A Educação Midiática: limites e possibilidades

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janu@email.com Alves Januária Cristina

Introdução

Eles estão na rede. E não são poucos. Crianças e jovens já representam, atualmente, 70% do contingente dos 60% de indivíduos conectados à Internet no mundo (dados de janeiro de 2021). O Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) afirma que, segundo os levantamentos mais recentes, a cada 30 segundos uma criança ou adolescente se torna usuário da rede. Em uma pesquisa feita pela agência da ONU, a União Internacional das Telecomunicações (UIT), constatou-se que os jovens passam mais tempo online do que adultos. Uma pesquisa da entidade em 2020 revelou que eles tinham 24% mais probabilidades de estarem conectados à internet do que o restante da população, daí a razão pela qual são os que mais comentam e interagem ali. Isso porque, é nessa fase da vida que as relações sociais são fundamentais para moldar seu comportamento, valores e para formar sua visão de mundo. É na adolescência que se constrói a identidade e uma das maneiras pelas quais descobrimos quem somos é quando nos comparamos uns aos outros. Olhando ao nosso redor, percebemos nossas similaridades e diferenças e vamos fazendo nossas escolhas. 

Os números atestam que o mundo digital já é parte da vida de crianças e jovens do mundo inteiro. Também de acordo com dados do UNICEF, um em cada três usuários da internet no mundo tem entre 0 e 18 anos. E aqui no Brasil isso não é diferente. A pesquisa TIC Kids Online Brasil 2022 aponta que 92% da população de 9 a 17 anos é usuária de Internet, o que equivale a mais de 24 milhões de crianças e adolescentes conectados. Desses,  86% usam redes sociais, sendo 92% deles entre 15 e 17 anos. 

Estar na rede, na chamada Sociedade da Informação, equivale a viver em rede, o que significa muito para as crianças e jovens. Por isso, é fundamental que nos preocupemos com a relação dos jovens nesse universo on-line e que estejamos atentos às maneiras pelas quais podemos ajudá-los a construir uma “musculatura” consistente para trafegar nesse mundo de maneira participativa, ética e responsável. Como chama atenção o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (2015), “A educação é vítima da modernidade líquida, que é um conceito meu. O pensamento está sendo influenciado pela tecnologia. Há uma crise de atenção, por exemplo. Concentrar-se e se dedicar por um longo tempo é uma questão muito importante”. Crise de atenção, ansiedade, cyberbullying, assédio online, violência digital, discurso de ódio, cancelamento, todos esses temas permeiam as relações entre os seres humanos e as redes, que, por outro lado, também favorecem a participação cívica, o acesso ao conhecimento de maneira democrática, a autoexpressão de uma maneira ampla e exponencial. 

A escola e a educação midiática 

A educação, portanto, tem se ocupado com afinco em abordar não apenas essa temática, mas em encontrar meios de inseri-la em seu cotidiano. Como vemos no artigo da Revista Entretanto em seu editorial (2019), a escola ainda é o ambiente mais favorável a esse assunto, por ser um lugar privilegiado em que a informação e o conhecimento caminham juntos visando a educação integral de crianças e jovens: 

Não dá para ignorar essa temática no ambiente escolar, seja nas reuniões com os docentes ou durante as aulas. Ignorar essa discussão, num contexto que se supõe a formação para práticas sociais, é igual a fingirmos que não percebemos os smartphones ou tablets nas mãos das crianças. Parafraseando Mc Luhan, um crítico literário do início do século XX: as mídias são extensões do corpo dos jovens. E essa extensão não é apenas física (o celular que vive na mão), mas também há uma expansão do espaço social (virtual e não físico) onde se implicam benefícios (espaço de direito à informação, novas formas de aprendizagem, ampliação do tempo, entre outros) e os riscos (da desinformação e consequente perda da democracia). É necessário educar para essas mídias e para esses novos espaços levantando outras questões fundamentais como: a era da pós verdade, discurso de ódio e liberdade de expressão, fake news e desinformação, o funcionamento e papel da imprensa; a importância da análise dos vários lados dos fatos, das vozes sociais implicadas e o que a democracia tem a ver com tudo isso.

