As tecnologias nos contos de fadas

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delcio@emilia.com.br Teobaldo Délcio

As pedrinhas deixadas por Joãozinho, no chão da floresta, para sinalizar a ele e à irmã Maria a volta segura para casa, seriam um Protótipo de Baixa Fidelidade do atual sistema de posicionamento global (GPS)?! Por que não? Ora, assim como, pelos séculos dos séculos, os contos de fadas têm transmutado a realidade em fantasia; sem perder o fluxo, na mesma vibe (pensei usar aqui a palavra dinâmica, mas vibe é mais adequada ao tema), as novas tecnologias comprovam que, hoje, quaisquer fantasias podem se tornar reais.

Sonhos prototipados, num mundo onde, sem dúvida, o “Abre-te e o fecha-te Sésamo!” de As Mil e uma Noites, assim como o Tapete Voador, eram Protótipos de Alta Fidelidade das senhas de comando de voz e dos drones tripulados. Seriam os hieróglifos, emojis? Seria o desafio “Deciframe ou devorote?”, da Esfinge de Tebas, a senha derradeira que daria ao usuário o acesso seguro ao pluriverso da Internet? Por que não?

A partir dessas evidências, proponho as releituras, tão urgentes, quanto necessárias, dos contos de fadas sob a ótica das tecnologias. A troca é justa: se, através dos contos ancestrais, herdamos a fantasia e, dela, extraímos a força e a possibilidade de sonhar acima e muito além do óbvio, nada mais compatível que, pelo bem do próprio bem desta geração, sejam respeitados seus ideogramas, tanto quanto deve ser mantida a reverência à oralidade, onde o contos foram gerados e ao abecedário, que os mantém vivos e interessados.

Esse respeito, reverência e reconhecimento se baseiam, logicamente, em perpetuar o “quem conta um conto aumenta um ponto”, pois a fantasia é um alinhavo sempre pra frente. Ascendente. Transcendente. O respeito, reverência e reconhecimento se baseiam, também, no compromisso de continuarmos conjugando o verbo ser no passado, pois sempre foi e será “Era uma vez…”, não importa o deslumbramento pelas belezas do presente, porque a criação e a fantasia sempre estarão (devem estar!) a um passo da realidade, não importa se os avanços da Tecnologia da Informação (TI) nos coloquem, diariamente, no ventre do seu admirável assombro novo.

Nesses tempos em que o fantasma da Nomofobia ronda corações e mentes e amplia a lista de doenças a que estão vulneráveis os que têm medo irracional de ficar sem o celular ou quaisquer meios de interação e compartilhamento, nada mais saudável e sensato que amenizar danos num mergulho ao mundo do “Era uma vez…” (Re) imaginar, experimentar, fazer contrapontos, um exercício que, seja aplicado à música ou às partilhas cotidianas, sempre harmoniza. Enriquece. Oxigena. Poderia, para isto, utilizar, como reconto, a tela do smartphone, associando-a à deslumbrante Toca do Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll… Ou, quem sabe, invocar Kobold, o duende que habita as minas. O demônio brincante que, se não for respeitado, enlouquece tanto aqueles que se aventuram pelo coração da terra, sem lhe pedir licença, quanto os que vivem na superfície.

Seria um caminho seguro a seguir, afinal, Kobold e Cobalto, o minério azulado que sai das minas da República Democrática do Congo para alimentar as empresas fabricantes de celulares, são sinônimos. Estaria Kobald, fazendo valer sua natureza mágica, atazanando o cotidiano dos usuários de celulares que, além de o ignorarem, sequer o agradecem, pelas maravilhas que essas ferramentas, simples artefatos da metalurgia, acrescentam às suas vidas? Os celulares estão sendo manuseados de maneira afetiva e cuidadosa, como Kobold exige, seja utilizado o minério que ele fornece ao bem estar lúdico e para otimizar as relações humanas? Hem?

Bom, aqui caberiam todas as perguntas e especulações possíveis, mas vou me limitar ao reconto do clássico João e Maria (Hansel e Gretel), dos Irmãos Grimm. Não há motivo especial, mas como iniciei o artigo falando do conto, ensina a boa norma da oralidade, uma vez puxado, não se deve soltar o fio da meada. Então…

Partindo do princípio que, na tentativa de reencontrar o caminho de volta à casa dos pais, Joãozinho antecipou em centenas de anos a criação do GPS, podemos afirmar, sem receio algum, pois somente a fantasia se permite contrariar a Rosa dos Ventos, que a Casa de Doces da Bruxa Ranheta era um gigantesco smartphone. Afinal, quem resiste ao desejo de saborear (não se esqueçam que sabor e saber possuem o mesmo radical latino, sapere), tocar, provar, experimentar o alcance, os recursos de um tablet, ou de um celular, achados numa floresta?

Foi o que Joãozinho e Maria fizeram, devorando a casa da Bruxa Sinistra. E por que ela era cega? Ora, ora, mesmo sabendo o que é Nomofobia, todos os fabricantes de celulares, assim como a Bruxa Cabulosa, também, não fazem vista grossa, fecham os olhos ou se fingem de cegos diante disso? E para fechar este reconto, vamos desfazer, definitivamente, o enredo em que Joãozinho era o protagonista da história ou que a Bruxa Carcereira planejava comê-lo, após a engorda. O que ela queria, realmente, era ter o domínio da senha digital de Joãozinho para, a partir dela, navegar no mundo virtual. Vasto. Ilimitado. Sem vassoura voadora. Livre. Leve. Solta. Por isso, semanalmente, verificava se o menino havia “engordado”, se estava no ponto, ou melhor, empanturrado de guloseimas e satisfeito, a ponto de oferecer-lhe a senha digital. Não fosse esta a intenção ou a verdade, que explicação pode ser dada ao ato de avaliar a engorda de alguém, com a ordem bizarra: “Mostre-me o dedo!”?

Mais surreal, impossível, mas é do improvável que se alimentam as fantasias…


Selo suíço, João e Maria, 1985

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  • Délcio Teobaldo

    Educador, escritor, jornalista, documentarista, etnomúsico, autor-roteirista de televisão e cinema. Autor do romance Pivetim (prêmios Barco a Vapor; APCA, finalista Jabuti), é também articulista dos jornais O Dia, Jornal do Brasil e do site “Observatório da Imprensa”, publisher da Kabula Arts and Projects (UK/BR), e produziu e dirigiu Morre Congo, fica Congo (2001), os festivais 16th The International Documentary Film Festival of Marseille (FR) e o VI Festival Latino Americano Havana” (2005).

    delcio@emilia.com.br Teobaldo Délcio

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