A literatura como discurso artístico

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rodolforodrigues@emilia.com.br Rodrigues Pontes Rodolfo

É estranho que possamos falar da LIJ, que possamos pensá-la, amá-la e defendê-la sem que possamos, por outro lado, defini-la categoricamente. E, menos ainda, separá-la com clareza da “outra literatura”.1 Em referência ao título deste artigo: BODOC, L. La literatura como discurso artístico. In: Actas y memoria del congreso CILELIJ. Santiago, 24-28 fev. 2010.

Não sei por onde passa essa linha demarcadora. O que sim creio é que a singularidade da LIJ com relação à literatura para adultos é como a trágica singularidade dos siameses: são dois porque são um. Um tronco com duas cabeças que, às vezes, se estranham. Mas que, no entanto, compartilham a mesma matéria e a mesma energia. E que nem sequer podem andar sem uma arrastar a outra. Fenômeno que ocorre em ambas as direções.

Quero separar-me de qualquer dogma e de quase todos axiomas excludentes, porque não posso sustentá-los nem no discurso nem na prática; exceto que tenha cumprido um forte trabalho de desonestidade intelectual.

Se defendo a diversidade na rua, também devo defendê-la na literatura.

“Você tem que deixar que a beleza baile com os médicos mais inaceitáveis.”

“Não obriguemo-nos a tomar a pílula da verdade como um remédio.”

“Não sou reitor de nada, não dirijo, e por isso valorizo os equívocos de meu canto.”

(Pablo Neruda)

Gosto de recordar que a literatura é uma arte. Gosto de recordar que a literatura infantil e juvenil também o é.

Agora, sua condição como disciplina artística a isenta de certas modalidades e propósitos: por exemplo, admonição, informação, autoajuda, terapia…

E, em troca, compromete a nossa literatura com a poesia.

Não falo especificamente do gênero lírico: estrofes, rimas, verso pautado ou livre. Falo, sim, da linguagem poética, do que se torna uma poética e pode aceitar diversas vozes e diversos estilos: a sobriedade, o minimalismo, a moderação, o exagero, a brutalidade, a doçura.

O que não pode acontecer é que tal postura, simplesmente, não exista. Isto é, que o quadro que é um texto não esteja sustentado, do começo ao fim, de acordo com algumas correspondências entre a forma e o conteúdo, entre o dito e o não dito, entre o manifesto e o latente. Decisão estética do autor. Ou, em outras palavras: sua poética.

Todas as formas de arte problematizam sua matéria-prima. A música problematiza os sons e os silêncios; a pintura a cor, a forma, a perspectiva… A literatura deve problematizar sua matéria-prima, a linguagem. Do contrário corremos o risco de nos centrar no “o quê” sem levar em conta e se esquecer do “como” se conta. A literatura é um discurso artístico, portanto não pode haver prioridade do conteúdo sobre a forma. Deve haver, porém, uma adequação, uma aliança plena sem a qual a criação literária desaparece.

Agora, para que haja uma linguagem poética deve haver antes um pensamento poético. E é com este conceito que eu desejo argumentar que crianças e jovens devem ler literatura.

Por que?

Porque o pensamento poético é um modo de conhecimento tão sério e transcendente como o pensamento racional. A arte em geral e a literatura em particular “conhece” e explica a realidade de um modo particular e, como tal, insubstituível. Um conhecimento que de nenhum outro modo poderíamos adquirir. E sem o qual crescemos com desvantagens emocionais, com limitações sensíveis. A arte exercita, como nenhuma coisa, a emoção, a imaginação, a intuição, a capacidade de perdoar e de sonhar.

Pablo Neruda disse, em O livro das perguntas (Neruda, 2008):

“De que ri a melancia quando a estão assassinando?”

E isto não é puro arrebatamento.

É uma maneira de conhecer a melancia que ninguém além do artista poderia propor. Com dez palavras e dois pontos de interrogação, o poeta propõe uma quantidade de associações que nos “desconcertam”. Põe-nos no lugar do extracotidiano. E, portanto, nos obrigam a mobilizar os sentimentos e as capacidades adormecidas de nossa psique e de nossa inteligência.

Esse é, creio eu, o papel da arte.

A literatura não pode somar-se, sem mais, às propostas do mercado: rapidez, facilidade, usa-se e joga-se fora, não dói, não respinga, não pesa. Então a literatura perderia sua finalidade.

Ler um texto literário não é ler qualquer outra coisa. Porque a arte não tem nenhuma proximidade com a utilidade tal como em geral a conhecemos: um intercâmbio, uma transação, uns resultados mensuráveis. Porque o tempo da literatura não é o tempo que, diariamente, ganhamos, perdemos, economizamos, investimos… O tempo que, no final, em justa vingança, passa-nos por cima.

É na arte e no amor onde podemos perceber o tempo como algo indiferente ao dinheiro.

Se ler duas páginas literárias leva o mesmo tempo que ler dois livros sem valor estético algum, fico com as duas páginas árduas porém decisivas da literatura.

Não há nesta afirmação uma desqualificação de outras leituras, que bem pode servir de acesso; porém que jamais podem substituir a experiência gerada pela arte literária.

Termino pensando no destinatário deste congresso. A criança, o jovem…

Se estivesse aqui e pudesse passar adiante o que dança sobre as teclas como um demônio.

Aquele que pinta os lábios usando a tela como espelho.

Aquele que aceita a vida e a morte com a lógica dos efeitos especiais.

Aquele que se assusta pela promessa de seu púbis.

Aquele que morde a ponta da língua para escrever.

Aquele que cava até o fundo dos bolsinhos para ver se sua moeda teve criação.

Aquele do jeans acabado.

Aquele que sonha com a tempestade.

Aquele da fome.

Aquele que desenha pelo lado de fora porque quer desenhar-se pelo lado de dentro…

Se eles estivessem aqui, talvez nos pediriam mais coragem. Possivelmente nos diriam que necessitam e agradecem o que escrevemos em cada linha como se quiséssemos mudar o mundo, embora não seja verdade. E os dê como novos para que possam crescer.


Imagem: Ilustração Isidro Ferrer, O livro das perguntas, Pablo Neruda, Cosac Naify, 2008.


Referências Bibliográficas

NERUDA, Pablo. Livro das perguntas. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

Notas

  • 1
    Em referência ao título deste artigo: BODOC, L. La literatura como discurso artístico. In: Actas y memoria del congreso CILELIJ. Santiago, 24-28 fev. 2010.

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  • Rodolfo Rodrigues Pontes

    Pesquisador nas áreas de Ilustração, Literatura Infantojuvenil e Leitura Literária. Graduado em Design Gráfico e especialista em Literatura, Memória Cultural e Sociedade, ambos pelo Instituto Federal Fluminense (IFF). Também é Bolsista Voluntário de Pesquisa e Extensão do Núcleo de Pesquisa em Artes, Design e Comunicação – ARTDECO/IFF.

    rodolforodrigues@emilia.com.br Rodrigues Pontes Rodolfo

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