O assunto é complexo e multifacetado, e ainda há muito o que se pesquisar a respeito. Estamos, ao mesmo tempo, inseridos na chamada “Sociedade do Conhecimento”, aquela que tem acesso à uma quantidade de informação – em uma única edição dominical de um jornal como o The New York Times a quantidade de informações é equivalente àquela a que um cidadão do século XVII tinha acesso ao longo de toda a sua existência – e, paradoxalmente, essa mesma sociedade produz desinformação como nunca se viu antes na história da humanidade. Nesse sentido, a área de conhecimento chamada de Alfabetização Midiática e Informacional – AMI (termo mais utilizado pela Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco, uma organização composta por mais de 700 instituições, governos e indivíduos nos cinco continentes e da qual tenho o privilégio de fazer parte) ou Educação para as Mídias ou ainda Educação Midiática, faz-se extremamente necessária nesse contexto, como enfatiza o professor emérito da Loughborough University e professor visitante do Kings College de Londres, David Buckingham (2020) 

Vivemos num mundo completamente mediado. (…) A mídia é a dimensão central da vida contemporânea: política, economia, relações profissionais e pessoais. (…) A mídia está em todos os lugares, tal como o ar que respiramos. (…) Em 2018, pela primeira vez, mais de 50% da população mundial estava conectada.

A presença maciça e quase que imprescindível das mídias em nossa vida cotidiana impacta a maneira como nos relacionamos, trabalhamos, estudamos, consumimos informações e sobretudo, como tomamos decisões que afetam não apenas a nossa vida pessoal, mas a de cidadãos do mundo inteiro, já que estamos vivendo de forma globalizada.

A Alfabetização Midiática e Informacional e seu papel no mundo VUCA

Dados recentes dão conta de que hoje em dia (com certeza esses números já cresceram exponencialmente enquanto escrevo esse texto) o YouTube tem perto de 2,3 bilhões de usuários registrados, o Instagram 1,22 bilhão, o TikTok 800 milhões e o Twitter 350 milhões, só para falar das plataformas digitais com mais usuários. Esses números que nem conseguimos dimensionar ao certo o que significam na prática, expressam com precisão aquilo que os estudiosos têm chamado de “Mundo VUCA”, que é a abreviatura das seguintes palavras em inglês: 

  • V para Volatility (volatilidade)
  • U para Uncertainty (incerteza)
  • C para Complexity (complexidade)
  • A para Ambiguity (ambiguidade) 

Em um universo cada vez mais “líquido” como afirma Baumman é, de fato, imperativo preparar os cidadãos para lidar com esse caos (des)informacional. Segundo Claire Wardle, pesquisadora de mídias digitais e fundadora a ONG First Draft dedicada a desenvolver diretrizes éticas e fornecer ferramentas para a reportagem jornalística e o compartilhamento de informações no meio digital, em seu artigo “Uma nova desordem mundial” publicado na Revista Scientific American Brasil,

Um ambiente informacional desorganizado requer que cada pessoa perceba como ela também pode agir como um vetor nas guerras de informação, e desenvolva um conjunto de habilidades para lidar com a comunicação tanto on-line quanto off-line. (…) (portanto,) seria melhor ensinar os usuários on-line a desenvolverem ‘músculos’ cognitivos na forma de ceticismo emocional, e treiná-los a resistir ao ataque de um conteúdo concebido para ativar medos e preconceitos básicos (WARDLE, 2019).

E com ela concorda o historiador e escritor Yuval Harari em seu livro “21 lições para o século 21″

(…) a última coisa que um professor precisa dar aos seus alunos é informação. Eles já têm informação demais. Em vez disso as pessoas precisam de capacidade para extrair um sentido da informação, perceber a diferença entre o que é importante e o que não é, e acima de tudo combinar os muitos fragmentos de informação num amplo quadro do mundo (HARARI, 2018). 

