Agora é Road Dahl. E agora?

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Eu queria escrever um texto para todos. Não apenas para aqueles que conhecem a literatura infantil. Portanto, ainda que Dahl seja uma espécie de papa na área, vou começar explicando quem ele é. Autor nascido no País de Gales, de ascendência norueguesa, Roald Dahl foi piloto de guerra, passou boa parte de sua vida nos Estados Unidos e ganhou notoriedade como escritor de literatura voltada às crianças e aos jovens. São dele os conhecidíssimos Matilda e A fantástica fábrica de chocolates, e os igualmente divertidos e irreverentes: Os pestes, BGA – o bom gigante amigo, As bruxas, entre outros títulos deliciosos, quase sempre recheados por certa dose de malícia e pertencentes a uma linhagem literária que considera a criança como interlocutora inteligente, capaz de compreender sofisticadas figuras de linguagem como é o caso da ironia, uma constante em suas obras.

Por isso mesmo, saber que alguns de seus livros sofrerão mudanças nos causa desconforto (faço coro a algumas opiniões), principalmente porque o politicamente incorreto faz parte do estilo desse autor, é sua marca registrada. Dói saber que suas obras terão trechos modificados e dá vontade de dizer, em alto e bom som: ah, não, o Dahl, não! Dá para deixá-lo em paz – ele e sua irreverência – por favor? 

Não gostamos de censura. Mas sabemos que a própria literatura infantil nasce (também) no bojo de movimentos, podemos dizer, aliados a algum tipo de censura, cerceamento e controle. Afinal, a partir do momento em que nós, adultos, escolhemos o que as crianças podem ou devem ler ou não, já não estamos de certa forma exercendo censura e controle?  Talvez por isso mesmo a literatura infantil vive às voltas com a censura, entrando e saindo de sua mira. 

É preciso todo cuidado na hora de escrever, editar e selecionar o que as crianças lerão, tendo sempre a consciência de que “somos todos censores”, de algum modo, e de que nosso olhar está sempre contaminado por algo que achamos que as crianças devem ou não ter acesso, como escreveu o professor canadense Perry Nodelman. 

Em se tratando da seleção e recepção das obras, penso que o melhor, sempre, é ter mediadores e selecionadores de livros muito bem formados. Assim, amplia-se tanto o leque dos critérios utilizados nas escolhas como a qualidade de mediação de leitura. Quanto mais bem formados os mediadores, maiores possibilidades terão de trazer assuntos delicados e polêmicos à baila quando necessário, situando a escrita em seu tempo, ouvindo os leitores a respeito de suas impressões sobre a obra e, se for o caso, sobre a presença de termos considerados controversos, por exemplo. Ou seja, realizar a leitura como uma espécie de mediação com rodapé, sem que precisemos interferir esteticamente na obra, e ainda com chances, inclusive, de formar leitores mais críticos. 

Contudo, fazer tal proposta é algo delicado, pois se nem sempre contamos com a formação e a sensibilidade dos mediadores, também não sabemos como certos termos “tocam” cada leitor (mesmo acompanhados de uma discussão), sobretudo no caso daqueles que podem sentir-se ofendidos por tais expressões. 

Reforço que não concordo com a extinção de palavras como “gordo”, “feia”, “louco” e “desequilibrado” entre outras, e muito menos com a inserção de explicações e termos neutros nas obras de Dahl, interferindo esteticamente na obra. Além disso, é no mínimo arriscado mexer em obras de autores que não estão mais por aí. Todavia, penso que também é preciso ter humildade em discussões desse tipo. Ouvir o outro lado e refletir bastante. Pesar argumentos na balança. Não sei se há uma posição absoluta, que sirva a todos os livros, embora minha tendência pessoal seja a de não mexer nas obras clássicas (considerando-as como aquelas que continuam tendo o que nos dizer, e que, portanto, ainda merecem chegar aos leitores). 

Não obstante, foi lendo Perry Nodelman que passei a considerar outros ingredientes para o caldo dessa discussão. O exercício de colocar-se no lugar dos outros leitores é essencial na hora da seleção e edição. É preciso empatia e generosidade. Se a mim, esse ou aquele termo ou expressão não tocam, especialmente, como é para o outro? Como ele se sente? O que vive? É preciso um comprometimento com os leitores em toda a sua diversidade, com aquilo que são, conhecem e vivem. E às vezes, a partir dessa reflexão, podemos de fato relativizar obras até então consideradas clássicas – aquilo que elas tinham a dizer ainda vale e é maior do que o potencial “ofensivo”, digamos assim? Nesse movimento, é saudável questionar o cânone e, desse modo, é provável que muitas obras percam a importância que tiveram no passado. 

A literatura é o terreno em que podemos nos colocar na pele do outro. O convite é sempre esse, não é? Devemos aceitá-lo também na hora de selecionar, mediar e editar os livros, em especial para os leitores em formação.

No entanto, há outra questão. E aí, é preciso dosar muito bem os ingredientes para a receita não desandar.  Não devemos transformar a literatura infantil em algo asséptico, aceitando a ordem e a pauta do dia, obedecendo a imperativos sociais e à praga do politicamente correto, que amputa obras, tornando-as insossas para o leitor, quando o que ele merece, no contato com os textos literários é viver uma experiência estética, ser tocado pelo livro, encantar-se e sentir aquela história circular em suas veias. Algo que certamente se consegue no encontro com a totalidade daquela forma literária inventada por alguém. 

Cuidar do que vai ser lido não é “encaretar” escolhas literárias ou livros, como parece ser o caso das alterações nos títulos de Dahl, fazendo seus livros coincidirem com certa chatice de um mundo sem arestas.  Cuidar é cuidar mesmo, analisando as obras e considerando que as crianças são leitoras diferentes dos adultos já formados, mas igualmente levando em conta que elas estão no mundo, com toda a sua complexidade, encarando o bem e mal todos os dias, fora e dentro de si. E assim, necessitam da literatura para viver e compreender as contradições e os impasses que são parte de toda a existência. 

Não devemos nunca omitir assuntos considerados espinhosos e difíceis, nem retirar ou modificar personagens demasiadamente humanos, a ponto de serem incômodos (como foi, em vida, o próprio autor Roald Dahl, ao assumir posturas antissemitas – isso já abre outra discussão: a pessoalidade do autor invalida suas obras?). No mais, é preciso lembrar e confiar no fato de que praticamente tudo pode ser dito às crianças, atentando sempre para a forma como se diz. E nessa forma, é certo que podemos – ou melhor, devemos, posto que é criação artística – ousar, desobedecer, surpreender e encantar, como soube fazer tão bem o Roald Dahl.

Em tempo: o livro do Perry Nodelman citado é: Somos mesmo todos censores?, Editora Solisluna e selo Emília.

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  • Ana Carolina Carvalho

    psicóloga (USP) e mestre em Educação, Linguagem e Arte (Unicamp). Formadora de educadores pelo Instituto Avisa Lá e CE CEDAC. Assessora na área de leitura em redes públicas, escolas particulares e editoras. Membro da Equipe Destaques Emília e do Grupo de Trabalho de Novos projetos.

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