A relação com a natureza nos livros informativos

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100% natural: como os livros informativos têm contado nossa relação com a natureza

Faz justamente um ano, por esses dias, que eu estava terminando de escrever a palestra que dei em Valladolid, no Festival LINA, para o qual fui convidada a falar sobre livros e natureza. Um festival para celebrar o natural, que se realizou em um parque em setembro de 2019.

Muita coisa aconteceu neste ano, e creio que a natureza esteve mais presente do que nunca em nossos pensamentos. Por isso, me animo a compartilhar esse momento de falar de livros. Já sabemos que um livro não substitui a experiência da natureza, mas pode ser que, depois de lê-lo, nossa experiência seja mais intensa e rica.

E agora, prepare sua bebida favorita e se delicie com um bom momento de leitura…

Bom-dia e muito obrigada pelo convite a esta jornada.

Antes de mais nada

Começo com um pequeno trecho do poeta romântico por excelência, William Wordsworth:

Mi corazón salta cuando contemplo
Un arco iris en el cielo;
Así era cuando empecé a vivir;
Así es ahora que soy un hombre;
Así sea cuando envejezca
O antes muera.
El niño es el padre del hombre
Y desearía que mis días
Se sucedieran en piedad natural

Meu coração salta quando contemplo
Um arco-íris no céu:
Assim foi na aurora de minha vida;
Assim é agora que sou um homem;
Assim será quando envelhecer,
Ou deixar-me morrer!
A Criança é pai do Homem;
E eu desejaria que meus dias fossem
Unidos um a um por devoção natural.
1A tradução deste poema pode ser encontrada em GOULD, Stephen Jay. Dinossauro no palheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

O movimento romântico do século XVIII supôs uma mudança fundamental de atitude, não só diante da arte, mas também da vida em geral. Nascido na angustiante Inglaterra industrializada, buscou na natureza e na infância inspiração para dar sentido à vida. Baudelaire disse que “O romantismo não está precisamente nem na escolha dos temas nem na verdade exata, mas na maneira [manière] de sentir”. 2BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa (Volume único). Edição organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 675. Essa manière de sentir foi algo muito subjetivo e, portanto, difícil de definir. No entanto, a exaltação pelo poder da natureza, o desejo de retornar a ela, seu mistério e simbologia foram chaves para fugir do racionalismo industrial e produtivo. “Escuta tua voz interior”, “olha para dentro” eram frases habituais entre os artistas, e todos começaram a expressar as crenças, esperanças e temores de sua época.

Creio que, na atualidade, estamos em um novo “romantismo”. Quando 80% da população vive em cidades urbanas onde o verde é uma mera decoração, com vidas automatizadas e futuros incertos, parece que experimentamos um retorno à natureza como um espaço de escape e de esperança. Vivemos em um mundo onde a ciência nos fez crer que somos os “novos deuses” e nos distanciou cada vez mais do verdadeiro contato com o mundo natural. Hoje, há um retorno claríssimo à natureza e à importância de não perder contato com ela. Há experiências de gente que abandona a confortável vida e mergulha em novas experiências em que o natural adquire protagonismo.

Vemos isso na quantidade de livros que estão aparecendo há alguns anos. Não me foi nada difícil juntar uma pequena seleção.

Quando um movimento ou uma tendência é tão potente nos livros para adultos, os livros para crianças também refletem isso. É certo que a natureza tem estado sempre presente nos livros infantis: seu fascínio é irresistível para os pequenos, que olham o diminuto, se assombram com o que lhes rodeia e fazem perguntas que nem sempre sabemos responder. Os livros têm nos brindado com novas experiências a respeito da natureza e têm sabido alimentar essa curiosidade. Esta palestra quer prestar homenagem a todos os criadores que têm capturado, em um objeto de três dimensões, os segredos e as emoções que a natureza encerra, além de fazer um pequeno tour sobre o modo como os livros têm contado nossa relação com ela.

