Precisamos falar sobre capacitismo

O direito daqueles que têm deficiência ao acesso irrestrito aos mais diferentes espaços tem sido assumido como fundamental para a construção de sociedades justas e acolhedoras. Há diversas barreiras em relação principalmente à forma como as informações são transmitidas, recebidas em distintos lugares, e a locomoção e autonomia disponíveis nesses espaços.

O principal entrave à sua efetiva inclusão é o capacitismo: discriminação e preconceito baseados na crença de que a capacidade e as habilidades das pessoas sem deficiência seriam superiores, e, consequentemente, aqueles que seriam desprovidos dessas características teriam capacidade inferior a eles em todas as áreas.

Para autores como Izabel Campbell e Anahí Guedes de Almeida, o capacitismo está para as pessoas com deficiência como o racismo para os afrodescendentes, ou o machismo para as mulheres: é estruturante e estrutural. Ele vem da ideia de padrão corporal perfeito, o corpo com deficiência sendo, então, inapto. Dessa forma, tanto os preconceitos sobre incapacidade quanto a aparente hipervalorização das capacidades de uma pessoa tendo como base sua deficiência são capacitistas, já que ambas vêm do prejulgamento de que como aqueles com deficiência são naturalmente incapazes, quando conseguem realizar tarefas simples do dia a dia seriam “super-heróis” e “exemplos de superação”. Isso desloca a discussão para o aspecto biológico, retirando da sociedade a responsabilidade de tais impedimentos.

O capacitismo pode tanto subestimar como  superestimar habilidades; desde o período paleolítico, quando as populações eram nômades, há relatos de abandono de pessoas com deficiência à própria sorte por não conseguirem acompanhar o restante das populações por seus próprios meios. No entanto, os ahonas – tribo que vive ainda hoje no Quênia, às margens do Rio Rudolf – consideravam que pessoas com cegueira estavam mais próximas do mundo espiritual, podendo indicar nas pescarias onde estavam os peixes; eram tratadas com certa veneração – ideia igualmente capacitista. Na Grécia antiga, pessoas com deficiência eram mortas, conforme indicado por um conselho de anciãos de Esparta, caso o bebê fosse considerado feio ou disforme, ou abandonadas (conforme sugerido em obras tanto de Platão como de Aristóteles) por não atingirem o padrão corporal estabelecido na época. Na Alemanha nazista, pessoas com deficiência estiveram entre as primeiras a ser executadas em câmaras de gás, por meio de injeções letais, ou eram deixadas à própria sorte para morrer de fome; milhares foram mortas por serem consideradas inválidas à sociedade.  Nos Estados Unidos, até 1973 era permitido legalmente a exclusão de pessoas com deficiência.

No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira de 1961 dava a possibilidade de que pessoas com deficiência, com doenças crônicas ou com transtornos mentais fossem desobrigadas de frequentar a escola, retirando do Estado Brasileiro a responsabilidade por sua escolarização, o que só mudou com a Constituição Federal de 1988.

Como afirmou Lau Patrón (escritora, ativista e profissional da inclusão, mãe de uma criança com deficiência e doença auto-imune) em uma das conferências do TED x Brasil realizada em São Paulo, em dezembro de 2019: 

“a sociedade que impõe uma série de barreiras às pessoas com deficiência, ou não faz questão nenhuma de retirá-las, é a mesma que vai dar uma medalha ao sujeito que com muito esforço e sofrimento conseguir passar por essas barreiras olhando para essa pessoa como um objeto de inspiração, romantizando a exclusão, e deixando no lugar de conformidade a ideia de que o mundo não é para a pessoa com deficiência”.

As escolas também podem reproduzir ideias capacitistas fortemente arraigadas na sociedade, quando tentam sugerir que não estão preparadas para receber alunos com deficiência, afirmando que eles deveriam estar em salas ou escolas especiais, partindo do princípio de que todos os demais estudantes aprendem da mesma maneira e não requerem preparo por parte da escola.

É capacitista o uso de laudos, diagnósticos médicos e avaliações quando o objetivo é afirmar a incapacidade do estudante para aprender, em vez de usar essas ferramentas para identificar recursos que possam auxiliar na aprendizagem dos alunos. É capacitista também o ato de tirar conclusões sobre a capacidade de pessoas com deficiência sem sua participação, quando lhes é negado o direito de expressar suas necessidades e vontades, partindo-se da premissa de que são incapazes de fazer isso. Ou quando ajudas e recursos são oferecidos sem que eles precisem deles e sem que sejam consultados. Ou quando alunos com deficiência recebem sempre nota cinco, independentemente do seu desempenho. Ou quando estão em ambientes e atividades totalmente distintas das que seus colegas de sala sem deficiência estão realizando. Há capacitismo quando existe o prejulgamento de que pessoas com deficiência são “anjos azuis”, se são pessoas com transtorno do espectro autista; “muito amorosas”, se têm Síndrome de Down; “agressivas”, se são pessoas com surdez; “tem demais sentidos aguçados”, se são pessoas com cegueira. Há capacitismo quando pessoas com deficiência são tratadas de forma infantilizada, no diminutivo (aluno “ceguinho”, “surdinho”, “downzinho”), ou ainda superprotegidas – como se isso fosse um cuidado necessário em vez da atitude discriminatória e preconceituosa. Há capacitismo ao se negar a alunos com deficiência o acesso à educação sexual, partindo-se da premissa de que elas não precisam dessas informações – pessoas com deficiência se relacionam sexualmente como quaisquer outras e, pela falta de informações, seja por inacessibilidade ou por serem consideradas seres assexuados, estão mais vulneráveis a doenças e infecções sexualmente transmissíveis, e ainda ao estupro.

Como qualquer ser humano, pessoas com deficiência têm direito a se desenvolver ao máximo, com toda a autonomia possível, mesmo quando possuem imensas limitações na realização de tarefas simples. Devem ter o direito de escolher o que e como querem. Evitar o capacitismo e promover igualdade nas relações nos mais distintos espaços entre pessoas com e sem deficiência é fundamental para a construção de sociedades mais justas, acolhedoras e plurais.


Imagem: Hal Wildson.


Referências bibliográficas

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 5 out. 1988. Seção 1, p.1.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial (SEESP). Convenção da Organização dos Estados Americanos. Brasília, 2001. Disponível em:<https://tinyurl.com/x4ehefyt> Acesso em: 02 jul. 2011.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial (SEESP). Declaração de Salamanca. Brasília, 1994. Disponível em:<https://tinyurl.com/28zwfxpd> Acesso em: 02 jul. 2011.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial (SEESP). Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Brasília, 1996. Disponível em:<https://tinyurl.com/3vmybhe8> Acesso em: 05 jul. 2011.

BRASIL. Decreto Legislativo n° 186, de 9 de julho de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Disponível em: <https://tinyurl.com/caxxwepm> (Acesso: 02 jul. 2011).

CAMPBELL, F. K. Inciting Legal Fictions: Disability’s Date with Ontology and the Ableist Body of the Law. Griffith Law Review, n. 10, 2001: 42-62

MANTOAN, M. T. E. Inclusão escolar: O que é, por que, como fazer. São Paulo: Summus, 2015.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIENCIA E A CULTURA – UNESCO. Declaração mundial sobre educação para todos: Satisfação das necessidades básicas de aprendizagem. Jomtien, 1990. Disponível em: <https://tinyurl.com/2k926ak2> (Acesso: 30 mar. 2011).

PATRÓN, L. O futuro anticapacitista: curar preconceitos e celebrar diversidades. TEDx São Paulo [15/05/2020]. Disponível em: <https://tinyurl.com/42yre9pp> (Acesso: 14. fev. 2021).

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Tereza Cristina Rodrigues Villela

    Pedagoga, mestre e doutora em Educação Especial (Universidade Federal de São Carlos), professora do atendimento educacional especializado da rede municipal de Brodowski, interior de São Paulo). É palestrante em cursos de formação de educadores e para a comunidade em geral quanto à informações sobre estratégias de ensino, comunicação e interação, que possam beneficiar a todas as crianças na escola comum, direitos das pessoas com deficiência, e caminhos para que sejam efetivados.

Artigos Relacionados

Preconceito e intolerância em Caçadas de Pedrinho

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *