Projetos educacionais como alternativa para reinventar a escola

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Escola em crise multidimensional

A escola contemporânea não esperou a crise de Covid-19 para entrar em uma crise multidimensional no início do século XXI. A profundidade da crise depende do contexto nacional e abrange várias dimensões. Em primeiro lugar, mencionamos a incapacidade da escola em reduzir as desigualdades educacionais entre os alunos, de acordo com sua origem sociocultural e riqueza dos pais, ou seja, a qualidade e quantidade da escolaridade de uma criança  pode  depender se seus pais são trabalhadores não qualificados ou se ocupam cargos de gerências.

A perda da função da escola de garantia da meritocracia tem muitas consequências. Então, o significado do conhecimento escolar é cada vez mais questionável. Os jovens, em particular, têm mais resistência que as gerações anteriores em receber passivamente um currículo escolar árido e muitas vezes sem sentido. Eles são muito mais apaixonados pelo que encontram nas redes sociais ou na Wikipédia do que pelo que seus professores ou biblioteca escolar têm a oferecer, caso tenham a sorte de ter uma. Além disso, a redução das perspectivas de inserção ou não dos jovens recém-formados no mercado de trabalho produz uma espécie de desmobilização geral: o futuro está bloqueado e comprometido com ou sem escola.

É útil enfatizar a importância das políticas educacionais nacionais e internacionais na redução dos efeitos da crise escolar. No entanto, queremos enfatizar que as políticas educacionais nacionais e internacionais são incapazes de cumprir seu papel porque estão divididas entre duas visões diametralmente opostas das soluções a serem trazidas para a crise escolar. Por um lado, os proponentes da governança escolar neoliberal defendem testes padronizados, conhecimentos e habilidades, avaliação do desempenho dos alunos (leitura, escrita, contagem), em uma escola que é modelada nas necessidades da economia. Em suma, uma gestão da escola por resultados e uma visão instrumental da educação motivada pela iniciativa privada e apostilas. Por outro lado, existem os proponentes de uma escola que coloca o aluno no centro, forma cidadãos críticos e ajuda a preparar as futuras gerações para viverem em relativa harmonia com as nossas diferenças. Obviamente, os dois campos têm razões e a escola precisa formar pessoas que saibam ler, escrever e contar, mas que também sejam cidadãos capazes de viver em democracia.

No restante do texto  nos concentraremos no apoio ao potencial dos projetos pedagógicos e educacionais para repensar as escolas contemporâneas. Focaremos mais no nível local, ou seja, o nível de cada instituição de ensino.

Historicamente, observarmos que o conceito de projeto acompanha o advento da  modernidade em suas diversas transformações. Ele reaparece de forma renovada cada vez que essa modernidade passa por transformações essenciais e crises.

Por que o foco atual pelos projetos educacionais?

O século XX foi o século dos grandes projetos ideológicos e políticos globais que mobilizaram milhões de pessoas e causaram tragédias humanas e duas guerras mundiais. O século XXI parece ser marcado pelo desencanto generalizado, pelo descrédito do discurso político e pelo triunfo das iniciativas individuais e locais. Em outras palavras, raramente vemos professores ou alunos entusiasmados com um projeto nacional de educação elaborado de forma vertical (Ministério da Educação Nacional). Por outro lado, visitando escolas e conversando com o corpo docente, identificamos muitos projetos educacionais locais mobilizadores.

Um projeto pode ser definido como a ideia que temos de um objeto a ser criado ou de um resultado a ser obtido. A palavra projeto também transmite o significado de plano, visando a concretização de uma ideia. O projeto seria antes de tudo um processo evolutivo e finalizado que vai de um estado de partida a outro. O objetivo de um projeto: “é o que queremos obter, mas também a forma como o queremos obter”.

Parece recorrente a existência de um mal-entendido ou pelo menos uma ambiguidade em torno da noção de projeto educacional, no sentido de compreender se o projeto deve focar no aluno,  nas práticas de ensino ou em uma construção de um grupo coletivo na escola. Para efeito desse texto reflexivo, concentramos nossas observações no projeto educativo coletivo. Nesse contexto, a questão central se constitui em como reconstruir um tecido social a partir do local, ou seja, de nossos projetos educacionais coletivos?

Os princípios do desenvolvimento de um projeto educacional

Muitos princípios devem conduzir a construção de um projeto educacional.

Em primeiro lugar, a implementação de uma abordagem de projeto com professores e alunos pressupõe que eles aprendam melhor sendo ativos. Projetar juntos no tempo é uma forma de lutar, de esperar, de não ceder ao determinismo ou à negação da realidade. Graças ao projeto, as mudanças são possíveis e podem concretizar objetivos. O projeto visa uma transformação e possibilita os meios para concretizar as suas ambições. É uma intenção, um desejo, uma antecipação. É também a sua realização: uma ação sobre o mundo e / ou com os outros que requer uma dupla mobilização: a das pessoas; o do conhecimento – já existente ou a ser encontrado – necessário para o sucesso da operação.