Segundo a UNESCO em seu Currículo para formação de professores de 2013, a Alfabetização Midiática e informacional faz-se imprescindível porque propicia 

A compreensão e o uso das mídias de massa de maneira incisiva ou não, incluindo um entendimento bem-informado e crítico das mídias, das técnicas que elas empregam e dos seus efeitos. Também inclui a capacidade de ler, analisar, avaliar e produzir a comunicação em uma série de formatos de mídias. Pode ainda ser compreendida como a capacidade de decodificar, analisar, avaliar e produzir comunicações de diversas formas.

De acordo com o Office of Communications, conhecido como Ofcom, que é a autoridade reguladora e de concorrência aprovada pelo governo para as indústrias de radiodifusão, telecomunicações e correios do Reino Unido, a Educação Midiática é “uma habilidade para acessar, entender e criar comunicação em uma variedade de contextos”. Um dos maiores estudiosos desse assunto, o professor inglês David Buckingham explicita o que isso quer dizer: 

‘Acessar’ inclui as habilidades e competências necessárias para localizar conteúdos de mídia, usando tecnologias e softwares disponíveis. ‘Entender’ a habilidade de decodificar e ou interpretar mídia, o conhecimento sobre o processo de produção e os padrões de controle institucional, e a habilidade crítica da mídia, por exemplo, em termos de veracidade e confiabilidade de suas representações do mundo real. E ‘criar’ tem a ver com a habilidade de usar a mídia para produzir e comunicar suas próprias mensagens, em uma proposta de autoexpressão para influenciar ou interagir com outras pessoas (BUCKINGHAM, 2007).

Dada a importância do tema, a AMI foi introduzida na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como conteúdo do Ensino Fundamental II, na área de Linguagens, em Língua Portuguesa e no Campo Jornalístico e Midiático. Isso significa que o aluno deverá refletir e experienciar práticas de comunicação orais e escritas, nos diferentes meios de comunicação e suportes midiáticos. O documento justifica as razões pelas quais a prática é fortemente recomendada para ser abordada na escola

A viralização de conteúdos/publicações fomenta fenômenos como o da pós-verdade, em que as opiniões importam mais do que os fatos em si. Nesse contexto, torna-se menos importante checar/verificar se algo aconteceu do que simplesmente acreditar que aconteceu (já que isso vai ao encontro da própria opinião ou perspectiva). […]

Eis, então, a demanda que se coloca para a escola: contemplar de forma crítica essas novas práticas de linguagem e produções, não só na perspectiva de atender às muitas demandas sociais que convergem para um uso qualificado e ético das TDIC – necessário para o mundo do trabalho, para estudar, para a vida cotidiana etc. –, mas de também fomentar o debate e outras demandas sociais que cercam essas práticas e usos. É preciso saber reconhecer os discursos de ódio, refletir sobre os limites entre liberdade de expressão e ataque a direitos, aprender a debater ideias, considerando posições e argumentos contrários (BRASIL, 2018).

A AMI e as habilidades necessárias para ler o mundo

Porém, se a Educação Midiática ensaia os primeiros passos na direção de formular hipóteses e recomendar ações que preparem as novas gerações para trafegarem nas redes de maneira ética e responsável, há questões que ainda precisam ser melhor delimitadas e especialmente estudadas e verificadas. De fato, os jovens estão mais conectados, mas os resultados do Pisa – Programa Internacional de Avaliação de Alunos coordenado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que tem como objetivo melhorar as políticas e resultados educacionais – mostram uma educação que tem falhado em prepará-los para lidar com as informações disponíveis no mundo digital. Boa parte dos alunos – exceto em países que investem maciçamente em educação como a Finlândia – não sabe diferenciar um texto informativo de um opinativo, um anúncio comercial de uma notícia. Os dados desse último levantamento do Pisa evidenciaram que apenas um terço (33%) dos estudantes brasileiros, por exemplo, foi capaz de distinguir fatos de opiniões em uma das perguntas aplicadas no certame.

Para o PISA, a leitura vai além de extrair informações, é muito mais sobre construir conhecimento, pensar criticamente e fazer julgamentos bem fundamentados. Como parte do Projeto Educação 2030, a partir de 2024 as avaliações da rede estarão mais focadas no aprendizado sobre o universo digital. Para a OCDE, a educação do futuro deve se concentrar em ajudar as pessoas a desenvolver uma bússola confiável para navegar no tal do mundo VUCA. Nesse sentido o Prof. Buckingham é bastante crítico no que se refere à eficácia da Educação para as Mídias: 

Não compartilho do otimismo bastante fácil sobre o potencial de empoderamento da mídia digital. Também não acredito que o entendimento crítico ocorra automaticamente a partir da experiência de produção ou participação criativa. A alfabetização de mídia não é simplesmente uma questão de saber como usar dispositivos específicos, para acessar ou criar mensagens de mídia. Também deve envolver uma compreensão crítica profunda de como essas mídias funcionam, como se comunicam, como representam o mundo e como são produzidas e usadas. Compreender a mídia hoje exige que reconheçamos a complexidade das formas modernas de ‘capitalismo digital’. E se realmente queremos que os cidadãos tenham conhecimento da mídia, precisamos de programas abrangentes, sistemáticos e sustentados de educação para a mídia como um direito básico para todos os jovens. (BUCKINGHAM, 2007).

Estar nas redes: fazer parte, tomar parte, participar

Há diversos aspectos da Educação paras Mídias que podem ser destacados, e todos são igualmente fundamentais para a formação de cidadãos midiaticamente educados. Mas eu diria que, quando pensamos nas diferentes razões pelas quais crianças e jovens parecem “mesmerizados” diante delas, um aspecto determinante para a conexão entre eles é a questão da participação. Eles estão ali porque, inicialmente, as redes lhes permitem uma sensação de pertencimento que é parte intrínseca da formação da sua personalidade. Nas redes eles participam, seja curtindo, comentando, compartilhando e mais ainda, produzindo conteúdos: textos, vídeos, fotos etc. E isso não é pouco, aliás, é muito significativo em se tratando da Sociedade do Conhecimento, tem a ver com participar ativamente da construção de uma memória coletiva, como afirma Pierre Lévy, filósofo e pesquisador em Ciência da Informação

O que eu estou dizendo é que cada vez que você dá um like, compartilha alguma coisa ou usa uma hashtag, você está contribuindo para a construção de uma memória coletiva. Esta é uma responsabilidade que nós temos e que vocês devem levar a sério. (…) a melhor coisa que nós podemos fazer é educar as pessoas desde muito jovens a serem responsáveis individualmente nessa nova rede de comunicação e ensiná-las a pensar criticamente. (LÉVY, 2019)

A consciência do que implica estar nas redes – e estamos falando de participação, no sentido mais amplo do que ela significa – é um dos principais fundamentos para formação de um leitor e produtor de conteúdo capaz de construir sentidos em tudo o que acessa nas redes sociais. Não à toa os grandes espelhos dessa nova geração são os chamados “influenciadores digitais” que, de maneira genérica, nada mais são do que pessoas (famosas ou não) que têm a capacidade de inspirar outros, são indivíduos que detêm um certo poder que advém de uma competência e/ou habilidade de convencer a sua audiência a respeito de uma ideia ou opinião que se tem. Nesse sentido, extrapolo essa definição quando aponto que, de uma maneira bastante prática, todos somos influenciadores. Já há algum tempo a questão dos números passou a ter menos importância quando se avalia o poder de influência de quem está nas redes sociais. Hoje se fala em “micro influenciadores” ou até em “nano influenciadores”, que são aqueles indivíduos que falam para públicos muito específicos. Quem está nas redes e possui seguidores, tem um compromisso com esse público. De like em like, de seguidor em seguidor, de “amigo” em amigo, todos nós somos influenciadores digitais. Parafraseando o ditado popular “Caiu na rede, é influenciador”, não importa o número de amigos ou de curtidas nas postagens. Estar na rede, por si só, implica em fazer escolhas, em inspirar e, portanto, em influenciar. Mesmo para quem só está ali “passeando”, sem produzir nenhum tipo de conteúdo, há uma responsabilidade em cada curtida que a pessoa realiza. “Você tem noção do peso de um like? É como se você fosse sócio daquele post”, disparou a influencer digital Camila Coutinho (que tem mais de 2,5 milhões de seguidores) em uma entrevista à revista Gama. 

