A polêmica história de Eredegalda

Post Author
cecedac@revistaemilia.com CE CEDAC Grupo

A decisão do Ministério da Educação de recolher das escolas o livro Enquanto o sono não vem traz de volta o fantasma da censura e a discussão sobre o lugar da literatura na infância. A obra, que faz parte do acervo distribuído pelo Pnaic (Programa Nacional pela Alfabetização na Idade Certa), teria de ser retirada do contato com as crianças por trazer em um dos seus recontos (A Triste História de Eredegalda) o desejo incestuoso de um rei de se casar com uma de suas filhas (ela é castigada por não aceitar a proposta, que ainda faria da sua mãe uma criada).

A Secretaria de Educação Básica do MEC avaliou a obra como inadequada para crianças de 6 a 8 anos e recomendou o seu recolhimento por entender que as crianças no ciclo de alfabetização “por serem leitores em formação e com vivências limitadas, ainda não adquiriram autonomia, maturidade e senso crítico para problematizar determinados temas com alta densidade, como é o caso da história em questão”. O parecer destaca que o texto deve não somente ser adequado às competências linguísticas e textuais do estudante, mas também à sua experiência de vida e aos sentidos que a obra vai produzir no leitor.

A decisão polarizou opiniões “a favor e contra” a criança, “a favor e contra” a literatura. Na visão dos que apoiam a retirada do livro, está a preocupação com o que veem como uma ameaça às crianças. O receio é que, ao conhecerem a história, elas possam achar que o incesto é algo “normal”. Aqui parece haver a ideia de que a criança absorve completamente aquilo que os livros dizem como um fato da realidade “referendado” pelo livro; tampouco parece estar presente a função do mediador (no caso, o professor). Deduz-se daí que seria melhor então esperar a criança entrar em contato com assuntos delicados a partir de uma certa idade, mais adequada, na qual teria maturidade para lidar com questões complexas como essa. Fica aqui uma questão: a literatura infantil, supõe-se, teria então de tratar apenas do que é moralmente recomendável, evitando as ambivalências, contradições e absurdos que existem na vida e na literatura que trata da condição humana?

Por outro lado, aqueles que se indignaram com a decisão do MEC veem nela a volta sombria da censura em nome de uma concepção de criança reduzida a um ser desprovido de vivências, percepções e reflexões próprias e de uma concepção de literatura infantil como um repertório de histórias de cunho moral com a função de ensinar de forma literal e direta – seja a estrutura da língua, seja o teor moral contido na história, em uma relação unívoca com a realidade concreta, não como um campo de experiência próprio que se insere no universo das artes, do simbólico, e que provoca, incomoda, amplia, desloca o leitor da zona de conforto que ele conhece a partir da sua experiência individual. Desse lado da polêmica, há aqueles que se incomodam também com a ausência da figura do professor como mediador dessa relação e até mesmo com a impossibilidade de ele escolher se trabalhará com aquela obra em sala de aula e como. A reflexão que se impõe aqui é qual a concepção de criança e de literatura dos nossos professores e quais são as condições reais que ele tem de fazer essa mediação de forma intencional e qualificada.

É importante reconhecer que a preocupação com as crianças que vivenciam situações de abuso dentro de casa é legítima, mas também não podemos deixar de nos perguntar se a proibição aos livros que mencionam esse ou outros temas delicados ajuda de alguma forma. Quem conversa com as crianças sobre os assuntos tabus? Qual o espaço que as crianças têm para isso? Estamos protegendo-as ao deixá-las sozinhas para lidarem com essas situações? Como deixar de falar a respeito, agindo como se essas questões não existissem, poderia ajudar as crianças que de fato vivenciam esse tipo de situação? O silêncio não pode reforçar a relação de poder que se estabelece com os adultos e fazer com que criança se envergonhe, se sinta culpada por algo que “só acontece com elas”?

Não se trata de atribuir ao professor a função de encaminhar essas questões, do ponto de vista psíquico ou social, mas sim de acreditar na sua capacidade e no seu papel de mediador de leitura, de proporcionar à criança uma relação com o universo literário que não se confunde com o universo real, de forma que a literatura possa ser reconhecida como um campo de experiência próprio, disparador de reflexões sobre a vida, de questionamentos, de crítica, que propicia intimidade com seres fantásticos, assustadores, encantadores, que só existem nos livros.

Na intenção de proteger, não estaríamos negando às crianças a possibilidade de entrar em contato de forma simbólica com sentimentos e fatos que fazem parte da vida? A criança tem necessidade de fantasiar sua realidade para compreender a complexidade do mundo; de discutir/refletir sobre as questões que – no contexto da ficção – ajudam a pensar na realidade sem ter que lidar “de verdade” com ela. Ou, como bem escreve a psicanalista Julieta Jerusalinsky, ao se suprimir ou suavizar nas histórias infantis contemporâneas as manifestações do mal, “a realidade parece ser lida em um total maniqueísmo e vivida em uma total intolerância com o diferente”. “Desse modo deixam de se oferecer para as crianças os elementos simbólicos que lhe permitem alguma elaboração, enquanto uma crueldade cada vez mais deslavada parece impor-se diante de perdas de direitos humanos com crianças refugiadas, imigrantes ou filhos de minorias, tais como sociedades indígenas.”

