Bons espelhos não são baratos: gastar para promover a igualdade ou para manter o racismo?

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“Que palavras ainda lhes faltam? O que necessitam dizer? Que tiranias vocês engolem cada dia e tentam torná-las suas, até asfixiar-se e morrer por elas, sempre em silêncio? Talvez para algumas de vocês hoje, aqui, eu represento um de seus medos. Porque sou mulher, porque sou negra, porque sou lésbica, porque sou eu mesma – uma poeta guerreira negra fazendo seu trabalho.
Pergunto: vocês, estão fazendo o seu?”
Audre Lorde, Transformação do silêncio em linguagem e ação

Ou

“É uma perda de tempo odiar um espelho
ou seu reflexo
em vez de interromper a mão
que constrói o vidro de distorções
discretas o suficiente para passarem
despercebidas (…)
“ou se você conseguir ver
que o espelho mente
você estilhaça o vidro
escolhendo outra cegueira
e mãos cortadas e indefesas”.
Porque ao mesmo tempo
descendo a rua
um fazedor de espelhos sorri
criando e transformando novos espelhos que mentem
vendendo-nos
novos palhaços
com desconto.”
Audre Lorde, Bons Espelhos não são baratos, 1997

O convite para escrever nesta revista pegou-me de surpresa. Apesar de ter uma grande experiência no trabalho com a temática racial, nas últimas duas décadas tenho me dedicado exclusivamente à área de educação, mais precisamente, à formação literária de jovens mediadores de leitura de bibliotecas comunitárias.

O fato é que por meio da literatura temos buscado reconstruir-nos uma imagem justa de nós mesmos. O trabalho com a literatura universal, mas também com uma literatura que traga personagens negros e literatura escrita por negros.

Foi um desafio pensar o que poderia escrever e que pudesse interessar ao leitores e leitoras desta revista, mais relacionados ao mundo empresarial e ao mesmo tempo de áreas tão diversas. Primeiramente acredito ser importante lembrar, que falar sobre racismo e relações raciais não se trata de falar do “problema dos negros(as)” ou sobre como “ajudar” os negros a terem mais sucesso na carreira e na vida, ou ainda, a pararem de reclamar e trabalhar. Uma série de jargões que qualquer pessoa negra já lidou ou teve que lidar em qualquer área profissional. Estamos falando aqui de um tema para a sociedade brasileira. Relação implica eu e o outro; portanto, ao abordar as relações raciais cada um de nós tem a oportunidade de refletir do lugar em que está. É comum dizer-se que os negros têm autoestima baixa. Será que os negros, por outro lado, não teriam autoestima elevada, uma visão equivocada, também, a seu próprio respeito?

Vivemos num país racista, ainda que, sem sucesso, procure disfarçar ou esconder seu racismo, como provoca a campanha “Onde você guarda seu racismo?”, na qual algumas pessoas foram convidadas a falar sobre o tema. Vale a pena conferir alguns vídeos. São curtos e diretos.1Acesse os vídeos da campanha “Onde você guarda o seu racismo?” Acesso em 08 Jan 2018. Uma síntese das respostas mais comuns à pergunta “Onde você guarda o seu racismo” foram registradas por Maurício Santoro, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômica – Ibase: “Nas piadas”: “Não sou racista, mas a sociedade me obriga a ser”; no passado: “Isso é algo da escravidão, não existe mais”, “Como é que vou ser racista se minha noiva é morena?”; “no medo”: “Eles são muito piores. Quando conseguem um bom emprego, pisam na gente”; “no inconsciente”: “Não sou racista. Talvez eu simplesmente não goste de gente que faz coisas erradas”.

O que queremos? O direito a uma justa imagem de nós mesmos; o autoconhecimento, ou seja, olhar para o espelho sem distorções; o reconhecimento das contribuições dos afro-descentes à história do país, o direito à memória que vai para além das citações sobre a feijoada, o futebol; o direito de ter nossa história contada nos currículos das escolas, nos meios de comunicação, em museus. É invejável a forma que a República Federal da Alemanha preserva a memória sobre um dos momentos mais difíceis de sua história, a Segunda Guerra Mundial, com símbolos, museus e investimento educacional acreditando que a história contada em suas dores, pode não mais ser repetida. No Brasil, desde a abolição legal da escravidão em 1988 luta-se contra o apagamento do que significaram cerca de 400 anos de escravidão de pessoas negras. Durante quatro séculos, africanos e afrodescendentes, crianças, adultos e idosos foram desumanizados em todo o continente americano, tratados como apenas mais uma peça da engrenagem de produção de açúcar e café; foram coisificados, tiveram seus corpos mutilados, suas vidas e dos seus destruídas. Como pode ser que em apenas 130 anos bastaria a assinatura de um documento para tudo ser esquecido e reintegrado? Gilberto Freire conseguiu acomodar tudo muito bem no papel. Em Casa Grande e Senzala, tudo se harmoniza, com cada um em seu lugar. Qual o lugar dado aos negros(as)? O do silêncio, da imposição de uma vergonha étnico-racial, da animalização de seus corpos como bons para carregar peso ou exacerbadamente sexualizados, ou da folclorização das culturas negras, da negação de negros e negras como sujeitos.

O custo de promover a igualdade

Minha atuação como educadora é o desvelar da invisibilidade da população negra, ainda que fôssemos mais de 50% da população brasileira e, em algumas regiões da cidade mais que 80% (dados de Cidade Tiradentes,) incidiu em minha vida e em minha prática educativa. Na adolescência percebi que a indústria de cosméticos ignorava a minha existência ao buscar “meias cor-da-pele” que décadas depois assumiriam o nome de “meias finas”, pois qual seria a “cor da pele” em um país miscigenado? Um assunto que boa parte das mulheres entendem é a solicitação de cores para madrinhas de casamentos e formaturas: esteve na moda “nude” para sapatos e roupas. Se o seu tom de pele é claro, este não foi um problema. Para as mulheres de peles com tons mais escuros, o “nude” era tratado como cor, e não como conceito, como vem sendo abordado por Christian Louboutin, que chegou a criar sete diferentes tons de nudes para sapatos (Selena Escher para FTC).

Ainda na área de cosméticos, quando minha geração decidiu usar e ousar seus cabelos crespos, restava-nos aguardar pela custosa chegada dos produtos norte-americanos. No Brasil, até então, só havia produtos para “domar cabelos rebeldes”, outra vez animalizando a existência negra. Sem entrar aqui nas escolhas estéticas quanto ao uso dos cabelos lisos, encaracolados ou crespos, o inconformismo residia no fato da invisibilidade de uma população de brasileiros.

Na sala de aula, mais tarde, deparei-me com a dificuldade de oferta de cores para que as crianças pintassem o clássico desenho “Minha família”. O lápis “cor-da-pele” era próximo ao salmão. As empresas de lápis ignoravam a existência negra ou achavam sem pouco importante este custo. Hoje temos a Caixa de Lápis de Cor da Faber Castell, os giz de cera Pintkor, produzido por um grupo de ativistas.

É bastante recente a presença de bonecas, brinquedo bastante utilizado nas famílias e na Educação infantil, com diferentes estéticas. Se considerarmos a importância deste objeto para espelhamento, transferência de sentidos, cuidados etc., podemos imaginar o impacto para crianças negras de nunca terem visto uma boneca parecida consigo recebendo cuidados e carinhos? Iniciativas artesanais foram responsáveis por introduzir bonecas negras no universo paulistano, como a Preta Pretinha… e a Era Uma Vez o Mundo que a duras penas segue produzindo. Por que há pouco investimento nesta área? Há ainda quem ache ser pouco importante ou desnecessário ver-se representado, olhar-se e ver-se como uma pessoa possível, nos vários lugares.

Há um mercado emergente de empreendedores negros, vide Feira Preta, que mereceriam apoio para seguir produzindo. Temos cada vez mais produtos pensados à diversidade brasileira.

Cada um pode fazer: conhecer a história da presença negra no Brasil, ter outros pontos de vista, ouvir; desconstruir estereótipos, preconceitos, imagens discriminatórias; reconhecer que nós e as instituições não somos apenas vítimas do racismo e reproduzimos violências e violamos o direito à humanidade, à diversidade e à identidade; sair da omissão e da negligência individual e institucional que levam a não fazer nada.2Este artigo foi escrito originalmente para a publicado “Diversidade no Brasil” da Câmara de Comércio e Indústria Brasil – Alemanha, 2019.


Imagem: 12 tons de pele da marca de lápis “Tris”.


Notas

  • 1
    Acesse os vídeos da campanha “Onde você guarda o seu racismo?” Acesso em 08 Jan 2018.
  • 2
    Este artigo foi escrito originalmente para a publicado “Diversidade no Brasil” da Câmara de Comércio e Indústria Brasil – Alemanha, 2019.

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  • Bel Santos Mayer

    Bel Santos Mayer é educadora social, mestranda do Programa de Pós-graduação em Turismo da USP (PPGTur/EACH/USP), Bacharel em Turismo, Licenciada em Ciências Matemáticas e tem especialização em Pedagogia Social. Desde os anos 1980 atua em organizações não governamentais e facilita processos de criação de Bibliotecas Comunitárias gerenciadas por adolescentes e jovens, como a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura de Parelheiros. É empreendedora social da Ashoka, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – IBEAC, docente de “Mediação de Leitura” na pós-graduação “Literatura para Crianças e Jovens” do Instituto Vera Cruz. É co-gestora da Rede LiteraSampa, finalista do Prêmio Jabuti 2019. Em 2018 foi curadora da 11ª Edição do Prêmio São Paulo de Literatura e foi vencedora do prêmio Retratos da Leitura. Em 2019 recebeu o Prêmio Estado de São Paulo para as Artes, na categoria Livro, leitura e bibliotecas. Membro do grupo de Colaboradores Permanentes Emília.

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