Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção. (…) Se fosse possível abstrair o sentido e pensar nas palavras como tijolos de uma construção, eu diria que esses tijolos representam um modo de organizar a matéria, e que enquanto organização eles exercem papel ordenador sobre a nossa mente.
Antonio Candido
Pensando nos livros para crianças – mais especificamente, nos livros ilustrados – eu pediria licença ao mestre Antonio Candido para considerar como os “tijolos” de que é feita uma obra literária também as imagens, elementos igualmente importantes para a construção de sentido. Fazendo isso, eu diria que Clara e o homem na janela, de María Teresa Andruetto e Martina Trach, é uma construção feita de tijolos sólidos, mas dispostos de forma caprichosa e delicada, como no desenho de uma renda.
Texto e imagem interagem neste livro para nos contar uma história ao mesmo tempo muito simples e complexa. Simples, porque se trata da história de uma amizade. Complexa porque, como todas as boas histórias, não se trata apenas disso. Texto, ilustrações e projeto gráfico criam juntos uma construção intrincada, nada linear, que traz à tona questões e intertextualidades muito expressivas.
Por outro lado, muitas lacunas foram deixadas para o leitor – entrelinhas, na linguagem de Clarice Lispector –, que podem ser preenchidas, de forma consciente ou não, à medida que se lê, ou se tornar mais explícitas depois, a partir das conversas que a leitura suscitar.

A capa e as páginas de abertura já anunciam o espantoso trabalho conjunto realizado pelas duas autoras. Em Clara e o homem na janela, María Teresa e Martina utilizaram os recursos expressivos do livro ilustrado para criar e enriquecer sentidos como poucas vezes se tem a oportunidade de ver.
Vamos começar pelo formato. Não foi por acaso que as autoras escolheram o sentido horizontal, o formato conhecido como “paisagem”. Vamos caminhar muito, indo e voltando dentro dessa paisagem durante a leitura.
Uma visão geral desse caminho é mostrada na ilustração da capa, na qual um fundo amarelo nos dá a sensação de que a cena se encontra banhada pela luz do sol. Do lado esquerdo, uma menina caminha na direção de uma casa que se vê ao fundo. Parece longa a caminhada até lá. Mas essa impressão é causada pela linha (imaginária) inclinada que a ilustradora construiu da menina até a casa, recurso pictórico que nos dá a ilusão de profundidade e distância. É uma casa que contrasta com as demais do povoado: é alta e grande, e ladeada por uma árvore que parece acenar para a menina.
As sombras projetadas pelas imagens da casa, da árvore e da menina, nos dão a impressão de que o sol vem do lugar onde estamos, nós, leitores. É como nossa leitura fosse responsável por jogar luz na cena.
Esses são apenas alguns exemplos dos recursos utilizados no livro, que apresenta a cada nova página dupla uma surpresa.
Continuando a leitura, vemos, sobre o fundo amarelo, se olharmos com mais cuidado, imagens quase apagadas que lembram coisas antigas, escurecidas pelo tempo, fragmentos, lembranças perdidas. Essas imagens ainda não fazem sentido para nós, mas já antecipam que não será apenas de sol que este livro vai tratar.
Andruetto é uma excelente escritora. Tanto que pode dar-se ao luxo de utilizar uma quantidade mínima de palavras na história, deixando espaço para o trabalho de Trach, em cujas imagens vamos ter de nos ancorar para construir sentido.
Um recurso utilizado com maestria no livro é, como vimos, o da “página dupla” – o espelhamento da página da esquerda com a da direita – que amplia as cenas e provoca maior imersão do leitor.
São as duplas iniciais que nos arrastam para o espaço onde se dá a narrativa, um povoado rural, onde não há verde, apenas muitas casinhas humildes, bem separadas umas das outras. O distanciamento entre elas e a aridez da paisagem causam uma sensação de solidão e isolamento.
Outro recurso – o uso do efeito de “zoom” – faz com que as cenas vão se aproximando do leitor, a ponto de revelar a presença de duas pessoas num dos quintais: uma mulher lavando roupa num tanque e uma criança correndo dentro de um cercado precário.
A silhueta curvada da mulher nos sugere ser ela uma pessoa de mais idade. Ela é representada como uma mancha, branca como a roupa estendida no varal. Define-se melhor a imagem da criança, uma menina, que escreve no chão com um graveto.
O uso de novos ângulos, o jogo de luz e de sombra nos dão a sensação da passagem do tempo, enquanto a mulher e a criança continuam suas ocupações, sem se falar.
Mais uma nova aproximação da “câmera”, e já estamos imersos no clima da narrativa. Branca, quase transparente, a mulher entrega uma cesta à menina e lhe diz:
– Leve esta roupa ao senhor da casa grande.
De fato, se voltarmos à página dupla que introduz a narrativa, veremos ao longe, bem longe, a casa grande, a mesma que aparece na capa. Parece isolada e distante.
Com seu vestidinho verde e sapatos vermelhos, a menina vai. Segura o cesto com as duas mãos, deve estar pesado. O vento agita seus cabelos.
As repetições da imagem da menina vagando pelo caminho, olhando os pássaros e o ambiente ao redor, nos informam que se trata de uma criança inquieta e curiosa. Sobre sua cabeça, pairam algumas frases. Parecem a voz da mulher, soando em seus ouvidos, repetindo conselhos – que a menina não segue:
Não se distraia pelo caminho
Tome cuidado
Não deixe a roupa se sujar
Texto e imagem sugerem que estamos diante de uma nova versão de “Chapeuzinho Vermelho”, uma “Sapatinhos Vermelhos”, o que, entretanto, dá à referência intertextual uma outra conotação. Em comum o fato de ambas terem entregas para fazer e ambas desobedecerem às advertências de uma pessoa mais velha. Será que neste caso há também um lobo à espera?
O senhor deixa o dinheiro na porta, embaixo do tapete.
“Ouvimos” mais uma vez a voz da mulher, enquanto a menina finalmente se aproxima da casa grande e de sua árvore, que agora, levada pelo vento parece apontar para dentro.
As imagens nos carregam para o ambiente interno de uma casa em penumbra onde há um homem, na verdade, uma sombra de homem, sentado sozinho. Ao seu lado, uma cadeira vazia acentua sua solidão.
Valendo-se de outro recurso, a mesma cena vista de dois ângulos diferentes, a narrativa nos dá a oportunidade, em vários momentos, de “bisbilhotar” o que está acontecendo para além daquilo que percebem os personagens. São momentos em que somos colocados num ponto de vista de fora da cena, vendo “pelas costas” deles aquilo que não percebem um do outro, o que, associado à voz da senhora sobre a cabeça da menina, cria uma forte tensão:
Não sai de casa, vive trancado…
não pode ver a luz.
Seria esse homem um vampiro?
Muito interessante o recurso de posicionar as frases ditas pela senhora soltas sobre a página ou sobre a cabeça da menina. Uma forma sutil de sugerir que a voz ecoa na mente da criança.
E assim seguimos, arrastados pelas idas e vindas de nossa Sapatinhos Vermelhos, pelo caminho que ela refaz várias vezes, de sua casa para a casa do homem, que, de dentro de uma sala repleta de livros, a observa, até que os dois conversam pela primeira vez:
– Como você se chama?
– Clara. Por que você fica aí trancado?
É assim que ficamos sabendo o nome da menina e a razão do título do livro – algo que já intuíamos. Ela é Clara, luz em oposição ao escuro triste em que vive aquele homem, cuja atenção, por algum motivo, atraiu.
– Outro dia eu te conto. Você sabe ler?
– A minha avó me ensinou.
Dessa forma ficamos sabendo também que a senhora que lhe manda entregar o cesto de roupas é sua avó. E inevitavelmente voltamos a Chapeuzinho Vermelho, mas numa história meio invertida, em que é a avó quem manda a menina fazer uma entrega… Para o lobo?
Clara se sente atraída pelos livros que o homem passa a lhe emprestar, e o vai e vem da personagem de sua casa para a casa do homem solitário, da casa do homem para a sua, nos causa uma espécie de vertigem e acentua a tensão presente na narrativa: haveria algum perigo envolvido no contato com esse homem estranho, esse lobo solitário? Ou o que se insinua como algo excitante e “perigoso” é a leitura, que nos seduz e nos apresenta ideias que levam para longe de casa?