Ou ainda, para citar um autor que lida com o desafio de escrever para crianças no mundo de hoje, o premiado peruano Santiago Roncagliolo diz que “agora, quando escrevo livros para crianças, não me deixam colocar os maus!. Nem bruxas, nem ogros, nem monstros… A culpa é do afã da sociedade por criar uma bolha para os filhos às custas de obrigar os escritores a criar literatura ‘sonsa’. E o que ocorre é que o mau desta literatura ‘sonsa’ não é a crítica que recebemos. O mau é que cria leitores sonsos, crianças sem nervos nem reflexos morais”.

A pergunta que devemos nos fazer é ao retirar o livro em questão ou outros similares, o que mais estamos retirando da escola? Poupamos as crianças e os professores do contato com um tema espinhoso, mas perdemos a chance de a escola abrir espaço para um debate que de tão relevante provocou toda essa polêmica. Reabrimos o expediente da censura, que interdita, proíbe, define O QUE deve ser trabalhado na escola, ao invés de abrir a discussão de COMO fazê-lo. Certamente o contexto ideal de trabalhar esse livro ou qualquer outra obra de contos envolveria um professor conhecedor da tradição de contos e recontos, que pudesse iluminar os diversos aspectos que podem ser explorados na leitura do gênero: a estrutura narrativa, a relação com a oralidade; e antecipar questões para encaminhar a discussão em sala de aula.

Se entendemos as crianças como “seres humanos portadores de todas as melhores potencialidades da espécie”, como propõem as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil, temos que confiar que elas têm capacidade de interpretar aquilo que ouvem ou leem. Se entendemos que aprender é interagir com o conhecimento e com mediadores e que os indivíduos têm papel ativo nessa construção de conhecimento, como posso assimilar sem crítica aquilo que recebo? Se literatura é do mundo, como podemos esperar que ela traga uma única moral com interpretações fechadas e únicas?

Os contos de fada foram construídos há muitos anos (baseados na cultura oral), em contextos históricos específicos; há muitos estudos sobre suas origens, sobre suas relações com o que se pensava – em cada época – sobre a criança, a sociedade, a mulher, o poder, o sexo, o sagrado, o maldito… Como então esperar que todo conto tradicional “encante”? Se entendemos que a escola é um local de reflexão social e de construção de conhecimento, e não de “verdades únicas e prontas”, temos de criar espaço dentro dela para as variadas formas de interpretar o mundo e confiar que na coletividade essas formas podem se encontrar e se enriquecer. São questões complexas que exigem não só refletir sobre a nossa representação de criança e quão convencidos estamos das suas capacidades, mas também sobre a formação dos professores como leitores literários e, portanto, como mediadores de literatura para crianças.


O Grupo de Estudos da Língua Portuguesa da Comunidade Educativa CEDAC é composto por formadoras e coordenadoras pedagógicas da área que atuam em diferentes projetos da instituição. Constituído em 2014, o grupo reúne se bimestralmente para discutir textos de diversos autores sobre alfabetização, formação de leitores, entre outros aspectos relacionados ao ensino e aprendizagem da língua e às práticas sociais de escrita e leitura. O grupo também debate políticas públicas de leitura, estratégias de formação e outros temas de relevância para a educação, ampliando a reflexão sobre a atuação nos projetos e construindo novos conhecimentos sobre a área. Compõem o grupo Alda Beraldo, Elenice Rodrigues, Fátima Fonseca, Gisele Goller, Lurdinha Martins, Patrícia Diaz, Sandra Medrano e Simone Azevedo. Esse texto foi produzido a partir de uma discussão virtual do grupo, com apoio da jornalista Carolina Glycerio.

Compartilhe

Post Author

Autor

Artigos Relacionados

Por uma Pedagogia das Mídias teoricamente coerente e praticamente exequível

, janu@email.com Alves Januária Cristina david@emilia.org Buckingham David

Trânsitos, aproximações e deslocamentos:

EdithDerdyk@revistaemilia.com Derdyk Edith

Precisamos falar sobre capacitismo

terezacristina@revistaemilia.com.br Rodrigues Villela Tereza Cristina

2 respostas

  1. Ótimo texto! Obrigada por contribuírem de forma tão responsável com o debate. Vale lembrar as palavras tão sábias do professor Antonio Candido:

    “Há conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.

    Antonio Candido. “O direito à literatura”, in: Vários escritos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *