Simples assim…

O livro “Meu pequenino”, (originalmente lançado em 2015, pela editora La joie de Lire com o título “Mon tout petit”), é um verdadeiro achado dentre tantas publicações de literatura infantil que vemos por aí. Ao todo são oitenta páginas que narram um relacionamento profundo, terno e harmônico que embalam o leitor da capa à contracapa como uma canção de ninar.

É um livro simples assim… “só que não”, como o bordão anuncia. A ilustração e projeto gráfico chamam a atenção por destoar dos demais livros infantis, tão cheios de traços elaborados, com muitos detalhes e frequentemente amontoados nas prateleiras das livrarias. Nesse caso, a ilustração diz a que veio: é direta, enxuta, com traços concisos. Em tempos tão cheios de cores, muitas vezes poluídos com excesso de imagens e técnicas, o livro caminha na contramão, destaca-se como se fosse uma TV em preto e branco nos dias de hoje. Pode demandar um tempo lento para a virada da página, ou mesmo várias leituras, para se dar conta de tanta beleza e compreender a profundidade da história contada.

Parece quase um bloco de notas ou livro de bolso que o artista carrega consigo para registrar suas ideias recém brotadas, ou rascunhos e esboços feitos às pressas em seus devaneios apenas com lápis e papel e certa economia de traços. A sutileza da ilustração contribui para o envolvimento e a emoção crescente, levando muitas vezes o leitor às lágrimas.


Registro do rascunho da artista

Mi pequeño”, edição argentina realizada pela editora Limonero, é fiel à original suíço- francesa, assim como a edição “Meu pequenino” que foi traduzida para o português e lançada pela Editora Amelì – mais um trabalho ultra caprichado da editora Maria Amélia Jannarelli.

O grande diferencial da edição original é a “luva”, (nome técnico para a caixa ilustrada), que envolve o livro cheia de plantas e laguinhos em tons verdes e azuis deixando apenas um orifício por onde aparece o título. Esta edição propõe ao leitor, desde antes de abrir o livro, uma brincadeira de esconde-esconde que se sustenta por toda a narrativa, e insinua o teor da história sem, no entanto, entregar tudo – cabe a ele preencher as lacunas.


Luva da editora suíço-francesa La joie de Lire

O editor Manuel Rud da pequena editora Limonero disse que escolheu publicar este livro por conta da emoção sentida ao terminar de lê-lo – além de ser fã da dupla tão entrosada de autor e ilustradora suíços Germano e Albertine Zullo.

Maria Amélia Janarelli e a equipe da Amelì buscaram ser fiéis à edição da Limonero e inovaram ao escolher uma página porosa que acrescenta textura no folhear delicado do livro. Outra curiosidade nessa edição relatada pela editora Maria Amélia Jannarelli foi a busca criteriosa pelas melhores palavras em português na tradução, discutiram bastante até chegar no resultado final. Fico pensando que talvez o texto enxuto e poético peça ainda mais por esse cuidado criterioso na escolha das palavras traduzidas em outro idioma.

Germano Zullo é escritor e poeta e já realizou mais de 50 livros para todas as idades. Parece ser uma daquelas pessoas que nasceram para o ofício de escritor, mas não foi sempre assim, quando mais jovem era contador. Sorte a nossa que ele largou os números e conheceu Albertine, formada em artes visuais e ilustradora competente com quem se casou e estabeleceu uma parceria constante em suas produções. Ambos já lançaram alguns livros premiados e traduzidos em vários países, tais como: Marta e a Bicicleta (vencedor do Bratslava Golden Apple 1999), Sky High (2010), Line 135 (2012), Os Pássaros (de 2013, Editora 34), Dadá (de 2013, Editora 34, em inglês Jumping Jack) e Mon Tout Petit (pelo qual receberam o prêmio de ficção de Bologna Ragazzi Award, em 2016).

O projeto gráfico do livro prima pela delicadeza. Já na capa, tanto da edição “Meu pequenino” como no caso da edição “Mi pequeno” da Limonero, o olhar do leitor é rapidamente capturado e dirigido ao centro, surpreendido com o título grafado em relevo no ventre da imagem de uma mulher com olhar terno e os braços voltados para o lado esquerdo do peito, bem próximo ao coração. Observando mais atentamente, suas mãos parecem segurar algo ou fazer o formato de um pássaro ou uma pomba, o que poderia sugerir um estado de paz e/ou anunciar que um novo continente está próximo. A relação entre o título, sua localização e a imagem da mulher favorecem que o leitor vá desvendando o teor da história: é bem provável tratar-se da história de uma mãe que embala o filho pequeno que está por vir.


Capa e contracapa da editora argentina Limonero

Logo na sequência, esta edição bem cuidada coloca como página de guarda um azul esverdeado e num tom bem pastel, comumente chamado de azul-bebê, cor sugestiva e muito usada na decoração de quarto de recém-nascidos. Na página seguinte, a mesma mulher da capa olha para o leitor. Parece encará-lo com olhar sereno, convidando-o a conhecer essa história tão universal, o nascimento.

Posteriormente, uma página em branco é seguida de outra preenchida com ilustração e texto consecutivamente, sugerindo o embalo de uma canção de ninar ou um intervalo que silencia e faz pensar, como em um poema. O texto inicia com reticências: “Chegaste…”, ou mesmo na versão da Amelì apresenta: “Aqui está você…” sugere a dupla presença do leitor e do filho, de forma convidativa ritualiza o início da narrativa como num conto de fada: “Era uma vez…”


Aqui está você…

O ritmo da narrativa e da ilustração contribuem para tratar da passagem do tempo. A concisão e teor do texto de não mais que uma frase por página, também colaboram para dar força poética à narrativa. Esta ficção é de uma exatidão tocante, mas, paradoxalmente, constatamos a conversa polifônica entre as várias vozes presentes no livro: do texto, da ilustração e do suporte. São muitas camadas para serem desvendadas. A narrativa bem construída mantém certo enigma sobre a história que será contada, prende a atenção do leitor que avança na leitura para desvelá-la.


