A história de Júlia e sua sombra de menino

Post Author

Falar em orientação sexual ou questão de gênero é tradicionalmente considerado assunto do mundo adulto, distante do universo daquilo que se entende por uma infância saudável e legítima. Estes temas e os recentes acontecimentos que envolvem a censura no mundo da arte, por exemplo, me fazem pensar nas questões de fundo e levantam reflexões – quase sempre tabus – absolutamente contemporâneas. E mais ainda: que estão na pauta comportamental de crianças e jovens, para além do reconhecimento, ou não, dos adultos.

Vivemos uma revolução de comportamentos e entre os pontos em discussão está a divisão dos gêneros e as características socialmente atribuídas ao mundo feminino e masculino. Hoje nem a bola é mais exclusividade e privilégio dos meninos, como brincar de boneca não é mais do mundo cor de rosa das meninas. Ruptura e transgressão estão na ordem do dia, ou melhor, da vida presente.

Enfrentar essas questões nem sempre é fácil. Razão adicional para se espelhar nas experiências que bons livros sempre oferecem. Um exemplo é o livro álbum, publicado originalmente na década de 1070, A história de Júlia e sua sombra de menino, de Anne Galland e Christian Bruel, um clássico do gênero que trata, de maneira muito delicada e transgressora, das diferenças e da descoberta da sexualidade.

Julia é uma menina que não faz as coisas “como todo mundo”, isso é o que seus pais não param de lhe dizer: “Você é insuportável! Sempre falando palavrões, sempre caindo, se machucando, sempre pronta a fazer algo errado!”. “Você é igual a um menino”, repetem seus pais em tom de reprovação.

Até que num belo dia, Julia descobre que sua sombra não é mais de menina, mas de menino. Menino que passa a fazer uma caricatura de todos os seus gestos. O que em um primeiro momento parece ser algo divertido, se transforma em seguida em um questionamento de sua própria identidade. Triste e sem entender muito bem o que acontece com ela, Julia passa a se questionar se é preciso mudar mesmo o seu jeito de ser para ser aceita por todos e se livrar do estigma que começa em casa. Afinal, o que ela quer é ser aceita e amada.

A partir de então, passa a buscar um lugar onde não tenha sombra e nessa procura encontrará um amigo com quem compartilhar a sua tristeza. É nesse outro que Julia se vê e consegue se encontrar, afinal eles descobrem que têm o direito de ser como eles são. Julia conquista a sua identidade e com isso deixa de dar importância às etiquetas que tentam rotular gestos e comportamentos.

Escrito em versos, com argumentos sensíveis e com um projeto gráfico apuradíssimo, belas ilustrações em branco e preto que se contrapõem ao vinho das páginas com texto, o drama de Julia aparece a cada página. O leitor acompanha o encontro de Julia consigo mesma por meio de detalhes que revelam a personalidade da menina e o seu estado de espírito. O foco todo está todo nela. Impossível não se envolver e se emocionar com a história de Julia, tão recorrente no mundo de hoje, onde as diferenças ainda são alvos de tantos preconceitos e desrespeitos.


Editora Scipione (fora de catálogo)

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

Artigos Relacionados

Uma ponte para Sendak

Quando a história é outra

Caros editores: publiquem menos. Não se vive só de bestseller

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *