As bibliotecas, lugares para ouvir, falar e dialogar

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genevieve@emilia.com Patte Geneviève Patte

Cortesia Petite Bibliotèque Ronde

A biblioteca é um lugar onde o gesto social de ouvir adquire seu pleno significado. Com facilidade esquecemos que “falar” só tem significado quando alguém está ouvindo, e que ouvir é uma maneira de interagir com outras pessoas, não apenas uma questão de recepção passiva. Acrescento que, para mim, ouvir é talvez a tarefa mais interessante da profissão bibliotecária.

Meu desejo de viver a biblioteca pública para crianças e jovens nasceu na rua. Passeando com um amigo, eu descobria Paris. Eu vinha da minha província, Poitiers, e tudo me parecia interessante. Eu adorava o Bairro Latino, tão cheio de vida. Através de uma janela iluminada, testemunhei uma cena que me marcou: um grupo de crianças, em uma grande sala cheia de luz, muito ocupadas com suas coisas. Isso me surpreendeu porque não parecia uma sala de aula nem um centro de recreação. Não havia grupos organizados, e os dois adultos presentes não estavam vigiando as crianças. Eles estavam simplesmente disponíveis para ouvi-las e conversar com elas. Fiquei completamente seduzida e no dia seguinte voltei. Queria saber tudo sobre este lugar surpreendente. As duas bibliotecárias, Marguerite Gruny e Mathilde Leriche, se deram ao trabalho de me explicar em detalhes do que se tratava: ajudar as crianças a viverem pessoalmente o seu caminho de leitoras; acompanhadas e ouvidas na biblioteca, as crianças descobriam uma vida social incomum. Isso me apaixonou, e imediatamente tomei a decisão: seria bibliotecária infantil. Vendo meu entusiasmo, eles me ofereceram um longo estágio. Vi como a escuta mútua ocupava um lugar central na biblioteca.

Com essa primeira experiência, senti que a escuta do outro poderia me alimentar, que sem essa escuta, não poderia exercer minha profissão: eu escuto e sou escutada.

Foi isso que praticamos na Pequena Biblioteca Redonda (La Petite Bibliothèque Ronde), não mais no centro de Paris, mas em um de seus subúrbios, em Clamart. Nos anos 1960, quando as crianças deste bairro popular descobriam a biblioteca, ficavam surpresas com a recepção muito diferente do que vivenciavam nas escolas tradicionais. Na biblioteca, nós nos dirigíamos a elas pessoalmente: eram ouvidas e reconhecidas em um encontro pessoal que as convidava a se expressar, a dizer o que gostavam, o que buscavam, a compartilhar suas curiosidades. Não havia temas proibidos. Esse diálogo nos ajudava a aconselhá-las de forma eficaz. Um dia, uma criança me disse: “Eu gosto da biblioteca porque os bibliotecários estão sempre de pé”. Para ela, isso significava que estavam disponíveis. As crianças estavam no centro, os bibliotecários não deixavam de responder a qualquer momento, seja para acompanhar uma criança ou simplesmente para compartilhar uma história. O mais importante era que se preocupavam em ouvi-las.

Cortesia Petite Bibliotèque Ronde

Quando se tratava de ajudá-las a encontrar os livros que poderiam interessá-las, a necessidade do diálogo era evidente. Precisávamos conhecer suas preferências: o que as apaixonava, a fim de convocar sua inteligência e satisfazer seu desejo de ler. Não éramos meras distribuidoras de livros. Não éramos simples caixas registradoras de livros. Para nós, o mais importante era, e ainda é, despertar o gosto e o desejo de leitura. Ser ouvidas era um sinal de consideração que as crianças apreciavam. Se precisavam, nos aproximávamos das estantes de livros e ali as aconselhávamos. A delicada e desafiadora tarefa de transmitir a singularidade dos livros que estávamos recomendando era nossa responsabilidade. Conversar assim, levando o tempo necessário, nos aproximava maravilhosamente das crianças, mas também das pessoas ao redor delas: os pais e os avós. Conversávamos naturalmente sobre temas e experiências recentes. Ouvindo uns aos outros, emergia uma cultura familiar que todos desfrutavam. Essa encantadora maneira de estarmos juntos estava claramente presente na biblioteca.

E quanto às crianças e jovens que não tinham coragem de atravessar a porta da biblioteca? A gente se perguntava como chegar a eles para que pudessem desfrutar da riqueza da biblioteca e encontrar seu lugar da melhor maneira. A biblioteca então saía para a rua. Íamos procurá-los nas ruas ou praças do bairro, com nossos cestos cheios de livros. As crianças e os jovens esperavam nossa chegada. Mal tínhamos terminado de montar os livros, e eles já estavam prontos para nos ouvir ler em voz alta histórias que descobriam com grande interesse. Apesar das dificuldades, nos esforçávamos para manter a regularidade. A chuva e a neve muitas vezes nos obrigavam a ir de porta em porta, e esses momentos também exigiam o tempo para o diálogo. Uma das riquezas do trabalho realizado em Clamart era, justamente, escolher estar onde não éramos esperados: na rua, nas casas, conversando com todas as pessoas. Priorizávamos a surpresa, o inesperado e, acima de tudo, o assombro.

Na minha vida como bibliotecária, ouvir me permitiu descobrir a riqueza de muitas pessoas, independentemente de sua condição social. Ouvir aqueles que não tinham tido voz, os excluídos de nossas sociedades, representa, em minha opinião, um dever da biblioteca e uma questão de justiça. As pessoas esquecidas apreciam e precisam ser ouvidas. Ouvir é também uma tarefa central do nosso ofício.

Nesse sentido, gosto de lembrar da personalidade de uma bibliotecária que me ensinou muito. Aos 22 anos, viajei aos Estados Unidos por dois anos graças a uma bolsa Fulbright. O lugar que escolhi para minha estadia foi a prestigiosa Biblioteca Pública de Nova York, e lá conheci uma bibliotecária chamada Emma Cohn. Ela trabalhava no Bronx, um bairro de má reputação, conforme os taxistas me faziam entender, duvidando em me levar. Lá, Emma estava encarregada de uma biblioteca para adolescentes. Parecia ser um trabalho especialmente difícil, mas ela havia aceitado essa missão da Biblioteca Pública de Nova York.

Graças a ela, descobri a melhor maneira de dar vida a uma biblioteca. Emma tinha interesse por tudo e amava seu bairro e sua gente. Ela pedia aos jovens que a apresentassem ao que, para eles, era interessante no bairro. Ouvidos, esses jovens se sentiam reconhecidos e respeitados. Assim, Emma soube que uma das pessoas importantes para eles era o cabelereiro, porque ele tinha tempo para ouvir e conversar. Ele era um verdadeiro “agente cultural” que encontrou facilmente seu lugar na biblioteca. Foi convidado a se encontrar com os jovens. Participar, ouvir uns aos outros nesses encontros, permitiu a compreensão dos temas e interesses que poderiam uni-los. A biblioteca se tornava, assim, um lugar de vida.

Na minha infância, tive uma experiência semelhante graças a um sapateiro. Isso não está diretamente relacionado às bibliotecas, mas trata-se igualmente do prazer de ouvir. Morávamos em uma rua modesta na velha Poitiers. Este sapateiro vivia em um pequeno casebre de madeira no topo da rua. Costumávamos passar tardes inteiras ouvindo-o e desfrutávamos muito disso. Falar com a gente não o impedia de trabalhar, continuava usando seu martelo para pregar pregos em solas velhas. Ele estava atento a tudo o que acontecia no bairro e nos contava. Era como o jornal do bairro. Estávamos na época da guerra, em uma zona ocupada. Sua rua era do lado do quartel e de sua oficina víamos o ridículo desfile da troca regular de sentinelas, marchando em passo de ganso. Nos divertíamos com o espetáculo e zombávamos disso. Com um olho na rua, nosso amigo sapateiro podia dizer quem aparentemente mostrava ou não simpatia pelos que ali estavams. Gostávamos de ouvi-lo quando falava sobre a “Menina Delvard”, que não parava de insultar, em alemão, os soldados que passavam. “Uma grande colaboradora”, dizia ironicamente. Somente no final da guerra conhecemos sua história. Uma vida de artista, fora do comum; uma celebridade na Alemanha e em Viena. As palavras deste sapateiro nos fascinavam, não é difícil entender por que seu filho se tornou, anos mais tarde, um jornalista.

Em Clamart, preocupávamo-nos em promover encontros e trocas. A biblioteca não “acolhia grupos”; ela dava as boas-vindas a pessoas com suas perguntas e desejos de aprender. 

Sabíamos que nossa capacidade de ouvir demonstrava um verdadeiro respeito pelas crianças e jovens. Era uma disponibilidade que promovia o diálogo e lhes permitia encontrar um lugar ali. Isso os incentivava a ir mais longe. Tornavam-se ainda mais curiosos e sentiam uma verdadeira sede de conhecimento, depois tornavam-se leitores. A palavra, em suas diversas formas, os tocava, os comovia. Uma jovem bibliotecária que fazia estágio com a gente expressou isso assim: “A biblioteca tem alma”, disse ela. Falava da nossa preocupação em estimular a inteligência e motivar o pensamento.

Cortesia Petite Bibliotèque Ronde

Para estimular a curiosidade de crianças e jovens, a biblioteca convidava pessoas que se gostavam a compartilhar suas experiências reais. As crianças demonstravam um profundo interesse pela pré-história, e sabíamos que alguns queriam saber tudo sobre os dinossauros. Foi assim que concordamos em convidar um paleontólogo do Museu de História Natural de Paris, que soube ouvi-los e falar com eles com franqueza. Ele estava realmente comovido com a inteligência das crianças e me dizia o quanto era bom para ele ouvi-los, pois suas perguntas ingênuas tocavam o cerne das questões essenciais.

Meu pai, que também era paleontólogo, foi outro de nossos convidados. Ele ficou comovido com as perguntas das crianças e soube chegar nelas quando recordou o entusiasmo dos primeiros seres humanos ao verem pela primeira vez uma faísca brotar ao friccionar duas pedras de sílex. As crianças o ouviram com paixão. Uma menina veio até ele no final e perguntou: “Senhor, por que você sabe tanto?” Ele respondeu: “Porque sou curioso” e a convidou a ser tão curiosa quanto ele.

A biblioteca é um lugar onde se escuta. Ouvem-se as histórias que os livros nos contam, ouve-se as pessoas de todas as idades que vêm descobri-las. Até mesmo ouvem-se aqueles que na rua não têm coragem de entrar na biblioteca. Sem essa disposição, não há diálogo possível. O “dizer” é apenas uma parte e, com facilmente, pode se tornar um simples monólogo. O que a escuta nos oferece é a abertura para a conversa, um diálogo no qual criamos e recriamos as possibilidades de “ter muito a dizer uns aos outros”.

É precisamente esse aspecto que me levou a escolher a profissão de bibliotecária, que nunca me decepcionou.

Cortesia Petite Bibliotèque Ronde

Texto publicado originalmente na Revista Jardín LAC. Disponível em: <https://www.jardinlac.org/post/las-bibliotecas-lugares-para-escuchar-decir-y-dialogar>. Acesso em: 16 out. 2023.

Tradução: Dolores Prades

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  • Geneviève Patte

    Formou-se como bibliotecária na França, Munique e Nova York; especializou-se em literatura infantil e atuou como consultora em vários projetos internacionais de promoção da leitura. Por 35 anos, ela liderou a associação La Joie par les Livres, que foi responsável pela criação da Revue des Livres pour Enfants, contribuindo para o desenvolvimento das bibliotecas para crianças e jovens na França. Atendendo a pedidos de organizações internacionais, ela organizou os primeiros seminários internacionais sobre bibliotecas para crianças e jovens em regiões em desenvolvimento (Leipzig, 1981; Caen, 1990; Bangkok, 1999). Indicada ao Prêmio Astrid Lindgren. Geneviève Patte também é autora de numerosos livros, incluindo Deixem que leiam (2008), editado no Brasil pela Editora Rocco em 2012 e ¿Qué los hace leer así? Los niños, la lectura y las bibliotecas (2011).

    genevieve@emilia.com Patte Geneviève Patte

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