E, sabe?


Eu tenho tantas coisas para te contar.

Em alguns momentos o autor dirige indagações, perguntas que podemos pensar serem dirigidas tanto para o leitor como para o filho dessa personagem, um recurso muito perspicaz que ajuda nessa captura do leitor. Em certos momentos, diz: “E, sabe?” e um pouco mais adiante quando fala sobre a história a ser contada: “E ela é muito bonita, sabia?”.

O autor e ilustradora parecem realizar uma dança com um certo tom de ironia ou brincadeira na qual o texto leva à imagem e a imagem leva ao texto numa espécie de coreografia. Isso ocorre em vários momentos ao longo da história, como por exemplo nas páginas em que a mãe diz: “’É uma história” e após folhear a página: “Uma grande história” (e um grande filho aparece simultaneamente na ilustração).


É uma história.


Uma grande história.

Um pouco mais adiante o autor diz: “De fato não sei bem por onde começar” e a mãe, agora pequena no colo do filho já maduro, troca um olhar com o braço segurando a cabeça como se estivesse pensando e em dúvida de como prosseguir, e logo na página seguinte interroga seu filho Percebe?. Autor e ilustradora mantêm certo suspense sobre de que história se trata e a ilustração ao mesmo tempo ressalta o tom envolvente entre eles através da posição de acolhimento entre os corpos. Esse é um momento precioso no qual o mediador de leitura poderia aproveitar e se dirigir para quem estivesse apreciando a sua leitura, perguntando: o que será que aconteceu? Alguém tem alguma ideia sobre qual será a história que a personagem se refere?


Percebe?

Outro recurso ao longo do texto e muito usado na poesia é a repetição de uma frase. Nesse livro o autor repete em três momentos diferentes da narrativa: “Meu bebê, meu menino, meu pequenino!” E na última vez, quando o filho já grande olha para sua mãe minúscula em sua palma da mão. Ele pode ser adulto e alto, mas para ela será sempre seu pequenino.


Meu bebê, meu menino, meu pequenino!

O texto também leva o leitor a caminhar do coletivo para o singular, de uma história comum entre uma mãe/pai e seu filho/filha para um convite que se faz ao longo da leitura para a própria história de quem lê. Podemos fazer um paralelo com o próprio fazer poético, que escava significados até então escondidos e dá uma forma absolutamente nova para a mesma palavra.

Durante a narrativa proposta pelo texto e costurada pela ilustração e projeto gráfico, o leitor segue rumo ao final em aberto; cabe a ele escavar os sentidos e suas impressões sobre o mesmo. Ao mesmo tempo, vai se dando conta que a narrativa tangencia vários assuntos: a força da relação entre pais e filhos; o amor profundo e cíclico; a criança que cresceu embalada de afeto por meio dos jogos corporais característicos entre as gerações; a criança que amadureceu e a mãe que por sua vez envelheceu e voltou a ser criança cuidada pelo filho; ou ainda aquilo que transmitimos muitas vezes sem nos darmos conta; uma história sem início e fim contada por uma mãe e que será de seu filho e também de todos os leitores. Esse último aspecto nos lembra a tarefa de todos nós: “aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu.” (GOETHE apud. FREUD, 1981, p.1849).

E para concluir, uma última impressão: ao segurar todas as páginas e passá-las rapidamente diante dos olhos, parece que estamos diante de uma animação, como se se transformasse em um livro animado (flip-book). Nesse caso, o livro convoca um folhear rápido do leitor: percebemos de forma mais evidente a brincadeira infantil da criança de se aninhar, brincar e escorregar no corpo de sua mãe e ao mesmo tempo a dança de dois corpos que se envolvem e até trocar de posição – o filho cresce e passa a aninhar a sua mãe.

É um livro para todas as idades e funciona como um ponto de encontro entre gerações, um convite à reflexão sobre as vicissitudes do viver e morrer. É amor à primeira vista, inexplicável e inexorável. Tem tudo para cair no gosto de crianças e adultos e ser considerado um grande livro para ser descoberto e redescoberto.1Essa resenha foi produzida como parte das atividades da disciplina “As relações entre texto e imagem no livro para crianças”, da professora Sandra Medrano, do curso de Pós graduação Literatura para crianças e jovens, do Instituto Vera Cruz.

Referências Bibliografia

Blog Picturebook Makers

FREUD, S. Obras Completas. Tomo II. Madrid: Ed. Biblioteca Nueva, 1981.

ZULLO, Germano e ZULLO, Albertine. Mon tout petit. Genève: La joie de Lire, 2015.

ZULLO, Germano e ZULLO, Albertine. Mi Pequeño. Buenos Aires: Limoneiro, 2016.

ZULLO, Germano e ZULLO, Albertine. Meu pequeno. São Paulo: Amelì, 2019.

Nota

  • 1
    Essa resenha foi produzida como parte das atividades da disciplina “As relações entre texto e imagem no livro para crianças”, da professora Sandra Medrano, do curso de Pós graduação Literatura para crianças e jovens, do Instituto Vera Cruz.

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Isabel Moreira Ferreira

    Coordenadora do Espaço de Leitura da associação Trapézio, aluna do curso de pós graduação em Literatura para crianças e jovens, do Instituto Vera Cruz.

Artigos Relacionados

Tendências da edição para adolescentes e jovens: entre produtos e fórmulas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *