionalismo começar por si mesmo. Você está certo, como se ninguém estivesse interessado em ler o que o passado escreveu sobre bloqueios e cordões sanitários.

— Você está certíssimo, Menos, como você está certo. Aprender a ler o que a realidade ensina e as aparências escondem é a eterna leitura pendente.

— Vejo que você está se tornando lacaniano com isso de que todas as palavras escondem.

— Não, não, há coisas em Lacan ou em Freud ou em Foucault que me interessam, mas não acho que o real da realidade se encontre nas palavras. Não sou a favor de humanismos mais ou menos radicais.

— Esta suspeita sobre o humanismo não vai fazer você angariar muita simpatia.

— Bem, me refiro a esse  humanismo redentor que propaga a ideia de que os bons sentimentos são a base para o sucesso dos direitos universais. Como se a educação e a leitura fossem a panaceia para todos os males que o capitalismo acarreta.

— Mas veja Marx, veja. Outro dia participei de um seminário internacional sobre leitura e achei interessante, ainda que proclamar o direito a leitura possa lhe parecer um daqueles bons sentimentos de que você tanto desconfia. Você não vai negar o caráter emancipatório da leitura.

— Sim, assim em abstrato pode ser um bom instrumento de combate. Eu não teria passado anos escrevendo um livro se não acreditasse nele. Mas a leitura não  é nenhuma água milagrosa se não for colocada em seu contexto específico, ou seja, em quem escreve, desde que lugar e para quem escreve. O humanismo vê na leitura uma espécie de consolo e nela deposita esperanças de redenção.

— O que não é pouco, Marx, não é pouco, pense na imensa população de mulheres e homens que vivem oprimidos pelo analfabetismo. A leitura abre possibilidades.

— Sem dúvida, mas essa tão celebrada compreensão da leitura como consolo e esperança ainda é uma religião da qual, aliás, os sacerdotes e sacerdotisas fazem bom uso dela, enquanto proclamam suas virtudes e extraem seus dividendos: cátedras, publicações, bolsas, bolsas de estudo e uma boa consciência, esse plus que tanto agradece o tal anticapitalismo semântico.

— Mas, Marx, o que há de errado em um pouco de consolo e esperança neste enquanto isso, que hoje parece interminável?

— Você mesmo está dando a resposta; criar esse enquanto isso como o único horizonte possível.

— Agora quem não entende nada sou eu: ler parece perigoso para você?

— Por favor, Menos, não me trate como se eu fosse apenas um desmancha-prazeres do humanismo redentor. A única coisa que estou negando é essa visão tão agradecida da leitura como uma pedra filosofal para a emancipação dos despossuídos.

— Deixa eu te contar o que ouvi de um bibliotecário sobre sua experiência como coordenador de um clube de leitura que ele criou em uma das prisões mais duras da Colômbia.

—  Conta, conta.

— Vou resumir. A princípio ninguém, nenhum preso, principalmente jovens negros com penas pesadas, parecia interessado, mas aos poucos acabou se formando um pequeno grupo de meia dúzia, que se reunia primeiro uma vez por mês e depois a cada duas semanas. A experiência durou um ano. E agora está se espalhando para outras prisões.

— E?

— Bem, a experiência, na opinião de seu promotor, foi extraordinariamente positiva para a maioria dos presos participantes. Todos ficaram gratos que os livros que leram, principalmente romances, os ajudavam a entrar em outro mundo, “uma viagem ao outro lado dos muros”, como definiu a experiência um deles.  Todos afirmaram se sentirem melhor, com mais estímulo para suportar sua situação, de alguma forma aliviados, menos “prisioneiros”. Acho que você vai concordar que, seja lá pelo que for, a leitura serviu para, pelo menos, se reconciliar consigo mesmo. Algo bom, eu acho.

—Quero acreditar, Menos, mas me faltam dados para poder analisar a atividade e, consequentemente, seus resultados. Teríamos que saber, por exemplo, se o fato de participar dessas reuniões deu aos presos algum tipo de vantagem material em sua condição. Se, por exemplo, sua presença levou a alguma mudança em seu relacionamento com seus carcereiros ou como seus companheiros de cela reagiram.

— Na verdade, nada foi dito sobre esses dados materiais. Mas acho que a experiência pode servir para aplaudir e apoiar o mérito dessas iniciativas de introduzir a leitura nas prisões como uma atividade desejável, como um direito. Estamos falando de uma prisão na Colômbia, e acho que todos podemos imaginar o que é aquilo.

— Sem dúvida, a realidade pode ultrapassar nossa imaginação, por mais que tenhamos lido sobre a situação infernal daquelas prisões. Mas, de qualquer forma, acho que essa história pode nos ajudar, mais uma vez, a levantar a questão do prisioneiro ou a questão do que fazer neste enquanto isso, onde vivemos trancados pelo capitalismo.

—  ‘E sobre esse enquanto isso de que falavam Sacristán 3 Manuel Sacristán [1925 – 1985], filosofo espanhol, um dos responsáveis pela introdução do pensamento marxista no seu pais. e companhia.

—  Sim, desse. Supondo que fossemos esse bibliotecário e criássemos um clube de leitura em uma prisão, sem dúvida menos dura e sangrenta que a colombiana, mas afinal uma prisão. Imaginemos que nossos prisioneiros tenham conseguido tirar um tempo de seu tempo de lazer e recreação, supondo que o tenham, para participar de reuniões.

—  A primeira coisa seria pensar em quais romances dar para eles lerem.

— Não, Menos, não, essa é a primeira coisa que um bibliotecário redentor pensaria; mas nos somos revolucionários, ou assim dizemos.

—  E então?

— Então a primeira coisa é pensar se queremos que eles sejam felizes dentro da prisão, ou se queremos dar a eles a força e as ferramentas para destruir aquela prisão. Com base nessa resposta, procuraríamos o livro necessário.

—  Para ser feliz?

Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne.

— Para derrubar os muros da prisão?

Martin Eden, de Jack London. Se o lerem bem, aprenderão que nenhuma leitura nos salva. Este não é o lugar da esperança.


Tradução Dolores Prades


Notas

Compartilhe

Post Author

Autor

Artigos Relacionados

Semeando palavras, colhendo livros

,

Os livros e as crianças – ou para que serve a educação

Política de roda

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *