Estes últimos e longos anos de pandemia e de contatos virtuais incansáveis já tinham alertado para a necessidade dos encontros presenciais. Não apenas pelo caráter vital dos abraços e do olho no olho, mas também pelo dinamismo e agilidade desses encontros. A edição presencial da BCBF, depois de dois anos de versões digitais, só confirmou a importância da presença física dos participantes. Sim, é possível fazer negócios e ver livros na tela, mas nunca será a mesma coisa.
Apesar de mais enxuta do que nos anos anteriores, pela ausência significativa de editoras de vários países e em consequência das normativas de entrada e saída, a BCBF 2022 foi um sucesso de público, programação e negócios. Essas lacunas se fizeram sentir, mas o que estava lá representado preencheu, com toda certeza, a curiosidade e colocou em dia a todas e todos que estavam lá. Estiveram presentes 1070 expositores de 90 países, incluindo Sharjah como convidado especial, 18 exposições e mais de 250 eventos. Dos 21.432 visitantes, 40% dos profissionais eram estrangeiros e, além desses números, houve mais de 51.000 inscritos para as atividades on-line.
O sucesso é ainda maior se considerarmos que, até dia 10 de janeiro de 2022, ainda não havia sido definida a possibilidade da realização presencial da BCBF: a equipe organizadora teve menos de 3 meses para organizar tudo! Uma grande salva de palmas e muitos vivas é o que eles merecem. Destaque tambem para a identidade visual, que ficou a cargo de Solin Sekkur, jovem ilustrador mexicano, que colocou a infância, a imaginação e o brincar com muita originalidade e criatividade por toda a feira.
Como sempre, o Illustrators Survival Corner, organizado em parceria com a Mimaster Illustrazione, sob a direção dos dois grandes Ivan Canu e Giacomo Benelli, teve, até o último minuto, gente saindo pelos lados! Filas e filas de jovens ilustradores para assistir às apresentações, para submeter seus portfólios à avaliação e procurar orientação para seus próximos passos.
Tendências? Alguém comentou que nunca tinha visto tantos livros com pais protagonistas! Não cheguei a reparar, mas a fonte é confiável. Vários livros com temáticas sociais – logo se vê que a temática da crise bate à porta, a marca da diversidade se faz presente também. Mas, a marca desta edição não reside em nenhuma tendência em destaque, os livros premiados valem muito a pena. Na Mostra dos ilustradores, impressiona a presença dos iranianos com uma força e personalidade marcantes.
Diversos fatores foram destaques este ano, como a grandiosidade do país convidado Sharjah, que foi marcada pelo enorme estande e a exposição de toda uma produção, para muitos de nós desconhecida, do mundo árabe. Ao som de muitos tambores, música, chás e incensos, este país apresentou parte de sua identidade cultural. Em paralelo, um espaço dedicado à África, com editoras de vários países, muitas delas pela primeira vez expondo na Feira. E, como sempre, fica aquele aprendizado da necessidade de um olhar atento, sem preconceitos, aberto, para ver a riqueza de uma produção que aparentemente foge a muitos de nossos critérios de qualidade.
Aliás, falando em qualidade, a BCBF 2022 abraçou corajosamente uma discussão extremamente urgente – enfatizada pelos efeitos e o profundo repúdio à invasão da Ucrânia – sobre as infâncias e juventudes à margem, as maiores afetadas pelos efeitos da crise contemporânea, pelos conflitos e guerras. Para quem este mercado produz? Qual é a porcentagem de crianças e jovens com acesso à leitura e aos livros em termos mundiais? Quais as questões centrais que devem pautar as/os profissionais de toda a cadeia do livro? Como considerar essas infâncias e juventudes?
Para discutir tais questões, o Instituto Emília, em parceria com a BCBF, organizou a mesa Infâncias à margem: projetos de leitura em contextos vulneráveis, com a presença de Zohreh Ghaedi (Irã), Bel Santos Mayer (Brasil), Maria Beatriz Medina (Venezuela), Alison Tweed (UKA – África) e Katherina Uwinawa (Ruanda), sob a coordenação de Dolores Prades (Brasil) e mediação de Patrícia Aldana (Canadá). Um mergulho em alternativas inspiradoras encontradas por movimentos sociais pelo mundo afora. Em comum, a convicção de que a leitura abre portas, rompe com a invisibilidade, possibilitando as condições para um desenvolvimento pessoal e social, na maior parte das vezes, para elas negado.
Na mesa, bravas mediadoras e promotoras de leitura representantes de movimentos empenhados em levar livros a lugares onde eles não chegam, em campos minados, onde crianças e jovens são sempre os mais prejudicados, destituídos do tempo da infância, da juventude e do futuro. Bel Santos Mayer – uma das vozes mais inspiradoras em nosso país – deu o recado e mostrou, a partir de alguns dados de nossa realidade, o profundo significado que o acesso e o direito à leitura literária tem no Brasil.
A sala cheia e as muitas questões durante e depois do evento demonstraram a urgência dessas discussões, muito além dos problemas mais imediatos do mercado. Na verdade, o que está em pauta é precisamente o mercado de que estamos falando. Num contexto de crise mundial, em que as infâncias e juventudes são e serão as mais atingidas, falar de livros de qualidade tira o chão e torna a discussão destituída de alma. Afinal, livros para quem e para quê? Pergunta lapidar. De qualidade, sem dúvida, como diz Bel Santos Mayer, para nós os melhores livros, sempre. Mas, uma qualidade no contexto, subordinada ao destinatário e não ao objeto.
Esta foi minha décima oitava BCBF, e como disse em textos anteriores, de uns anos para cá, a Feira só tem surpreendido a cada edição, abrindo espaços para países, convidando pequenas editoras independentes, colocando o foco com seus prêmios cada vez mais abrangentes em gêneros diversos como o livro digital, o informativo, o livro sem palavras, HQs, poesia. Trazer uma discussão de fundo como a mesa acima referida é um dos pontos altos de 2022, pois a reflexão do livro deixa de ser apenas do mercado e passa a ser sobre a diversidade de seus destinatários. Destinatários estes cada vez mais à margem deste mercado progressivamente mais reduzido pelos efeitos da profunda desigualdade social que atinge a maior parte da população mundial.
Para fazer frente a esses tempos tão difíceis e desafiadores, a BCBF trouxe de volta os encontros calorosos! Abraços apertados, reencontros, amigas e amigos que não se viam desde a última BCBF em 2018, jantares, festas com e sem máscara, outro mundo, pelo menos para nós que ficamos tanto tempo nos protegendo. Muitos brindes a quem não pôde estar presente, muitos sprits, como deve ser, e muitos planos apostando na BCBF 2023!
Mais uma vez, a Feira de Bologna mostrou que é o ponto de encontro, indispensável e necessário – vale a pena se programar desde já!