Sem dúvida, o primeiro livro que refletiu uma nova maneira de sentir foi o Orbis Sensualium Pictus 3COMENIUS, Iohannes Amos. (Ilustrações de Paulo Kreutzberger). Madrid: Libros del Zorro Rojo, 2017. Uma tradução parcial para o português está disponível em: <https://tinyurl.com/y4veycoz>, acessado em: 15 set. 2020., do pedagogo Jean Amós Comenius, que, pela primeira vez, buscou com seu livro despertar os sentidos na direção do que estava ao redor. Com um conceito revolucionário, criou um livro de grande beleza que convidava a olhar mais além da escassa realidade de uma criança pequena do século XVIII, quando inclusive a infância ainda não existia como conceito.

Assim, a natureza tem estado presente há muitos anos nos livros para crianças e lhes tem contado como tem sido e como é o mundo. No belo livro El cielo imaginado [O céu imaginado] 4 MASTRO, Pablo A. (Ilustrações de Ana Suárez). Madrid: A buen paso, 2018., de Pablo A. Mastro e Ana Suárez, eles nos contam como diferentes culturas interpretaram essas luzes do céu.

Os esquimós relatam que as estrelas são pequenos buracos no céu, ou como, para os Incas, o que havia na terra se refletia no céu como um mapa de caminhos, conectando os dois mundos através da Via Láctea.

O princípio

É certo que no princípio éramos natureza: nutríamos nosso imaginário com relatos, mitos, histórias cheias de simbologia. Mas, pouco a pouco, quando a humanidade se fez sedentária, o homem começou a intervir no seu entorno. Neste livro, Soy una fiera [Sou uma fera], 5 GARCÍA SÁNCHEZ, José Luis (Ilustrações de Miguel Ángel Pacheco). Madrid: Altea Ediciones, 1977. antigo (1977), mas muito interessante, José Luis Sánchez e Miguel Ángel Pacheco explicaram muito bem isso.

Os animais foram domesticados, o terreno, conquistado, buscou-se uma maneira de viver com maior comodidade. Começou-se a construir. O ilustrador britânico David Macaulay nos contou com detalhes em seus livros como é isso de construir e como foram os diferentes processos desta sofisticada engenharia.

Campo e cidade

A vida, durante algum tempo, parecia ter seu equilíbrio. Alguns autores, como o casal Provensen, explicou muito bem em seu livro The Year At Maple Hill Farm [Um ano na granja].6 PROVENSEN, Alice; PROVENSEN, Martin. The Year At Maple Hill Farm. New York: Aladdin Paperbacks, 1978.


Martin e Alice Provensen

Outros criadores, como John Burningham, que, inspirado provavelmente em sua infância no interior da Inglaterra, nos presenteou com o livro Seasons [As estações].7 BURNINGHAM, John. Seasons. London: Random House UK, 1987.

O livro aborda de maneira poética e visual o que ocorre quando as estações mostram sua personalidade. É um livro que deixa voar a imaginação com paisagens idílicas onde a natureza é a grande protagonista. Não há muitos dados, pelo menos desses que devem ser copiados para as tarefas, mas sua leitura nos deixa um vestígio profundo, uma nostalgia, inclusive um desejo de estar ali naquele momento.

E, anos mais tarde, na Itália, a ilustradora Iela Mari excluiu o texto,8 MARI, Iela. Las Estaciones / The Seasons. Madrid: Kalandraka Editora, 2007. depurou as linhas e nos deixou com a essência da ideia.

No entanto, este mundo se perdeu bastante, ao menos para as crianças de hoje em dia. Alguns livros têm o talento e a capacidade de recordá-lo, como o precioso álbum Une ferme d’autrefois [Uma granja de outra época],9 DUMAS, Philippe. Une ferme d’autrefois. Paris: L’École des loisirs, 2010. do francês Philippe Dumas. Com grandes detalhes, certa idealização e muita informação sobre como era à vida em outra época, seu formato paisagem nos dá a sensação de poder entrar em cada uma das páginas para estar na cozinha, na lavanderia, ordenhar os animais, e até mesmo fazer manteiga.

Pronto, as tensões entre o campo e a cidade se fazem notar. Muda a vida, as relações com os animais, com a natureza e suas consequências. Os Provensen, grandes românticos, fizeram um livro sobre isso que está inédito em nosso país. Town & Country10 PROVENSEN, Alice; PROVENSEN, Martin. Town & Country. San Diego : Browndeer Press, Harcourt Brace, 1994. em que justapõem cenas em um e outro lugar, deixando aos leitores que busquem suas próprias interpretações.

A cidade reflete o ritmo das atividades, o anonimato, as diferentes culturas, a tecnologia.

O campo tem aquele ar familiar onde todos se conhecem, os tratores atravessam os campos, a atividade não para e se pode ver o que há ao redor. O livro finaliza com uma paisagem urbana onde as hortas habitam a grande cidade, antecipando-se a um dos grandes movimentos ecológicos do século XXI.

Mas nem todos buscam a conciliação.

Roberto Innocenti, em um álbum sem texto intitulado The House [A casa]11 LEWIS, Patrick; INNOCENTI, Roberto. The House. Mankato (Minnesota): Creative Editions, 2009. explora a história de uma simples casa rural onde as crianças atravessam a floresta, é usada como refúgio durante a guerra, abandonada durante o pós-guerra, ocupada pelos hippies e, por fim, reconvertida em um bastião da vida moderna.

A imagem transmite claramente sua crítica a essas mudanças, a esse abandono da natureza.

Outros livros também têm mostrado os efeitos da cidade contra a natureza. A ilustradora norte-americana Virginia Lee Burton, criadora de bonitos livros para crianças, em um livro publicado em 1942 [The Little House]12 LEE BURTON, Virginia. The Little House. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2012 (1ª edição 1942). que ganhou a Medalha Caldecott, mostra como uma casinha indefesa, que se vê rodeada de grandes edifícios, é finalmente devolvida ao campo.

Nesta pequena viagem sobre as relações campo/cidade queria mencionar o grande trabalho do ilustrador suíço Jörg Müller. Um livro inédito em espanhol que consiste em uma pasta com 7 lâminas independentes de três metros por cinquenta centímetros.13MÜLLER, Jörg. Alle Jahre wieder saust der Presslufthammer nieder: oder: Die Veränderung der Landschaft. Aarau [u.a.] Sauerländer, 1977.

Müller viajou, de 6 de maio de 1953 até 3 de outubro de 1972, a um mesmo cenário. Documentando com arquivos e fotografias, conseguiu realmente fazer-nos ver que tipos de mudanças acontecem. Sobrepus aqui algumas das lâminas para ver o efeito que teria espalhar todo o livro no chão e olhar detalhadamente.

Estou apresentando livros que não têm palavras, ou muito poucas: o peso da informação está na ilustração que, como diz o ditado, vale mais que mil palavras. Gosto de recordar com esses livros a importância da ilustração e com que facilidade costumamos dizer que os pequenos leitores gostam dos livros informativos porque olham os desenhos. A complexidade de interpretar imagens é um desafio tão importante como decifrar os signos escritos. A observação, o olhar atento que proporcionam as imagens, são atitudes muito valiosas no pensamento científico.

A natureza também serve de inspiração à humanidade. No livro dos coreanos Wan-doo Kim e Eun-Jin Ahn Inventos inspirados en la naturaliza [Inventos inspirados na natureza]14 WAN-DOO, Kim; EUN-JIN, Ahn. Inventos inspirados en la naturaleza. Ciudad de México: Castillo, 2010. eles nos explicam como as atividades dos animais têm inspirado ferramentas para os humanos.

Um livro que convida a observar e olhar porque desde a primeira página diz: se prestar muita atenção ao que lhe rodeia, também poderá tomar algumas ideais emprestadas da natureza para inventar coisas maravilhosas, e fala de algumas dessas ideais, como o arame farpado inspirado nos espinhos das roseiras, o velcro copiado dos frutos da bardana, a torre Eiffel, inspirada na estrutura dos ossos e nas escavadeiras que imitam as patas dianteiras das toupeiras. É um livro difícil de largar, que nos conta mais coisas do que podemos imaginar por nós mesmos e nos ajuda a olhar novamente a natureza com novos olhos.

O arquiteto Daniel Nassar parece que fez isso e nos presenteou com este livro Animales arquitectos [Animais arquitetos]15NASSAR, Daniel J. El castor constructor y otros animales arquitectos (Ilustrações de Julio Blasco). Barcelona: Promopress, 2014., que Julio Antonio Blasco ilustrou. Casas suspensas, móbiles, jardins subterrâneos, cabanas nos rios, pontes suspensas e muitas estruturas curiosas. Um livro cheio de dados, informações sobre as maneiras de construir e habitar, um livro com abas e até mesmo instruções sobre como construir todas essas engenhocas.

As grandes perguntas

Nossa fascinação pela natureza inclui também as grandes perguntas da vida: de onde viemos? Onde começa tudo? São perguntas filosóficas que nem sempre podemos responder, mas por sorte há criadores que sentiram a necessidade de respondê-las. Isto é algo que, diferente da internet, encontramos nos livros informativos: informação organizada, dados, sugestões, muitas, muitas perguntas e o cultivo do assombro. Como sabemos, a internet só nos dá algumas respostas dependendo, claro, de como sejam nossas perguntas. Enquanto, os livros, despertam perguntas novas, não respondem sempre tudo e nos deixam com vontade de ler mais.

É o que ocorre com o livro Ten seeds [Dez sementes],16BROWN, Ruth. Ten seeds. London : Andersen, 2010. de Ruth Brown, uma obra cuja definição os editores simplificaram, dizendo na quarta-capa: “Um livro singular e divertido para aprender a contar!” e que, basta olhar uma só vez para se dar conta de seu potencial, da beleza que contém e de como é algo mais que um livro para contar…

O que vemos neste livro é muito mais que um registro chato da jornada das sementes: encontramos emoção, ritmo, suspense, uma estrutura circular, textos que dizem pouco, imagens que contam muito, vontade de saber mais, perguntas novas, voltar ao começo…

O grande divulgador japonês Mitsumasa Anno, também quis falar das sementes.

Eu me encanto como o título Las semillas mágicas [As sementes mágicas],17 ANNO, Mitsumasa. Las semillas mágicas. México: Fondo de Cultura Económica, 2006. que nos leva à ficção que, para muitos de nós, é o que é a natureza: um grande invento diante do qual temos que usar a imaginação.

Anno disse em uma nota ao final desta história:

Intitulei este livro As sementes mágicas porque em cada pequena semente existe um misterioso poder que parece ir além de nosso entendimento (…). Faz muito, muito tempo, os homens aprenderam a cultivar plantas para comer e satisfazer outras necessidades. Plantaram sementes e as fertilizaram, protegeram suas plantas dos pássaros e insetos que poderiam prejudicá-las e rezaram aos deuses para que houvesse chuva para regá-las. E quando a colheita produziu mais comida do que necessitavam, surgiu o comércio, assim como o cálculo e outras coisas que podemos pensar comuns a uma civilização. Então, infelizmente, algumas pessoas começaram a guerrear entre si. Não mencionei tais dificuldades neste livro. No entanto, você descobrirá que muitos fatos do mundo são muito parecidos aos contados nesta história, que espero que você ache interessante.

Por certo, Anno nunca perde a oportunidade de fazer alguns acenos para a arte em geral, como nesta cena em que os protagonistas rezam para que chova depois de um período de catástrofes, que nos recorda o famoso quadro de Jean-François Millet, O Angelus. Arte, literatura, ciência, estão estreitamente ligadas.

Com estilo mais moderno e seguindo o despertar das sementes, a obra da portuguesa Isabel Minhós Martins, com ilustrações de Yara Kono, busca o lado poético e das perguntas em sua exploração sobre o tema em seu livro Cem sementes que voaram. [mnf] MINHÓS MARTINS, Isabel. Cem sementes que voaram (Ilustrações de Yara Kono). Carcavelos Portugal: Planeta Tangerina, 2017.[/mfn] Com um traçado próximo ao desenho e longe dos livros mais realistas, a história de cem sementes que voaram e de sua transformação pelo mundo mostra o processo natural e, embora na história assistamos a perda de 90 sementes, bastará que umas poucas encontrem seu lugar.

De foco mais científico é o livro de José Ramón Alonso, ilustrado por Marco Paschetta, Semillas: un pequeño gran viaje [Sementes: uma pequena grande viagem].18ALONSO PEÑA, José-Ramón. Semillas: un pequeño gran viaje (Ilustrações de Marco Paschetta). Mataró: A Buen Paso, 2018. Aqui o texto cobra protagonismo, pois tem que contar as distintas maneiras que viajam as sementes e como conseguem germinar. O vento, os animais, a água, os homens, ou inclusive elas mesmas.

É um grande gesto com que toda a natureza parece concordar. As imagens que ilustram o texto, reservadas à página dupla e algumas pequenas, ajudam na leitura.

Robert Louis Stevenson disse: “Não julgue cada dia pela colheita que recolhes, mas pelas sementes que plantas”.

O compromisso

E é isso que se conta na emocionante biografia de Wangari’s Trees of Peace: A True Story from Africa [Wangari e as árvores da paz],19 WINTER, Jeannete. Wangari’s Trees of Peace: A True Story from Africa. New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2008. realizada por uma das divulgadoras de biografias, Jeannete Winter.

Wangari viveu no Quênia rodeada por árvores. Quando adulta ao ver como o desflorestamento leva as belas florestas, ela decide plantar nove árvores, com o que inicia um movimento ecológico sem precedentes, que a leva à prisão. No ano de 2004, ganha o prêmio Nobel da Paz por seu gesto e pelo movimento que reflorestou em poucos anos boa parte da África.

Jeanette Winter, em uma entrevista, dizia:

Sinto-me atraída por histórias da vida real e histórias reais que se relacionam com as proezas do mundo. As histórias sobre indivíduos valentes e com coragem me inspiram e quero que as crianças saibam sobre esta gente. Sinto que as crianças têm a capacidade de entender os grandes temas de nossas vidas de modo mais simples.

A história de Wangari Maathai foi contada em outros livros, como nesse intitulado Plantando as árvores do Quênia,20NIVOLA, Claire A. Plantando as árvores do Quênia. São Paulo: SM, 2015. de Claire A. Nivola. Animo a apresentar dois livros quase iguais quanto ao tema, para mostrar como a ilustração, diante de uma mesma façanha, convoca os leitores de diferentes maneiras e como esses exemplos de vida convidam à reflexão e também à ação.

Nivola, em sua nota final, diz aos leitores:

Wangari não se considerava valente. Simplesmente pensava que se alguém é consciente de que tem que fazer algo e compreende que tem que fazer, deve fazê-lo, deve atuar.

Os livros informativos não falam apenas de ciência, também apresentam as pessoas que estão por trás dela. Pesquisadores, amantes da natureza, descobridores e comprometidos com seu trabalho. Nos anos 1980, após a crise da vaca louca, apareceram numerosos livros sobre ecologia. Desde os do tipo “50 coisas que você pode fazer para salvar o planeta” até outros, que alertavam, com muito escândalo, sobre a destruição do planeta. Esses livros deixaram de ser publicados e ficamos muitos anos sem obras que contam aos pequenos as inquietudes que temos agora em nossas relações com o planeta. Há alguns anos, a ilustradora espanhola Rocío Martínez publicou o livro La historia del rainbow warrior [A história do Rainbow Warrior]21MARTÍNEZ, Rocío. La historia del rainbow warrior / The Story of the Rainbow Warrior. Pontevedra: Kalandraka, 2008. para explicar a façanha de um barco que ajudava aos animais marinhos enquanto alertava sobre as consequências de alguns atos humanos.

Também gosto muito, neste rastro de biografias que têm a ver com a natureza, do livro de Francisco Llorca intitulado Pequeños grandes gestos por el planeta [Pequenos grandes gestos pelo planeta]22LLORCA, Francisco. Pequeños grandes gestos por el planeta (Ilustrações de Ana Bustelo). Barcelona : Alba, 2016., que está dentro de uma série chamada: “pequenos grandes gestos” dedicada àquelas pessoas que saíram da “fila” em um momento de suas vidas e, com um gesto, estabeleceram um precedente.

Jane Goodall, Peter Willcox, Berta Cáceres, a já citada Wangari, ou a comovente história do menino mexicano Omar Castillo Gallegos que, com oito anos, caminhou cerca de mil quilômetros para ir à selva de Chiapas e ver com seus próprios olhos o alerta que haviam dado na televisão sobre a destruição do lugar. Em seu regresso, caminhou durante dias ao redor do palácio presidencial até que foi recebido em audiência e pode expressar suas inquietudes. Hoje, os livros de texto do México abrigam conceitos como a ecologia e a defesa do meio ambiente graças ao gesto daquele menino.