Educação para as redes

Nesse sentido, é interessante pensar que um dos focos da Alfabetização Midiática precisa, necessariamente, ser a Educação para as Redes Sociais. Ou seja, ter um olhar mais acurado não apenas para o que ali acontece, mas sobretudo para as maneiras pelas quais os jovens se comunicam e se expressam por meio delas. E isso exige atenção redobrada dada a complexidade dos mecanismos que regem as plataformas. Nas redes sociais encontramos “tudo junto e misturado” como dizem os jovens internautas. As fronteiras antes tão claras nos meios de comunicação com os quais estávamos acostumados como a TV, os jornais, o rádio, se liquefizeram com o advento da internet. O mundo passou a caber na tela do computador e mais recentemente, nos nossos celulares. O público e o privado se fundiram, o negócio e a opinião se misturaram (a linguagem é a mesma, inclusive), e os usuários tornaram-se também produtores, dando origem ao que se chama atualmente de “produsers” (junção das palavras produtores com usuários em inglês). As crianças e jovens foram classificadas como tais, para o entusiasmo de uns, que entendem que, dessa maneira, estão formando pessoas com um maior potencial de participação e protagonismo democrático, e ceticismo de outros, que questionam que tipo de engajamento seria esse, e em que medida ela garantiria o exercício da cidadania por parte desse público. 

Esse papel duplo e simultâneo nas redes tem rendido muitos debates. Recentemente, em sua coluna para a Folha de São Paulo, Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS) propõe a criação de um outro termo: “um neologismo em inglês como “usered”, mistura de “user” com “used”. Ou, em português, “usuado”, para se referir a quem usa, mas também é “usado”, explica. Isso porque, como bem observa

O termo usuário dá a impressão de alguém que usa alguma coisa. No sentido original e romântico da palavra, é quem se senta na frente do computador para fazer algo. Só que no mundo de hoje não é o usuário que usa a tecnologia, mas é utilizado por ela (…) no mundo de hoje, em que a tecnologia, sensores e câmeras estão em toda parte coletando dados, é muito mais fácil ser utilizado do que utilizar. Não importa mais se você está logado ou não. Você não é só usuário do seu smartphone, mas está sendo utilizado por ele (LEMOS, 2021).

A questão da Educação para as Redes tem tudo a ver com a necessidade que todos nós temos de perceber o nosso papel nelas, como “produsers” ou se achar melhor, como “usuados”. Que tal perguntar aos nossos jovens se eles já refletiram sobre que tipo de participação estão tendo nas suas redes sociais? E qual gostariam de ter?

Sabemos que responder a essa questão está longe de ser simples e nem permite uma resposta imediata. É necessário refletirmos com o foco e a profundidade que o assunto exige, levando em consideração algumas questões que definem a postura de cada um de nós nas redes sociais. A primeira delas é que é fundamental que compreendamos o que o professor e escritor inglês David Buckigham, especialista em mídias, chama de “capitalismo digital”, ou seja, o modelo de negócios das plataformas, que está longe de ser inclusivo e democrático, e como qualquer outro negócio, prevê apenas lucro. Nesse caso, o lucro vem de nós mesmos, “usuados”, pois nossos dados são o grande capital dessas mídias, o que a escritora Shoshana Zuboff chamou mais especificamente de “capitalismo de vigilância”. Compreender esse modus operandi já nos garantirá que não tenhamos grandes ilusões de que teremos uma participação criativa e verdadeiramente protagonista nas mídias sociais. Os meios são a mensagem já dizia McLuhan, o que faz com que nossa comunicação ali se paute pelo que as redes esperam (e ganham) de nós.

