O dia do livro, Monteiro Lobato e a formação de leitores na escola

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Antes de mais nada, é preciso dizer que esse artigo sofreu modificações em relação à sua primeira versão. O disparador de tão precoce revisão, poucas semanas após a primeira publicação, foi um comentário de Heloísa Pires Lima nas redes sociais da revista Emília. Ela apontava a presença de ambiguidades no texto. Ainda que não tenhamos nos aprofundado na conversa, esse simples comentário me fez voltar ao artigo, revendo-o e reescrevendo certas passagens. Agradeço demais a crítica. É dela que sempre precisamos – e não dos elogios – porque nos faz repensar nossos caminhos.

No dia 18 de abril comemora-se o Dia Nacional do Livro Infantil. Nesta mesma data, há 141 anos, nasceu o escritor Monteiro Lobato, em Taubaté, cidade paulista situada no Vale do Paraíba. Buscando homenagear esse importante escritor, considerado por muitos o pai da literatura infantil brasileira, e procurando incentivar a leitura na infância, instituiu-se a data desde 2002, por meio da aprovação da lei 10.402/02. Um tanto afeita às datas comemorativas, mas também tentando responder a uma de suas principais funções, que é formar leitores, as escolas, de modo geral, encamparam o dia 18/04, procurando realizar toda uma sorte de comemorações em prol do livro e da literatura infantil.

Pelas redes sociais, pude acompanhar o que se passou em muitas escolas brasileiras, de norte a sul do país. Minha timeline ganhou uma movimentação diferente: professoras transformadas em Emílias, Donas Bentas, Narizinhos e tias Nastácias. Professores fantasiados de Pedrinhos, Viscondes e tios Barnabés passavam pelas telinhas do computador e do celular. Em praticamente todas as fotos que vi, as crianças estavam sentadinhas, assistindo à performance dos educadores. Fiquei pensando nisso e no mal-estar que gerou em mim se comemorar o Dia Nacional do Livro Infantil dessa maneira. As razões são variadas. Vamos a elas.

É preciso mesmo um dia do livro?

Sim, muitos poderão dizer: “para que se valorize o livro, para que todos se lembrem que ele deve fazer parte da infância e estar presente nas escolas”. Se as razões são as citadas, é preciso que todos os dias sejam o dia do livro, para que se valorize, para que faça parte da infância e da escola. Todos os dias. Sem exceção. E não apenas em uma data específica, como tantas vezes observamos que acontece com as efemérides.

O problema das datas comemorativas é que elas são perigosas quando funcionam como prisões, encarcerando naquelas 24 horas ou naquela semana, ou, na melhor das hipóteses, naquele mês, o que deveria estar presente cotidianamente. Então, se lê, mas se lê naquele dia, naquela semana, naquele mês. E depois… ou antes… bem… lemos, mas nem sempre dá tempo.

A leitura é uma atividade acumulativa. Quanto mais lemos, quanto mais compartilhamos a leitura com outros leitores, mais e melhores leitores nos tornamos. A leitura é atividade dependente, nunca isolada. Todo leitor depende do que já leu para ler melhor, do que lhe indicam para ampliar o que lê. A leitura é atividade diária e coletiva. E se a escola deseja mesmo formar leitores, todo mundo que está ali precisa ler com muita frequência, compartilhando ações que leitores costumam fazer, forjando um clima de comunidade (todos unidos em torno de algo comum) de leitores.

Talvez a função do dia do livro não seja apenas dar a ler, mas principalmente nos lembrar de que livro é direito, algo que não pode ser esquecido, algo importante para todos, sem exceção, e justamente por ser tão importante, ganhou um dia só para ele. Está certo, pode ser que isso se justifique, mas apenas como marco, a partir do qual se desenrolariam ações reais e frequentes em prol do livro e da leitura, tendo, certamente, como foco e objetivo maior a formação das crianças leitoras. E será que isso está, de fato, garantido nas escolas? Se estivesse realmente garantido, faria sentido uma festa nos moldes das que costumamos ver?