A natureza foi classificada, colecionada e levada aos museus. Os livros informativos também falam da importância dessas ações e inclusive, reproduzem em um formato de papel, a experiência de visitar um museu, como nos livros de Katie Scott e Kathy Willis,23SCOTT, Katie; WILLIS, Kathy. Botanicum: Welcome to the Museum. London : Big Picture Press, 2016. que parecem uma homenagem aos antigos naturalistas em livros carregados de nostalgia e de detalhada informação.

Criadores

Quando comecei a preparar esta palestra, tinha mais ou menos duas pilhas de livros como esta.

Gosto do otimismo

Pouco a pouco me dei conta de que, no tempo que tinha aqui para compartilhar, seria impossível falar de todos esses maravilhosos livros. A natureza tem inspirado criadores de todos os tempos. Leo Lionni escreveu, inclusive, um livro inventando uma botânica nova.24LIONNI, Leo. Parallel Botany: Sculptures and Drawings. New York: Staempfli, 1977.

Ele inventou novas classificações, espécies ainda por descobrir inspiradas nas formas naturais, que sem dúvida lhe serviram para fazer posteriormente seus livros em que a natureza tem um especial protagonismo.

Eric Carle foi quem nos deu alguns dos melhores livros informativos para crianças, como The very hungry caterpillar [Uma lagarta muito comilona]25CARLE, Eric. The Very Hungry Caterpillar. Burbank, CA: Buena Vista Home Entertainment, 2006.. Ele recorda de sua infância e os passeios que dava com seu papai pela natureza, e como costumava levantar as pedras para ver os pequenos animais que estavam escondidos. Esse gosto pelo pequeno e pela natureza, que se manteve ao longo de toda sua vida, ele tem sabido compartilhar em seus livros.

Ele fala sempre dos “três Es” que tem em conta ao fazer livros para os bem pequenos: emoção, educação e entretenimento.

E, assim, aqueles criadores que hoje fazem maravilhosos livros para crianças têm recordado sua infância.

Não queria deixar de mencionar o grande cuidado com que exploram os formatos, a grande beleza presente em suas imagens e a variedade de formas que adotam na representação da natureza: desde a homenagem mais sincera aos primeiros naturalistas até a estética mais inovadora.

Às vezes é uma obsessão, como a que teve a colombiana Luisa Méndez pelas cabras em um país onde não existiam e que lhe fez criar o divertido livro La cabra montés y yo [A cabra montês e eu],26MÉNDEZ, Luisa. La cabra montés y yo: una fugaz historia de amor. Zaragoza: Edelvives, 2018. em que fala da paixão que lhe levou a documentar e fazer o livro. Adrienne Barman trabalhou mais de três anos para juntar centenas de animais e inventar novas categorias para organizá-los. Seu trabalho veio à luz no livro Bestiário.27BARNMAN, Adrienne. Bestiario. Madrid: Libros del Zorro Rojo, 2014. Não sei se as categorias criadas são muito científicas, mas sem dúvida são divertidas e convidam a olhar, os tão estudados animais, de outra maneira.

Imagino as francesas Virginie Aladjidi e Emmanuelle Tchoukriel inclinadas durante horas, com suas aquarelas, desenhando as centenas de detalhes dessa obra que está a caminho de converter-se em enciclopédica (Kalandraka).

Tenho me perguntado muitas vezes como ocorreu aos portugueses Ricardo Henriques e André Letria fazer um “atividário” (atividade + abecedário) sobre o mar,28HENRIQUES, Ricardo; LETRIA, André. Mar: atividário. Lisboa: Portugal Pato Lógico, 2012. considerando a premissa de que “se o planeta tem mais água que terra, por que não se chama Mar”?

Também celebrei que a alemã Katrin Wiehle fez uns livrinhos para os pequenos em papel 100% natural. O resultado são livros de toque suave com fundo colorido da terra, o que não poderia ser melhor para livros sobre a natureza (Lóguez Ediciones).

Ou como de um tema aparentemente banal – os peixes – se pode fazer um livro tão incrível como o de Britta Teckentrup, Fish Everywhere [Peixes por todas as partes].29TECKENTRUP, Britta. Fish Everywhere. Massachusetts: Big Picture Press, an imprint of Candlewick Press, 2018.

E a quem ocorreu pensar no que um gato vê à noite?30IPCAR, Dahlov. The Cat at Night. Yarmouth: Islandport Press, 2009.

E… se ponha a imaginar… Como é a vida de uma abelha de primavera a primavera? (Zorro Rojo)

Nenhum livro pode superar a experiência de um passeio pela natureza. Escutar seus sons, os odores depois de um dia de chuva, tocar as folhas ou olhar uma árvore por baixo. No entanto, os livros informativos podem fazer com que um passeio pelo campo seja mais emocionante depois de os ter lido, pode estimular os sentidos de outra maneira: olham por nós, nos convidam a observar, nos dão emoções, aumentam nossa percepção do mundo e a tornam mais real e próxima. Tratam, inclusive, de capturar o inacessível, como o livro de Megan Wagner Lloyd e Abigail Halpin, Finding wild [Em busca do selvagem];31LLOYD, Megan W.; HALPIN, Abigail. Finding Wild. New York: Random House Children’s Books, 2016. recordemos que, algumas vezes, o selvagem está enterrado muito fundo, tanto que parece que o mundo inteiro está pavimentado, limpo e organizado.

Richard Louv, em seu ensaio Last Child in the Woods [A última criança na natureza],32LOUV, Richard. Last Child in the Woods. Algonquin Books, 2008. fala da terrível desconexão com a natureza das crianças de hoje em dia. Isso faz com que a idealizemos ou a temamos. Citando David Sobel, explica como a ecofobia está cada vez mais presente nos pequenos. Crianças que, durante o período escolarm, acumulam excesso de informação sobre a deterioração ecológica, assistem vídeos sobre incêndios florestais, indígenas deslocados pela indústria petroleira e recebem dados de como, durante seu recreio, se cortou mais de 4000 hectares de selva tropical para instalar gado que encherá seus pratos de hambúrgueres. Isso, segundo Sobel, criará dissociações nas crianças, cuja falta de experiência real na natureza fará com que a associem com o medo e o apocalipse em lugar da alegria e do espanto.

Os livros informativos podem ajudar a restituir o vínculo quebrado entre os jovens e a natureza. Diante do estudo escolar um tanto mecanizado, enfocado mais em memorizar que sentir, os livros informativos podem ser a via para sair disso: desde as hortas que não se tem até os pássaros que não se veem. Esses livros mostram a rica interação entre todos os elementos naturais enquanto seguem cultivando a curiosidade e o assombro.

Gostaria de me despedir com uma citação de Rachel Carson, considerada a pioneira da ecologia moderna. Uma mulher dedicada à ciência e a contemplação da paisagem, que adotou seu sobrinho quando esse ficou órfão e com ele, desde os 22 meses, explorou a natureza. A capacidade de assombro do menino diante dos fenômenos como a força das ondas, o cheiro do mar ou a escuridão da noite, a levou a refletir muito sobre nossas relações naturais com o entorno. Nesse simples texto, disse algo que me parece muito valioso em nosso contexto:

Para manter vivo numa criança seu inato sentido de assombro (…) é preciso a companhia de ao menos um adulto com quem ela possa compartilhar, redescobrindo, com ele, a alegria, a expectativa e o mistério do mundo em que vivemos.

E isto é justamente de que precisam os livros informativos que nos acompanham: um adulto que os coloque nas mãos das crianças e queira deixar-se assombrar e surpreender.

Tradução Lurdinha Martins


Imagem: Claire A. Nivola, do livro Plantando los árboles en Kenia.


