Por uma leitura plena e… complexa

Quais as implicações para a formação de professores de uma compreensão mais ampla de que leitura e leitor se constroem em um contexto histórico e social? Que inquietações é preciso garantir na formação para que o mediador continue pensando sobre leitura nesse contexto?1Texto produzido no contexto do Grupo de Estudos de Língua Portuguesa, da Comunidade Educativa CEDAC. Este grupo – composto por formadoras e coordenadoras pedagógicas de Língua Portuguesa – existe há alguns anos como uma atividade paralela àquelas relacionadas diretamente à formação que a equipe realiza nos projetos desenvolvidos. Tem a intenção de ser um espaço para reflexão, estudo e discussão de temas que, para além das questões relacionadas às práticas,proporcione ampliação de olhares e acesso a novos conhecimentos disponíveis na área. Durante este período, iniciamos a produção de pequenos textos que fossem organizando tais reflexões e que pudessem ser utilizados para socializar com as outras equipes do CE CEDAC.
Em 2015, inspiradas pelo texto “Evolução das perguntas, evolução das aprendizagens”, de Myriam Nemirovsky, nos propusemos a formular uma pergunta chave sobre a formação leitora. Tendo como principal referência o livro O banquete dos notáveis, Editora Livros da Matriz, SP: 2014, do crítico literário espanhol Constantino Bértolo, buscamos refletir sobre tais questionamentos, ao longo do ano, considerando nossas ações, os estudos no grupo e pessoais.

Constantino Bértolo contribui para esta reflexão ao propor uma “geologia da leitura”, onde conceitualiza e explica quatro níveis de leitura: o textual, o autobiográfico, o metaliterário e o ideológico, que definem a “trama leitora” que constitui cada leitor. Para Bértolo, “ler narrativas é um processo que incorpora a leitura simultânea desses quatro planos, e o seu resultado final depende do jogo de relações que o sujeito leitor mantenha com eles” (p.58), o que indica que este leitor se individualiza na forma como se relaciona com cada um deles, dando lugar a uma leitura marcada pela ênfase que cada um dos quatro níveis tem na sua trama leitora.

Bértolo define como modelo ideal de leitura aquele que, para além da satisfação individual, contribui para uma cidadania crítica e democrática na qual “a narração textual – com sua correspondente densidade, peso e elasticidade – encontra-se com uma leitura textual competente, com uma leitura autobiográfica inquietante e sólida (que não significa rígida), com uma leitura metaliterária densa e afinada e com uma leitura política ativa e forte (o que não significa monolítica). Diante de uma trama leitora, como essa, o processo de leitura torna-se um mecanismo extremamente dinâmico, intenso e fértil” (p.62).

Dentro dessa perspectiva, o professor em formação tem que ter a oportunidade de enfrentar, de ser provocado ou alimentado pela complexidade da leitura proposta por Bértolo. Isto para que possa ter uma ação leitora que acione os diferentes níveis e garanta uma leitura dinâmica, intensa e fértil, pois “é a qualidade da trama leitora de cada um que determina a qualidade de sua leitura”. (p.71). Esse é o desafio.

Continuando sua análise, Bértolo, ao tratar do leitor que realiza o ato da leitura, estabelece seis tipos de leitura: a leitura adolescente, a leitura inocente, a leitura sectária, a leitura letraferida, a leitura civil e por último a leitura do crítico. Considero interessante, para esta discussão, destacar os cinco primeiros perfis, que definem o jogo de relações que o sujeito leitor mantém na sua “geologia de leitura”.

Segue uma breve apresentação dos perfis que interessam:

  • Leitura adolescente: “leitura durante a qual o/a leitor/leitora tende a projetar sua própria imagem sobre a narração, identificando-se com diferentes aspectos da ação narrativa ou, mais frequentemente, com um ou alguns protagonistas, nos quais se sente reconhecido ou descoberto”. (p71)
  • Leitura inocente: “leituras que assinalam o texto como simples encadeamento de ações e que desativam os aspectos literários ou de representação do mundo nele existente”. (p. 73)
  • Leitura sectária: “o ideológico monopoliza o multidiálogo que caracteriza a operação de ler” em detrimento dos outros aspectos – textual, o autobiográfico, o metaliterário – que seriam neutralizados ou refreados de maneira radical. (p. 77/78)
  • Leitura “letraferida”: “hipertrofia do elemento metaliterário”; (…) “provocado pelo sentimento da literatura como um modo privilegiado de acesso a uma verdade transcendental ou especial”; (…) “se pode definir negativamente pela rejeição frontal à ideia de que a presença do ideológico ou político é algo muito secundário ou espúrio do ponto de vista literário”; (…) “outorga o monopólio da leitura mais do que a um diálogo entre texto e o “eu” literário do leitor a uma verdadeira fusão ou comunhão entre ambos”. (p. 79/80)
  • Leitura “civil”: “quando o texto entra em contato com um cidadão leitor, se verá interpelado por uma leitura autobiográfica sólida, por um conhecimento literário suficientemente amplo e afiado como para colocar de modo razoável o jogo de ecos e associações que a narração textual oferece, e por uma compreensão da realidade forte e ativa”. (p.81)

