As vozes narrativas e as coisas reais

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carolinafedatto@emilia.org Fedatto Carolina

Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver, cheira cachorro
Os humilhados do parque
com os seus jornais

(Alucinação, Belchior, 1976)

O que é um narrador? O que são as vozes na literatura? Nos estudos da linguagem em geral, na linguística e na teoria literária, há muitas formas de conceber, descrever e teorizar esses elementos fundantes da narrativa. Mas como leitores – meros leitores – dão de encontro com essa questão? Como o problema de quem fala em uma narrativa aparece para o leitor? Quando a gente começa a se questionar sobre os pontos de vista que fazem nascer uma história? Quem conta, afinal? E como sentir a presença dessa voz ou dessas vozes? E que diferença isso faz?

Muitas vezes temos nomes e características declaradas e marcantes para o narrador. Uma história pode ser narrada por alguém que diz “eu”, por um dos personagens, por alguém que só observa ou vê tudo à distância. Uma história pode ser contada por um único ponto de vista ou por vários. Eles podem ser contraditórios, dissonantes, confusos. Ou unívocos, complementares, encaixados. Os arranjos dependem do gênio do autor, da força que a história toma pela forma como é contada.

Primeira ou terceira pessoa, narrador-personagem, observador ou onisciente: muitos são os nomes. Mas mais do que saber identificar os tipos de narrador, é interessante pensar quando nós, leitores, nos deparamos com essas tais vozes. Quando é que a gente se dá conta de que elas existem? Como é que a gente entende que quem conta faz a história existir, que sem narrador não tem enredo, não tem personagem, tempo ou cenário, causa, ação nem conflito?

A gente sabe que tudo isso está no currículo escolar, mas sabe também que a formação do leitor crítico ultrapassa e muito o tempo passado na escola. E um leitor se faz não só pela racionalidade, pela análise, pela teorização, mas também pela experiência, pelas sensações, pelas conversas jogadas fora. Se o direito à literatura já foi há muito reconhecido como um direito humano, damos um passo adiante em sua concretização quando lemos ao longo da vida diversos tipos de texto e em companhia de pessoas diferentes. Ler e conversar sobre as leituras é um ato de ousada despretensão.

Nos encontros do clube de leitura Estantes Prediletas experimentei a força do encontro entre o leitor e as vozes narrativas. O grupo vinha há um tempo conversando muito livre e afetivamente sobre livros complexos, tocantes, diversos e plurais. Num clube fala-se de tudo: da entrada e do ritmo de leitura, do que agradou, do que não sai da cabeça, dos grifos, dos afetos, das memórias, das incompreensões… Falávamos justamente das dificuldades: precisei voltar várias vezes, não terminei o livro, nem comecei a ler, quem conta essa história?, não entendi, acho que é isso… Então, alguém traz a questão das vozes para a roda. E uma discussão muito forte e sofisticada começa aprofundando um olhar sobre a emergência desse achado: como a gente descobre o efeito, o papel, as consequências do narrador ser este ou aquele, assim ou assado?

Uma oportunidade de perceber isso sem didatismos e grandes explicações conceituais talvez seja ler textos a várias vozes e ler em grupo, em roda. Há muitos deles e para todos os perfis leitores. Passear por essas diferenças pode ser uma experiência importante para entendermos algo que ultrapassa as teorizações e acontece no tête-à-tête entre os livros e os leitores.

Os livros ilustrados, por exemplo, são mestres na arte de conduzir narrativas a muitas vozes: pela palavra, pela imagem, pelo enquadre, pela materialidade do livro. Penso especialmente em livros como Ter um patinho é útil, da argentina Isol Misenta (Sesi-SP), um livro cartonado em forma de sanfona com dupla narrativa. Tendo as mesmas ilustrações dos dois lados do livro, o que muda são os narradores. De um lado, o menino encontra um patinho. De outro, o patinho encontra um menino. As cores e os pronomes oblíquos marcam a alternância de vozes e permitem a leitores ainda bebês perceberem que toda história tem versões. Outros livros, como Bárbaro, de Renato Moriconi (Companhia das Letrinhas), são escritos só com imagens e vão revelar seu narrador apenas nas últimas páginas. Na segunda leitura, esse narrador se evidencia já na capa, mas à primeira vista ele é um enigma. Há autores, como o inglês John Burningham, que desde os anos 1970 contam histórias pelo olhar da criança em contraponto com a perspectiva do adulto. É o caso do clássico Hora de sair da banheira, Shirley! (Cosac Naify) em que o texto verbal e as ilustrações à esquerda são margeadas por uma borda e trazem a fala hostil de uma mãe preocupada com a bagunça no banho e as imagens que ocupam coloridamente todo o quadro à direita narram as aventuras da garota na banheira que, pelo encanamento, passa por um lago, uma floresta, um castelo.

No campo da literatura endereçada a jovens leitores, podemos pensar na apaixonante polifonia que as narradoras de Lygia Bojunga colocam em cena. Em A bolsa amarela, de 1976, é Raquel quem fala, em primeira pessoa, mas, pela mescla entre realidade e fantasia, ela deixa falar e se deixa afetar pelos tantos personagens do livro: o galo Afonso, a Guarda-chuva, o Alfinete de Fralda e outros tantos companheiros que fazem pesar sua bolsa e engordam nosso jeito de pensar e viver. Já em A casa da madrinha, de 1978, a história dos encontros e desencontros entre Alexandre e Vera é contada em terceira pessoa por um narrador que não se distancia do ponto de vista das crianças. A diferença social é tematizada pelo viés infantil, com seus afetos ingênuos que denunciam contradições. Nos dois casos, os diálogos, tão característicos da obra de Lygia, são fortes e livres, ganhando, muitas vezes, autonomia em relação ao ponto de vista do narrador. Essa liberdade de falas multiplica as possibilidades de interpretação e identificação com os diversos aspectos da história, com versões a serem contrapostas, não com uma verdade a aceitar.

No caso do clube Estantes Prediletas, essa experiência com a diversidade de vozes narrativas é proporcionada tanto pela curadoria dos títulos quanto pela leitura de cada uma, singularmente, e pela roda de conversa, coletivamente. É conversando sobre os livros e nossas sensações de leitura que o entendimento e a vivência dos efeitos das vozes narrativas se fazem. A literatura é arte, não podemos perder isso de vista. “E ninguém sai de um encontro com a arte sem algum ganho emocional, estético, subjetivo ou cognitivo (ou todos eles juntos)”, diz María Emilia López.1Um mundo aberto, São Paulo: Emília, 2018, p. 57.

Teve quem desconfiasse da pungência cognitiva de Paloma, que, aos 12 anos, critica costumes sociais insensatos e se questiona sobre o sentido da vida em A elegância do ouriço (Muriel Barbery, Companhia das Letras). Houve quem se sentisse constrangido com a experiência dos personagens de Becos da Memória (Conceição Evaristo, Pallas) ou quem, conhecendo o horror da fome de Carolina, não conseguisse terminar a leitura de Quarto de despejo (Carolina Maria de Jesus, Ática). Alguns afirmaram categoricamente que não queriam viver a vida de nenhum dos 68 narradores de Eles eram muitos cavalos (Luiz Ruffato, Companhia das Letras), outros confessaram suas simpatias. As mulheres de As brasas (Sándor Márai, Companhia das Letras) e de Afetos ferozes (Vivian Gornick, Todavia) deram o que falar, remeteram a memórias íntimas e levaram a revisões de vida e condutas profissionais. As cartas que não chegaram (Mauricio Rosencof, Record) apresentou muitos tempos, muitas narrativas e um estilhaçar de narradores (ou seria apenas um?!) enigmáticos, camaleões, desonestos (como diz Constantino Bértolo, em O banquete dos notáveis) despertando questões sobre a construção de si frente às durezas da vida.

O fato é: a literatura faz coisas, interfere nas relações, aponta feridas e contradições pelas vozes que nos empresta. Assim, pelas vozes de narradores com quem podemos nos identificar ou de quem precisamos nos afastar, é que a literatura aposta sempre em leitores críticos e questionadores, independentemente da idade, da experiência ou do perfil leitor.

As chances de encontro com diferentes pontos de vista narrativos continuam nos assaltando em todos os momentos de nossa vida leitora, pois elas são função dos textos, da linguagem, não de um suposto estatuto de leitor. A formação do leitor, aliás, nunca termina, porque a linguagem é essa fonte eterna de certezas e dúvidas, de alívio e angústia, de encontros marcados e esquecidos. Nunca é tempo, nunca é tarde para descobrirmos o vigor de vozes narrativas que duram (como lembra Beatriz Robledo2“Avaliação e seleção de livros para a formação de leitores”, Caderno Emília, n. 03, 2019.), que ultrapassam qualquer entendimento, que nos fazem ir e voltar na leitura, que convidam a rabiscos nas margens das páginas ou à fabricação de mapas e esquemas. Nos embates com bons narradores, cada um luta com as armas que tem, sabendo que os recursos simbólicos que a literatura oferece se transformam à medida que seguimos lendo e conversando, caminhando e cantando.

Essa conversa toda sobre a descoberta do fato de que toda história é contada do ponto de vista de alguém – que pode ser um, dois ou muitos; controlador, generoso ou confuso; ingênuo, astuto ou disperso; indiferente, discreto ou desonesto – é um reconhecimento do papel fundamental dos leitores que não são estudiosos ou especialistas (aqueles que embarcam no pacto da ficção, que se permitem viver quinze minutos de outras vidas e pronto) na construção de uma sociedade crítica, plural e justa. Entender que toda história é uma versão é um passo decisivo para qualquer possibilidade de democracia e transformação social. E a literatura pode nos fazer viver isso na pele, mais do que a teoria!

Eu não estou interessado
em nenhuma teoria
em nenhuma fantasia
nem no algo mais
A minha alucinação
é suportar o dia a dia
E meu delírio
é a experiência
com coisas reais

(Alucinação, Belchior, 1976)


Imagem: Adam Patrzyk.


Notas

  • 1
    Um mundo aberto, São Paulo: Emília, 2018, p. 57.
  • 2
    “Avaliação e seleção de livros para a formação de leitores”, Caderno Emília, n. 03, 2019.

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  • Carolina Fedatto

    Bacharel, mestre e doutora em Linguística pela Unicamp. Fez estágio de doutorado na Universidade de Paris III. Recebeu o prêmio Capes de Teses em Letras e Linguística (2012). Tem pós-doutorado na UFMG e na UFF. É especialista em Teoria Psicanalítica pela UFMG. Publicou livros, capítulos e artigos nas áreas de Saber Urbano e Linguagem, Enunciação e Análise do Discurso. É mãe, pedagoga e estudiosa do livro para a infância. Idealizadora da Cria Coletiva. Membro da equipe editorial da Revista e dos dos Destaques Emília.

    carolinafedatto@emilia.org Fedatto Carolina

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