
“[…] Não quero ferir a delicadíssima força deste livro feito de pura beleza.
Rendo-me ao seu clima de sonho. […] como é possível alguém perfurar um papel
de fundo preto e me obrigar a dizer: é um céu estrelado!”
Adélia Prado, texto de quarta capa, Cosac Naify, 2010.
A apresentação do livro ao leitor
Embora o mito seja conhecido como Eros e Psiquê, a menção a Eros não está no título, mas na capa, num jogo de escondidos, de encobertos, de sobreposições que se pode ver ao longo de toda obra. A noite, uma das representações de Eros, está na capa preta salpicada de pontos prateados dando suporte ao título Psiquê. É um chamamento a outras narrativas, em especial ao mito que será recontado. A leitura de Psiquê começa ali, na capa do livro.
Em entrevista para o site da editora Cosac Naify, ao responder se o céu da capa de seu livro é referência à memória de infância, Angela-Lago diz: “O céu estrelado me lembra que faço parte de um universo sem fim. Quando criança, era uma experiência de êxtase e terror. Minha mãe tinha a mania de falar: somos pequenas pulgas na cabeça de um alfinete. Essa frase me dava a sensação de ter sido abandonada no fundo da floresta.”
As páginas de guarda apresentam também oposições, a página par toda preta, salpicada de branco, a página ímpar toda branca, escrito Psiquê em preto; nas duas seguintes a copa de uma árvore em sobreposições de cinza, bem na costura do livro, metade da ilustração numa folha, metade na outra, representando a dualidade de que trata Psiquê.
A história que foi contada
Ler este livro é mergulhar numa obra literária de uma história universal, sem fim, cíclica, e produzir novos sentidos para o modo tão especial de dizer aquilo que diz. “Esta história é de encantamento. Traz vida longa e boa sorte a todos que a escutam ou a leem” é o convite, após as paginas de guarda, para a narrativa do ponto de vista de Psiquê.
O mito de Psiquê aborda a individuação (a moça vê-se sozinha no mundo, abandonada por todos); vive o enfrentamento do desconhecido lançando-se ao convidativo salto rumo ao vazio; acende as luzes dos desejos humanos, enfrentando a dolorosa travessia para a maturidade. Faz alegoria à imortalidade da alma. Vem de um tempo primordial, do lugar ficcional do princípio, onde o mundo começou com as façanhas dos deuses.
Psiquê era moça de rara beleza, como tudo é raro no mundo dos deuses.
“Era uma vez Psiquê, uma princesa tão linda, que é impossível pintar ou descrever.
Pessoas do mundo inteiro vinham de longe conhecer e homenagear sua formosura.”
A imagem pode ser lida como alusão aos Reis Magos, em que gente do mundo todo parte para reverenciar, dentre os mortais, algo vindo do mundo das divindades.
O que é impossível de pintar ou descrever, será por toda a narrativa visual, um jogo de sombras, contornos e silhuetas, sem que se possa ver os traços de identificação. É também a referência ao castigo que se impõe, por ciúme, à tamanha beleza, casar-se com uma criatura horrível.
Mais uma voltamos à capa que faz menção a uma beleza que precisa ser escondida. A página toda preta, apenas perfurada com pequeninos círculos, deixa escapar a luz da página toda prata a que se sobrepõe. Nem a escuridão do céu infinito pode esconder a beleza que não se pode descrever.
E por ironia do destino, os deuses sempre com suas peraltices, o mais belo apaixona-se pela moça, mas a impede de vê-lo na luz. Um texto escrito às claras, ilustrado com imagens escurecidas por penumbras e adivinhações.
Logo no inicio, ainda ao lado da imagem acima, encontramos um convite ao surpreendente. “Por mais medo que tivesse, a princesa devia esperar o desconhecido,”. Diante da vírgula é preciso virar a página e prosseguir no jogo de ver e esconder: beleza invejável da moça, sem amarras da realidade; a beleza proibida do moço, escondida pelo castigo.
O modo de contar uma história já contada tantas vezes
Os significados são múltiplos no encontro da condensação do texto escrito com as ilustrações repletas de implícitos. Na produção de linguagem entre texto e imagem faz-se o objeto estético livro álbum.
Tal como Branca de Neve, a mais bela dentre as mais belas, Psiquê é arrancada do seu mundo conhecido e lançada ao perigo. No mito recontado por Angela-Lago é possível a conexão com os contos de fadas e sua narrativa visual é um convite explícito a recordar o castelo da Fera, o príncipe que se fere ao sair da torre onde está presa Rapunzel, as impossíveis tarefas dadas a Cinderela para que pudesse ir ao baile, ao sono profundo da Bela Adormecida. Psiquê é repleta de intertextualidades e um convite ao leitor a revisitar conhecidas narrativas.
A citação de Ítalo Calvino em ‘Seis propostas para o próximo milênio’ explica melhor quando diz: “A obra literária é uma dessas mínimas porções nas quais o existente se cristaliza numa forma, adquire um sentido, que não é nem fixo, nem definido, nem enrijecido numa imobilidade mineral, mas tão vivo quanto um organismo.”
A vivacidade da obra literária, sobretudo na produção atual para o público infantil, dá-se em parte no rompimento da linearidade que limitaria a narrativa ampliando possibilidades semânticas no encontro entre texto e imagem. Outras linguagens, com diferentes velocidades, multiplicidades de ângulos, dialogam com a produção escrita e a enriquecem. O livro Psiquê parece cinema.
A potência de um texto é o caminho para a potência dos leitores. Só temos bons leitores na experiência com bons textos. E os livros devem ser escolhidos pelos problemas literários que colocam ao leitor. Problemas literários não são problemas sociológicos ou psicológicos que o tema do livro traz. Problemas literários são conflitos em torno do literário, bons problemas para se ter com a linguagem escrita e visual, tal como os que nos apresenta Angela-Lago.
As figuras retóricas de linguagem são recursos da escrita que alteram as palavras em seus sentidos, suas intensidades permitem novas significações para além do literal. Figuras como metáfora, metonímia, hipérbole e personificação têm correspondentes na linguagem visual, rompem com os dados realísticos e estão fortemente presentes na narrativa de Psiquê.

A cama de Psiquê e Eros é ora um campo florido, um mar ou ainda um céu estrelado em referência à amplitude desse espaço quando ocupado pelos amantes, tornando-o grande, imenso, infinito. Na linguagem visual, a hipérbole é um jogo com os exageros, com os extremos.
“Mas um vento carregou Psiquê para um castelo.”
A personificação, é a atribuição de características humanas a seres como animais, pedras etc. Aqui é o vento que teria braços para carregar Psiquê ou são as colunas do castelo, feitas dos troncos das árvores, com raízes que são pessoas que aguardam a moça e reverenciam sua travessia por aquele portal.
Menos explicitamente, mas fortemente presente em Psiquê, há metáforas ditando transformações aos significados das palavras e das imagens. Quando Psiquê atende aos conselhos de suas irmãs e vai ver Eros com uma lamparina para iluminar seu rosto, atravessando o limite que lhe havia sido imposto por ele, vemos uma serpente num canto da imagem, atravessando também as portas do castelo.
Expulsa do castelo, afastada de Eros e após cumprir três árduas provas, para atender aos desejos de Afrodite, Psiquê é lançada a realizar mais uma, a pior de todas, atravessar o rio da Morte.

Na ilustração há uma citação da pilha de sapatos dos presos nos campos de concentração, expostos no museu de Auschwitz-Birkenau. Os sapatos, os pés descalços em movimento na trilha sem volta para o conhecido destino final, a travessia para a morte. A metonímia da morte.
Atravessado o umbral, há o retorno para o conforto, para o seguro, para o iluminado. Ao final, Eros alado ergue sua mulher, Psiquê em figura dupla da sombra que passou por tantas provações para a silhueta com adorno de caráter redentor na cabeça, talvez uma coroa de princesa.

Uma obra literária é aberta a uma rede de significações que não se encerra e que lança o leitor ao mundo que se reatualiza para que seja suportável. Psiquê vai ao Inferno e dele retorna. Nem sempre a vida nos garante um final feliz, por isso lemos.
Uma resposta
Uau!!! Belíssima resenha!! E eu que não li o livro, saio em disparada para conhecê-lo.