Cada perfil tem algum dos níveis de leitura – o textual, o autobiográfico, o metaliterário e o ideológico – intensificado em detrimento dos outros, sendo que podemos identificar cada um em nosso próprio percurso leitor e na convivência com outros leitores.

O conceito que nos interessa é a “leitura civil”, definida por Bértolo como aquela que tem uma trama leitora que lhe permite ser “o leitor como alguém que vive implicado ativamente em seu contexto social, cultural e político. O leitor como cidadão da res publica, entendida como espaço no qual constrói sua identidade e sua trama leitora” (p.81)

Tais conceitos corroboram em dois aspectos na formação de mediadores de leitura. O primeiro aspecto a ser considerado diz respeito ao desenvolvimento do processo de formação, que nem sempre avança da maneira como ambicionado pelas propostas pré-definidas em relação ao aprimoramento da prática leitora na escola. E se justifica não necessariamente pela ausência de envolvimento dos profissionais, mas pela complexidade da questão. Isto porque envolve a posição que os educadores (e todas as pessoas) ocupam na sociedade, e implica sua história de vida, seu percurso leitor, seus valores, o contexto em que vivem, o entendimento de mundo e as relações que estabelecem.

É possível compreender que o que está em jogo no processo de construção do sentido da leitura é algo muito maior, que envolve muitos elementos agindo simultaneamente. Assim, o professor, ao compartilhar leituras no percurso da formação, põe em jogo suas experiências de vida, seus princípios, valores, conhecimentos, seu pensamento político, aproximando ou distanciando-se de uma leitura nos diferentes níveis possíveis.

Sendo assim, avançar na formação demanda lidar com tal complexidade, reconhecendo limitações e possibilidades de avanços partindo destas subjetividades rumo à construção de experiências leitoras que ambicionem a ampliação e a ressignificação da leitura.

O outro aspecto a se considerar diz respeito ao encontro do leitor com o livro/texto narrativo, pois estes não estão sozinhos, não se encontram isolados na relação com o leitor. Não existe o “pacto leitor” que define a leitura apenas como uma relação entre dois elementos, o texto e o leitor. Há uma complexidade de relações que envolvem o leitor que se depara com o texto; relações estas que envolvem o sujeito que está no mundo, que se posiciona nesse mundo, que tem uma história pessoal, um percurso leitor e esse encontro entre leitor e texto se realiza na comunhão desses vários elementos postos.

Tal tomada de consciência – presença da trama leitora em contraposição ao pacto leitor – possibilita maior compreensão do que há “por trás” e “no meio” do processo de leitura, o que permite desenhar estratégias formativas que ambicionem abordar a formação para além das letras e palavras que ali se encontram, e construir espaços para tratar de questões que envolvem o entorno da leitura e do leitor.

A compreensão do que está em jogo no processo de leitura, da complexidade e da força dos aspectos constitutivos do indivíduo permitem olhar para o processo com mais vagar, de forma mais criteriosa e menos ingênua para analisá-lo, compreendê-lo, fazer escolhas e tomar decisões.

Assim, no percurso formativo, podemos afirmar que se convive, durante muito tempo, com leituras pessoais do tipo autoajuda, ou com a literatura infantil “fofa”2Utilizamos estes dois exemplos para nos referirmos a uma leitura bastante comum no processo inicial de formação, representando uma leitura mais superficial, sem aprofundamentos e implicações que demandem uma leitura em níveis diferenciados como aponta Bértolo., pois é na continuidade e na sustentabilidade, na ampliação da experiência leitora que vão se construindo outros elementos para ampliação da trama leitora, constitutiva desse leitor.