Eu não vi, dentre as fotos que recebi desse Dia Nacional do Livro Infantil, uma única imagem de livros nas mãos das crianças. Também não vi os livros. Talvez tenha visto sim um exemplar ou outro de um livro de Lobato, mas sempre nas mãos de um adulto.

O que vi com certeza foi uma comemoração voltada, na realidade, para Lobato e as personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo. E com muito mais referências ao programa televisivo, com sua música de abertura (por sinal, muito bonita, composta por Gilberto Gil), e imagens mais ou menos estereotipadas enfeitando o cenário das muitas e muitas dramatizações encenadas por adultos nos pátios das escolas de nosso país.

Não quero com isso tirar a importância que o Sítio do Picapau Amarelo teve para muitas e muitas infâncias (a minha incluída). Cenas assistidas diariamente ficaram gravadas em mim e, posso imaginar que em muitos outros adultos, professores obviamente incluídos nesse grupo de pessoas que experimentaram o faz de conta do sítio todos os dias em frente a uma televisão. Podemos ter afeto por aquela paisagem, aquelas personagens, as histórias daquele mundo encantado.

Não posso afirmar por todos, mas sei que muitos adultos da minha geração e de gerações mais novas – aqueles e aquelas que são hoje professoras e professores – conheceram mais o Sítio da televisão (um tanto modificado, aliás, tendo sido retiradas as passagens polêmicas, equivocadas e, verdade seja dita, racistas) do que o Sítio dos livros, razão pela qual também me parece estranho atrelar a comemoração a tal obra de Lobato.

Se há que se ter um dia do livro, em que data?

A essas alturas, você, leitor ou leitora, pode estar se perguntando: mas não foi o Lobato o grande inovador da literatura infantil brasileira? E o Sítio, essa obra monumental, não tem mesmo grande qualidade literária? Não se trata aqui de diminuir a importância da obra e do autor. Sim, Lobato representou uma guinada na literatura infantil.

Mas em seus textos também encontramos passagens que, digamos novamente a verdade, não gostamos nem um pouco de ler para as crianças (e talvez, de fato, não devêssemos ler…). A um só tempo, foi um escritor inventivo e ferino, cruel em seu racismo. E uma coisa é certa: isso nós não podemos mais negar, ou fingir que não está ali, que não se percebe. Essa é uma discussão necessária a se fazer com todos os professores brasileiros. Sem exceção. Não podemos mais enaltecer sem críticas, nem ler Lobato hoje como era lido quando publicou seus livros, ou mesmo anos depois.

Pessoalmente, não acho que Lobato tenha de ser cancelado e seus livros esquecidos, negados ou censurados. Mas, antes de tomar a decisão de lê-lo com as crianças, nós, educadores e mediadores de leitura, precisamos conhecer sua obra profundamente, lendo-a seriamente, criticamente. Para que saibamos com o que estamos lidando, e podermos escolher o que fazer com isso: ler ou não ler com as crianças. Aliás, sempre considerando que crianças são essas e como podem se sentir ouvindo ou lendo Lobato. Elas se sentirão representadas ali? De que maneira? O repertório literário delas é vasto o suficiente para que possam ter outras referências de personagens negros, por exemplo? Se, depois de tudo isso, a decisão for ler, é preciso que se pense como isso será feito. Sobre o que se conversará, como se poderá realizar a mediação, o que se deve considerar na leitura?

Comemorar o Dia Nacional do Livro Infantil na data de aniversário de Lobato pode ter sérias implicações. Uma delas é a mensagem que é passada e como educadores poderão compreender tal efeméride: a de que Lobato é O escritor da literatura infantil em nosso país. A alternativa para as crianças. O que deve ser lido, incondicionalmente. Inquestionavelmente. Quando justamente os tempos pedem reflexão, pedem posicionamento, pedem outras vozes e autorias. Pedem uma leitura crítica dessa obra (e de outras do nosso passado literário, que apesar de ter muitas qualidades, já não podem mais ser lidas da mesma forma que se lia outrora).