O clímax da história ocorre quando se repete, por fim, a imagem da capa. A casa do homem solitário aparece na página da direita, ao fundo, esperando. Muitas idas e vindas já ocorreram, mas esta apresenta um destaque especial, causando um certo suspense: O que vai acontecer? Será que o lobo desta vez vai jogar a rede, fechando a armadilha que criou com os livros para atrair a menina?
Em seguida, já vemos Clara entrando confiante na casa sombria do homem. Anda com decisão, observa tudo e o segue para dentro da biblioteca. Ele tem um livro na mão.
– De qual livro você gostou mais?
– O da princesa.
– Dou ele de presente para você.
Numa cena que sugere o interior da casa de Clara – ou a vida interior que a leitura proporciona? – há uma pilha de livros, de formatos e números de páginas variados. Embaixo deles, em letras maiúsculas, parecemos ler o pensamento da personagem:
MINHA AVÓ ME ENSINOU.
É assim que, neste intrigante livro, na medida em seguimos Clara, indo e voltando pelos áridos caminhos, somos obrigados a ler em ziguezague, da esquerda para a direita e depois ao contrário, contra o sentido “natural” em que habitualmente realizamos a leitura.
Uma inversão que chega ao ápice no final do livro quando Clara se arma de toda a sua coragem para tomar uma decisão que vai mudar o destino da narrativa.
CORAGEM! CORAGEM!
* * *
Não posso contar mais, para não estragar a leitura desse livro surpreendente, que está sendo publicado em português pela Editora Amelì.
Só posso dizer que o trabalho de Andruetto e Trach confirmam a afirmação do educador norte-americano Lawrence R. Sipe, especialista em leitura, de que a melhor maneira de ler um livro ilustrado não é de forma linear. Trata-se de um tipo de leitura que envolve “muitas releituras, volta às páginas anteriores, revisões, ler mais devagar e reinterpretando” o que já foi lido. Também segundo ele, existe na leitura do livro ilustrado uma forte tensão: enquanto as palavras nos impelem para a frente para descobrirmos o que vai acontecer, as imagens nos convidam a saboreá-las e demorar-se mais em cada página, sob pena de não compreendermos suas sutilezas.
Em Clara e o homem na janela, a recorrência das idas e vindas da personagem cria um jogo interessante, que nos arrasta o tempo todo para fora e para dentro do livro, inúmeras vezes. A tensão criada por esse jogo é usada como um poderoso recurso de expressão pois, além de subverter convenções, as idas e vindas nos fazem vivenciar outra característica da leitura: ela não é um espaço de onde devemos fugir o mais rápido que pudermos, mas um lugar onde o tempo não conta, um estado de ser no qual devemos permanecer o máximo possível.
Da mesma forma, os sapatinhos vermelhos e as alusões a Chapeuzinho Vermelho (e a suspeita inevitável da existência de um “lobo”) nos remetem ao ato de ler como algo nada inócuo, pois tem o poder, como demonstra o livro, de nos arrancar de situações de estagnação e mostrar outros caminhos. Nestes tempos enjoados de censura oriunda de mentes limitadas e medíocres, as autoras não hesitam nem evitam dar à amizade da menina e do homem triste um certo tom de algo proibido. Numa inversão ao conto tradicional, criaram uma Chapeuzinho Vermelho de pés no chão, uma Sapatinhos Vermelhos que nada tem de medrosa e que usa sua ingenuidade de criança de forma astuta, para arrancar da morte em vida um homem infeliz, num livro que se constitui num verdadeiro hino à leitura, à amizade e à vida.

Referências bibliográficas
CANDIDO, A. “O direito à literatura”. In: __________. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2017, p. 179.
SIPE, L. R. Storytime – Young Children’s Literary Understanding in the Classroom. Nova York e Londres: Teachers College Press, 2008, p. 26.
Imagem: Ilustrações do livro Clara e o homem na janela, de María Teresa Andruetto e Martina Trach, editora Ameli.