Apostar na formação do professor, na leitura como atividade complexa é apostar em muitas situações e estratégias que lhe permitam adentrar essa complexidade. A escritora argentina Maria Tereza Andruetto, em entrevista ao Clarin Educação3“A leitura dá resultados ao longo do tempo”, publicado em 16/07/2014., fala sobre o lugar da literatura na escola e a importância de formar leitores e escritores na sala de aula, pois “esta leitura se vai enriquecendo: se alguém leu 50 livros, o livro número 51 é lido diferente se tivesse lido só dois”. Assim, à medida que as crianças têm acesso a muitas leituras e podem compartilhar opiniões e ouvir a de seus pares, a construção da competência leitora se amplia. Se concordarmos com tais ideias quando nos referimos às crianças, porque não incluir também os professores que não tiveram boas oportunidades em sua formação e que têm na leitura a matéria-prima do seu trabalho?

Partindo desta proposta, consideramos que uma possibilidade de intervenção na equação – “professores mediadores de leitura (nem sempre leitores competentes) + propostas de leitura literária = formação de crianças leitoras” – está na possibilidade de aprimoramento do percurso leitor, na insistência e persistência da formação leitora do professor no contexto de trabalho.

Na Comunidade Educativa CEDAC, algumas estratégias formativas têm sido desenvolvidas com a intenção de intervir neste percurso leitor do professor, são elas:

  • leitura compartilhada de uma cadeia de textos literários;
  • análise de livros álbum;
  • oficina de apreciação de acervos de livros de literatura infantil.

A descrição dessas estratégias, que segue abaixo, permite uma aproximação com seus objetivos e modo de desenvolvimento. Mas é relevante ressaltar que, ao serem inseridas em desenhos de formação distintos, cada estratégia ganha tons e nuances que consideram as especificidades do grupo e do contexto em que se realizam.

Leitura compartilhada de uma cadeia de textos literários

Proposta: leitura em voz alta de diferentes textos literários escolhidos criteriosa e intencionalmente para impactar o leitor de formas diferentes com o intuito de promover experiências estéticas, que lhe permitam adentrar os textos para além da identificação com a história ou com uma personagem ou com a ação. A escolha criteriosa dos textos permite que os leitores-ouvintes possam, também, interagir com análises que considerem as camadas metaliterária e ideológica e possam na comparação entre os diferentes textos aprofundar e alargar as análises iniciais de cada um e assim ampliarem gradativamente o ato leitor na sua complexidade e plenitude.

Análise de livros álbum4Livros álbum: “o livro ilustrado é um «objeto cultural em forma de livro, fruto da experimentação entre linguagens visuais e textuais – que conservam uma forte e dependente correlação e inter-relação entre si –, dirigido não necessariamente ao público infantil, e um artefato que pode ser contemplado como prova da evolução cultural, social, tecnológica e artística do nosso tempo.» (Duran, 2007)

Proposta: análise coletiva de um livro álbum para desvelar as intenções do(s) autor/autores naquela obra pondo luz na relação texto/imagem/portador, nos recursos gráficos utilizados, na diagramação do texto e uso das imagens, ampliando os elementos de análise que um leitor dispõe para apreciar a obra, deslocando-se do óbvio da primeira camada que o texto propõe para uma análise mais interna que lhe permita mobilizar diferentes níveis de leitura.

Apreciação de acervos de livros de literatura infantil

Proposta: exploração, em grupo, de um acervo de livros. Escolha e análise, por cada grupo, de um livro em especial de modo a considerar as intenções do(s) autor/autores nas decisões e escolhas para contar aquela história e assim perceber as diferentes camadas que o livro propõe ao leitor. Espaço privilegiado para que coloquem em jogo os observáveis criados nas estratégias anteriores. Apresentação do livro e socialização da discussão em plenária permitem discussões e reflexões ampliadas.

As estratégias acima descritas têm em comum a intenção de proporcionar ao professor, em formação, condições de abordagem da complexidade da leitura. Tem se percebido que quanto maior intencionalidade e clareza formativa se tem ao realizar tais estratégias, mais garantias de oferecer ao professor a ampliação de suas competências para enfrentar: “a textualidade, o intercâmbio do narrado com sua própria narração autobiográfica, as associações que o universo literário lhes desperta para por em jogo sua compreensão de mundo”.

Para finalizar, gostaria de retomar o questionamento inicial que essa reflexão se propôs a responder, a partir das contribuições do crítico literário Constantino Bértolo, para uma breve conclusão.