O posicionamento frente a uma obra do passado pode não só um conhecimento em relação a questões atuais e como elas incidem na produção literária, revelando concepções (por isso, urge conhecer os estudos sérios de pesquisadores que se debruçaram sobre Lobato e seus livros), mas também que se conheça muito do que tem sido produzido atualmente. Para comparar, para fazer escolhas e poder levar uma variedade de textos e autorias para as crianças. Porque ser leitor é também cotejar leituras, obras, autores, vozes e estilos. Quem são aqueles e aquelas que estão escrevendo para as crianças, e que certamente deveriam fazer parte de uma grande festa em torno do livro?

E as crianças leitoras?

Outra questão importante diz respeito ao protagonismo dos leitores em formação nesse tal dia do livro. Quem são os protagonistas? Para quem é a festa? Tudo o que acontece na escola deveria ter como foco verdadeiro as crianças, não é mesmo? Afinal, se não fossem elas nem teríamos a escola… Então, uma festa do livro deveria, de fato, revelar as crianças como leitoras.

Por falar nisso, o que é ser leitor? Nossos tempos também pedem que se encare de frente o fato de que os leitores se formam cotidianamente, lendo e sendo ouvidos enquanto leitores, nas conversas, nas trocas com os outros, nas práticas sociais e cotidianas de leitura. Escolhendo livros, indicando títulos entre si, interagindo e expressando suas impressões, estabelecendo relações entre as leituras. Um leitor se forma lendo, e lendo muito, acompanhado de uma boa mediação de leitura feita por outro leitor mais experiente (que deveria ser o seu professor ou professora).

Não dá mais para achar que uma dramatização do Sítio do Picapau Amarelo ou uma festa em torno de Lobato está contribuindo para formar leitores nas escolas. Muitas das crianças que estavam sentadas nos muitos pátios de escolas espalhadas pelo nosso Brasil ainda não têm acesso cotidiano e direto a livros de qualidade. Não têm dia do livro todos os dias, como deveriam ter. Como é, de fato, o seu direito enquanto estudantes e cidadãs. Mesmo aquelas que estão nas escolas que possuem um bom acervo de livros, com títulos de qualidade enviados por programas de distribuição de livros. Mesmo nessas condições, eu ainda vejo tantas vezes os bons livros fechados em armários e caixas, fora de uso, fora do alcance das crianças (embora, sabemos, há também muita coisa boa sendo feita em muitas escolas públicas desse país, no que diz respeito à formação de leitores, mas queremos que as boas práticas sejam generalizadas).

Um dia do livro? Faria mais sentido se as escolas pudessem comemorar uma festa de 50 bons livros lidos até aquele o dia escolhido para a comemoração, uma sessão simultânea de leituras, em que as crianças escolhem qual história lida desejam ouvir; um dia em que leitoras e leitores possam de fato comemorar a leitura presente em suas vidas.

Enquanto aquelas cenas passavam em minha timeline, eu percebi que ia ficando triste e melancólica diante daquela pretensa alegria, porque via ali muitos professores e professoras que não tiveram a oportunidade real de se formar como leitores e, assim, contribuir para que aquelas crianças também o sejam. Fiquei triste, porque aquelas cenas me contaram que o livro e a leitura ainda não são um direito garantido em muitas escolas. Bem ali, onde muitas crianças teriam a única oportunidade de encontro significativo com os livros. Então, percebi que aquele dia do livro me revelou que não há livros no dia a dia de muitas crianças. E de tantos professores e professoras.

Esse ainda é um assunto urgente em nosso país. Assunto que é responsabilidade de toda a sociedade, que exige comprometimento de diferentes esferas do poder público e de todos aqueles que trabalham nas escolas e em outras instâncias importantes, como são, por exemplo as bibliotecas, para que o dia do livro seja todo dia, para todos os adultos e todas as crianças.

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  • Ana Carolina Carvalho

    psicóloga (USP) e mestre em Educação, Linguagem e Arte (Unicamp). Formadora de educadores pelo Instituto Avisa Lá e CE CEDAC. Assessora na área de leitura em redes públicas, escolas particulares e editoras. Membro da Equipe Destaques Emília e do Grupo de Trabalho de Novos projetos.

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