Isto posto, a outra grande reflexão que devemos propor aos nossos jovens é sobre a diferença entre interatividade e participação. Ao contrário do que muitos pensam, elas não são sinônimos. Como bem define o estudioso de mídias americano Henry Jerkins “a interatividade é propriedade da tecnologia, enquanto a participação é propriedade da cultura”. O que quer dizer que a participação deve ser um projeto educativo, de construção de um cidadão consciente de seus direitos, possibilidades de atuação social, de seus deveres e compromissos consigo mesmo e com o seu entorno. Os cliques, likes e comentários não passam do que os pesquisadores de mídias chamam de “pequenos atos de envolvimento” que, como diz o próprio termo, dispensa maiores comentários. 

Adotando essa perspectiva, a Educação para as Redes deve focar também na formação dos educadores para serem mediadores dessa participação das crianças e jovens nas redes sociais, entendendo que ser protagonista nelas tem a ver com muito mais do que produzir conteúdos e interagir nas plataformas por meio de comentários, memes e que tais, mas sobretudo, com ser capaz de elaborar criações relevantes, criativas e principalmente que façam sentido para quem os produz e para a comunidade em que se vive. É fundamental que o que se publica seja a expressão de quem produz e do contexto no qual estão inseridos. Participar das redes sociais deve incluir especialmente, o exercício de ouvir e respeitar o outro, sem o que não se pratica o diálogo, tão “fora de moda” nas mídias sociais. 

A importância da construção de contranarrativas

Sendo assim, à guisa de encerramento destas reflexões, gostaria de destacar que a construção das contranarrativas nos meios digitais é, atualmente, uma das preocupações mais relevantes da Educação Midiática, e acredito que o desenvolvimento dessa competência fará com que possamos avançar da mera esfera do consumo para o desenvolvimento de conhecimentos imprescindíveis que nos permitirão uma participação mais centrada na comunicação verdadeiramente mais democrática no mundo digital.

Aliás, cabe esclarecer aqui que falar de contranarrativas não é tratar das “narrativas do contra” ou necessariamente contraditórias, mas daquelas que produzem diferentes visões sobre um mesmo tema. Histórias, contadas de diferentes maneiras, por diversas pessoas, expostas em muitos lugares.

Há dois conteúdos disponíveis na Netflix que expõem de maneira bastante clara e didática a problemática dos efeitos das redes na nossa vida aqui e agora. O filme “Rede de ódio”, premiado no festival de Tribeca como melhor filme narrativo internacional e o documentário “O dilema das redes”. Em comum, ambos têm o fato de mostrar como as redes sociais nos manipulam e provocam comportamentos que muitas vezes estão além do nosso raciocínio objetivo. Revelam como, mesmo não tendo sido criadas para manipular, elas acabaram fazendo isso para se manterem ativas e dentro do seu modelo de negócio. 

É aí que entram as contranarrativas que, como já disse, nada mais são do que aquelas histórias “ao contrário”, que desconstroem versões clássicas que na maioria das vezes são cheias de preconceitos e estereótipos. As contranarrativas dão voz ao lobo mau, que também tem a sua versão para contar, e desconstroem as princesas sempre frágeis à espera de um príncipe de cavalo branco para fazê-las felizes. Ao dar voz a quem não tem ou apenas tentar entender a visão do outro, seus argumentos, justificativas, promove o diálogo, o respeito e aceitação do diferente.