Notas

  • 1
    A tradução deste poema pode ser encontrada em GOULD, Stephen Jay. Dinossauro no palheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
  • 2
    BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa (Volume único). Edição organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 675.
  • 3
    COMENIUS, Iohannes Amos. (Ilustrações de Paulo Kreutzberger). Madrid: Libros del Zorro Rojo, 2017. Uma tradução parcial para o português está disponível em: <https://tinyurl.com/y4veycoz>, acessado em: 15 set. 2020.
  • 4
    MASTRO, Pablo A. (Ilustrações de Ana Suárez). Madrid: A buen paso, 2018.
  • 5
    GARCÍA SÁNCHEZ, José Luis (Ilustrações de Miguel Ángel Pacheco). Madrid: Altea Ediciones, 1977.
  • 6
    PROVENSEN, Alice; PROVENSEN, Martin. The Year At Maple Hill Farm. New York: Aladdin Paperbacks, 1978.
  • 7
    BURNINGHAM, John. Seasons. London: Random House UK, 1987.
  • 8
    MARI, Iela. Las Estaciones / The Seasons. Madrid: Kalandraka Editora, 2007.
  • 9
    DUMAS, Philippe. Une ferme d’autrefois. Paris: L’École des loisirs, 2010.
  • 10
    PROVENSEN, Alice; PROVENSEN, Martin. Town & Country. San Diego : Browndeer Press, Harcourt Brace, 1994.
  • 11
    LEWIS, Patrick; INNOCENTI, Roberto. The House. Mankato (Minnesota): Creative Editions, 2009.
  • 12
    LEE BURTON, Virginia. The Little House. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2012 (1ª edição 1942).
  • 13
    MÜLLER, Jörg. Alle Jahre wieder saust der Presslufthammer nieder: oder: Die Veränderung der Landschaft. Aarau [u.a.] Sauerländer, 1977.
  • 14
    WAN-DOO, Kim; EUN-JIN, Ahn. Inventos inspirados en la naturaleza. Ciudad de México: Castillo, 2010.
  • 15
    NASSAR, Daniel J. El castor constructor y otros animales arquitectos (Ilustrações de Julio Blasco). Barcelona: Promopress, 2014.
  • 16
    BROWN, Ruth. Ten seeds. London : Andersen, 2010.
  • 17
    ANNO, Mitsumasa. Las semillas mágicas. México: Fondo de Cultura Económica, 2006.
  • 18
    ALONSO PEÑA, José-Ramón. Semillas: un pequeño gran viaje (Ilustrações de Marco Paschetta). Mataró: A Buen Paso, 2018.
  • 19
    WINTER, Jeannete. Wangari’s Trees of Peace: A True Story from Africa. New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2008.
  • 20
    NIVOLA, Claire A. Plantando as árvores do Quênia. São Paulo: SM, 2015.
  • 21
    MARTÍNEZ, Rocío. La historia del rainbow warrior / The Story of the Rainbow Warrior. Pontevedra: Kalandraka, 2008.
  • 22
    LLORCA, Francisco. Pequeños grandes gestos por el planeta (Ilustrações de Ana Bustelo). Barcelona : Alba, 2016.
  • 23
    SCOTT, Katie; WILLIS, Kathy. Botanicum: Welcome to the Museum. London : Big Picture Press, 2016.
  • 24
    LIONNI, Leo. Parallel Botany: Sculptures and Drawings. New York: Staempfli, 1977.
  • 25
    CARLE, Eric. The Very Hungry Caterpillar. Burbank, CA: Buena Vista Home Entertainment, 2006.
  • 26
    MÉNDEZ, Luisa. La cabra montés y yo: una fugaz historia de amor. Zaragoza: Edelvives, 2018.
  • 27
    BARNMAN, Adrienne. Bestiario. Madrid: Libros del Zorro Rojo, 2014.
  • 28
    HENRIQUES, Ricardo; LETRIA, André. Mar: atividário. Lisboa: Portugal Pato Lógico, 2012.
  • 29
    TECKENTRUP, Britta. Fish Everywhere. Massachusetts: Big Picture Press, an imprint of Candlewick Press, 2018.
  • 30
    IPCAR, Dahlov. The Cat at Night. Yarmouth: Islandport Press, 2009.
  • 31
    LLOYD, Megan W.; HALPIN, Abigail. Finding Wild. New York: Random House Children’s Books, 2016.
  • 32
    LOUV, Richard. Last Child in the Woods. Algonquin Books, 2008.

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  • Ana Garralón

    Ana Garralón trabalha com livros infantis desde finais dos anos 80. Colaborou como leitora crítica para muitas editoras, realizou oficinas sobre formação e incentivo à leitura e livros informativos em importantes instituições. Escreve regularmente na imprensa. Publicou Historia portátil de la literatura infantil, a antologia de poesia Si ves un monte de espumas e 150 libros infantiles para leer y releer (CEGAL, Club Kirico, 2012 e mais recentemente Ler e saber: os livros informativos para crianças (Pulo do Gato, 2015). É membro da Rece de Apoio Emília. É autora do blog http://anatarambana.blogspot.com.br/.

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