Em segundo lugar, também é importante estar ciente da desconexão entre “intenções” e “realidades”. O projeto é emancipatório no sentido freireano do termo, desde que modifique a ordem existente na escola e seja objeto de discussão, diálogo e negociação entre as partes interessadas da escola. Um projeto educacional não é um produto imposto verticalmente pela gestão ou sistemas de ensino.

Em terceiro lugar, o projeto educacional é uma tarefa concreta: definida e realizada em grupo; resultante de uma vontade coletiva; conduzindo a um resultado concreto, materializável e comunicável; em termos educacional e social. É um empreendimento imaginado, planejado, regulado e avaliado em conjunto: o oposto de devaneio (inofensivo) e agitação (impensada). O projeto é a melhor forma de não ter professores e alunos desmobilizados (acomodados!). Um projeto é contrário à política de estagnação, paralisação e esperar para ver.

Em quarto lugar, o projeto educacional é um processo que visa harmonizar gradualmente as ações diárias e o desenho da atividade educacional. Essa preocupação em diminuir a distância entre nossas ações e nosso discurso é de extrema importância. Na verdade, essa dimensão de coerência não está muito presente nos círculos educacionais. Muitas vezes nossas ações não traduzem nossas palavras! (muitos professores ao redor do mundo se recusam a colocar seus próprios filhos na escola pública enquanto se proclamam entre seus defensores !!). Nossa fala é mais generosa do que nossos gestos diários. Voltando a um exame constante de nossos gestos, seus significados, sua evolução é o próprio cerne do conceito de “estar no projeto”. Como pensar uma ação educativa relevante se não fizermos uma análise rigorosa dos nossos gestos e ações cotidianas, bem como dos princípios e valores que os sustentam ?

Interesse e potencial de projetos educacionais interculturais1A. Akkari (djalil98@gmail.com) e M. Santiago (mylenesantiago87@gmail.com ) estão atualmente trabalhando em um projeto de livro que visa orientar educadores no desenvolvimento de projetos interculturais.

No Brasil, como na maioria dos países do mundo, a prioridade da escola pós-covid-19 deveria, a nosso ver, ser a implantação de um projeto educacional intercultural. As relações entre os indivíduos de acordo com suas afiliações (classe social, raça, etnia, religião, gênero etc.) deterioraram-se na escola e na sociedade.

Acreditamos que chegou a hora de operacionalizar o interculturalismo e o multiculturalismo por meio de projetos educacionais concretos que permitam que professores, alunos e pais vivam e aprendam juntos. É fundamental repensar a maneira como levamos as culturas em consideração na escola. Para nós, não se trata de uma valorização folclórica de culturas através da comemoração de algumas datas específicas, da organização de atividades de dança ou de um festival de culinária. Levar as culturas em consideração significa garantir que a escola não seja mais um lugar onde uma cultura é hegemônica e valorizada, enquanto  outras são ignoradas ou subestimadas. Justiça, reconhecimento e emancipação têm um papel fundamental nos projetos interculturais.

A alma de uma escola é seu projeto educacional

Parece-nos recomendável concluir este texto com um apelo ao restabelecimento do sentido da instituição educacional. É imperativo distinguir a escola da instituição. A escola é o local onde se organizam as atividades pedagógicas, graças às instalações e infraestruturas e aos recursos humanos à sua disposição e às normas administrativas que a regem. A instituição é a alma da escola. A escola se torna uma instituição quando identifica e vive seus objetivos e valores, sua tradição pedagógica, seus objetivos educacionais característicos e quando os atores escolares (professores, alunos, pais, administradores) se unem e se mobilizam para eles. Criar uma escola é mais fácil do que criar uma instituição. O projeto educacional deve ser resultado de uma abordagem coletiva de todos os parceiros de uma instituição, em síntese, pode transformar culturas, políticas e práticas institucionais para superar barreiras existentes.


Imagem: Foto Galloppido, Inventário Japurá.


Notas

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Autores

  • Abdeljalil Akkari

    Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra, onde atua como professor e diretor da Faculdade de Educação (SSED). É pós-doutor pela Universidade de Baltimore (USA) e consultor da Unesco e outras organizações internacionais. Realiza estudos sobre desigualdades educacionais, pedagogias alternativas, educação comparada e conexões entre culturas multiculturalismo, e educação em diversos contextos.

  • Mylene Santiago

    Doutora em Educação (UFRJ). Professora do departamento de Educação da Faculdade de Educação e do Programa de Pós graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

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