Para que as redes sociais possam recuperar o seu objetivo primeiro – se é que isso ainda é possível – as pessoas precisam voltar a trocar experiências, ideias, opiniões no cyberespaço. E não apenas exibir as suas em busca de likes e cliques. As contranarrativas, como se utilizam dos mesmos mecanismos das narrativas, são capazes de desconstruir os muros, de ampliar as visões de mundo e o repertório de quem lê, escreve e compartilha. As histórias são importantes e necessárias, porque o grande desejo do ser humano é ser visto, ouvido e reconhecido em suas peculiaridades e idiossincrasias. A isso damos o nome de empatia. E as histórias provocam esse tipo de sentimento porque nos fazem “calçar os sapatos alheios”.

A matéria do que são feitas a contranarrativas são aquelas que alimentam a boa convivência e não há segredo nisso: falar e ouvir o outro com respeito e atenção, dar seu testemunho, construir argumentos que se baseiem em fatos, e quando for dar sua opinião, deixar claro de que não se trata de uma verdade porque, para nossa sorte, sempre há muitas verdades contidas numa mesma história. E lembrar que a história que se quer contar trata-se de uma escolha que fazemos em determinado momento, porque sempre podemos narrá-la sob outro ângulo, forma e/ou formato.

Escritores e leitores construtores de sentido

Na Era da Desinformação as narrativas que produzimos e acessamos fazem parte do “capital” que regula as trocas de informações, que atesta a cidadania digital, são parte do fluxo de bens, daquilo que estabelece a forma como se dão as relações no universo on e off-line. São mercadoria e como tal, buscam consumidores e não construtores de sentido. Cabe a cada um de nós, leitores e escritores do mundo, o papel de nos tornarmos inovadores, desconstruindo crenças modeladoras e aprisionantes, rompendo com os modos de ver e agir cristalizados, erguendo novos modos de pensar a realidade, reafirmando, a cada palavra, história, pensamento crítico, que vale a pena seguir construindo e reconstruindo as nossas contranarrativas.

Finalizo chamando a atenção para o fato de que a Alfabetização Midiática e Informacional (AMI) é uma das possibilidades de combatermos a cultura da Desinformação, mas não podemos esquecer que o problema é estrutural e depende de uma ação ampla e conjunta dos diversos setores da sociedade. A Educação para as Mídias precisa chegar em todos os cantos onde haja grupos e comunidades, e das mais diversas maneiras. Não apenas como técnica de leitura e interpretação de notícias, ou de checagem dos fatos, mas sobretudo como um trabalho de mudança de postura diante deles: precisamos aprender a ser aqueles que só opinam baseados em evidências sólidas e que compartilham informações devidamente verificadas. 

Exercitar o desapego de nossas certezas e vieses de confirmação deve ser um comportamento cotidiano e um aprendizado contínuo, ainda mais em um mundo veloz e complexo como esse que vivemos. A luta é contra os algoritmos que nos enredam nas nossas predileções, mas é também contra o nosso desejo de validar o nosso viés de confirmação. Afinal de contas, ouvir o outro despido de julgamentos, analisar a realidade de maneira objetiva e tomar decisões baseadas em uma consciência crítica sempre será um dos grandes desafios do ser humano. Com ou sem as redes que nos tecem e que também ajudamos a tecer.

REFERÊNCIAS

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  • Januária Cristina Alves

    Mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, infoeducadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, vencedora também do Prêmio Valdimir Herzog de Direitos Humanos. É especialista em Educação Literária e Midiática, formadora de educadores e consultora de projetos educativos e culturais para diversas instituições. Em 2019 lançou o livro “Como não ser engando pelas Fake News”, na Coleção Informação e Diálogo, da Editora Moderna. Desde 2019 faz parte da GAPMIL, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco, uma organização composta por mais de 700 organizações, governos e indivíduos nos cinco continentes. Para saber mais acesse: www.entrepalavras.com.br.

    janu@email.com Alves Januária Cristina

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