Ao considerar que o leitor ao ler aciona, de alguma forma, os quatro níveis de leitura – textual, autobiográfico, metaliterário, ideológico – e que o perfil de leitura, da maioria dos professores, se caracteriza por um perfil adolescente ou inocente5Leitura adolescente: “leitura durante a qual o leitor/leitora tende a projetar sua própria imagem sobre a narração, identificando-se com diferentes aspectos da ação narrativa ou, mais frequentemente, com um ou alguns protagonistas, nos quais se sente reconhecido ou descoberto”. (p71); *Leitura inocente: “leituras que assinalam o texto como simples encadeamento de ações e que desativam os aspectos literários ou de representação do mundo nele existente”. (p. 73); e não podendo mudar a realidade, mas apenas analisá-la criticamente, consideramos possível – na formação – ampliar a experiência literária do professor através de estratégias como a cadeia de texto, a análise de livros-álbum e a exploração de acervos de literatura infantil.

Essas estratégias criam as condições de um encontro entre a narração textual, com uma leitura textual competente, com uma leitura autobiográfica inquietante e sólida, com uma leitura metaliterária densa e afinada e com uma leitura política ativa e forte, como assinalou Bértolo ao falar da complexidade da leitura. Ao proporcionar essas experiências literárias aos professores, estamos explicitando que o entendimento e as escolhas daquilo que lemos têm relação com significados e sentidos (semântica) construídos ao longo da nossa vida, e por isso são singulares. E assim, incidindo sobre a trama leitora, ao desvelar outros sentidos e significados que poderiam não ser antes observáveis, possamos oferecer as ferramentas adequadas à mediação de leitura feita pelo professor com seus alunos.

Notas

  • 1
    Texto produzido no contexto do Grupo de Estudos de Língua Portuguesa, da Comunidade Educativa CEDAC. Este grupo – composto por formadoras e coordenadoras pedagógicas de Língua Portuguesa – existe há alguns anos como uma atividade paralela àquelas relacionadas diretamente à formação que a equipe realiza nos projetos desenvolvidos. Tem a intenção de ser um espaço para reflexão, estudo e discussão de temas que, para além das questões relacionadas às práticas,proporcione ampliação de olhares e acesso a novos conhecimentos disponíveis na área. Durante este período, iniciamos a produção de pequenos textos que fossem organizando tais reflexões e que pudessem ser utilizados para socializar com as outras equipes do CE CEDAC.
    Em 2015, inspiradas pelo texto “Evolução das perguntas, evolução das aprendizagens”, de Myriam Nemirovsky, nos propusemos a formular uma pergunta chave sobre a formação leitora. Tendo como principal referência o livro O banquete dos notáveis, Editora Livros da Matriz, SP: 2014, do crítico literário espanhol Constantino Bértolo, buscamos refletir sobre tais questionamentos, ao longo do ano, considerando nossas ações, os estudos no grupo e pessoais.
  • 2
    Utilizamos estes dois exemplos para nos referirmos a uma leitura bastante comum no processo inicial de formação, representando uma leitura mais superficial, sem aprofundamentos e implicações que demandem uma leitura em níveis diferenciados como aponta Bértolo.
  • 3
    “A leitura dá resultados ao longo do tempo”, publicado em 16/07/2014.
  • 4
    Livros álbum: “o livro ilustrado é um «objeto cultural em forma de livro, fruto da experimentação entre linguagens visuais e textuais – que conservam uma forte e dependente correlação e inter-relação entre si –, dirigido não necessariamente ao público infantil, e um artefato que pode ser contemplado como prova da evolução cultural, social, tecnológica e artística do nosso tempo.» (Duran, 2007)
  • 5
    Leitura adolescente: “leitura durante a qual o leitor/leitora tende a projetar sua própria imagem sobre a narração, identificando-se com diferentes aspectos da ação narrativa ou, mais frequentemente, com um ou alguns protagonistas, nos quais se sente reconhecido ou descoberto”. (p71); *Leitura inocente: “leituras que assinalam o texto como simples encadeamento de ações e que desativam os aspectos literários ou de representação do mundo nele existente”. (p. 73)

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  • Lurdinha Martins

    Foi professora e coordenadora pedagógica da Educação Infantil e do Ensino Fundamental nas redes pública e particular. É formadora da área de língua portuguesa na Comunidade Educativa CEDAC desde 2001. Já atuou em projetos de formação na área de língua portuguesa em diversos municípios brasileiros. Atua no projeto “Pequenos Leitores”, em Mongaguá e Lagoinha (SP). Entre suas inquietudes profissionais para aprimorar constantemente sua atuação, está a reflexão sobre a formação de mediadores de leitura para a formação de crianças leitoras. E, neste contexto, a compreensão de quais aspectos estão envolvidos para a ampliação e garantia das oportunidades de acesso ao patrimônio cultural que é direito de todos: a cultura escrita.

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