Censura a livros infantis no Brasil: raízes do controle

, View all posts View all posts

Camila Petrovitch e Mônica Correia Baptista

Casos de controle, de regulação e até mesmo de censura a livros destinados a crianças têm sido relatados, nos últimos anos, pela mídia escrita e falada, dentro e fora do Brasil. Subjacente a esses atos, há uma pretensa necessidade de proteção, combinada à tendência de controle das crianças e de suas infâncias. 

Entretanto, como constata Fernando Baez (2004) em História universal da destruição dos livros, esta não é uma prática recente. O autor argumenta que atos de censura ocorrem desde que os livros existem, tendo sido registrados episódios de destruição de livros há 5.300 anos, motivados pelo desejo de aniquilar o pensamento livre. 

Quando direcionamos o olhar para o controle dos livros às obras infantis, notamos certa especificidade. Quem busca controlar algum conteúdo direcionado às crianças, baseia-se em uma concepção do sujeito intelectualmente dependente. Além de uma visão reducionista da infância, fundamentada na necessidade de proteção dos pequenos, os autores desses atos identificam, na literatura, um alto potencial de influência sobre a sociedade e sobre o comportamento das crianças. 

No Brasil, a trajetória da censura a livros remonta aos primeiros anos pós-colonização. Maria Luiza Carneiro menciona, em seu trabalho Livros proibidos, ideias malditas (2002), um índice de livros proibidos publicado em 1559. O documento, combinado ao contexto político e histórico do país, corrobora a ideia de uma tradição censora brasileira. Para entender a censura aos livros infantis no Brasil, é preciso recuperar a trajetória da literatura para crianças no país. Segundo as pesquisadoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2007), a literatura infantil irrompe entre os séculos XIX e XX com a implantação da Imprensa Régia, em 1808, que possibilitou as primeiras publicações de livros para crianças. A partir da demanda de materiais escolares, “começaram a produzir livros infantis que tinham um endereço certo: o corpo discente das escolas igualmente reivindicadas como necessárias à consolidação do projeto de um Brasil moderno” (p. 27). Ou seja, a literatura infantil brasileira cresce comprometida com um viés escolarizado, com a finalidade de formar o caráter do cidadão brasileiro moderno. Esse modelo escolar exigia, em todas as manifestações artísticas da criança, exemplos de ética, moral e bons costumes.

Essa vinculação da literatura infantil a uma visão pragmática escolarizante, aliada a uma sociedade conservadora, influenciou práticas de controle aos livros que, apesar de não ser um fenômeno restrito ao contexto brasileiro, aqui encontrou espaço e condição ideais para se consolidar, como veremos a seguir. 

Infâncias e crianças: por que censurar?

Para analisar a censura a obras destinadas à infância é importante termos clareza tanto em relação às concepções de infância e de criança, quanto ao conceito de literatura infantil, a quem esses livros se destinam e quais visões se têm deles. Para Maria Zélia Machado:

O que chamamos de literatura infantil pressupõe uma noção de infância e a compreensão de uma criança do tempo presente, ou seja, uma criança que vive a plenitude da sua condição, sem que se coloque como contraponto dessa condição o que ela virá a ser um dia no futuro. (MACHADO, 2012, p. 20).

A partir dessa compreensão, fica evidente que se espera, do receptor dos livros infantis, a compreensão e a interpretação das narrativas. Entretanto, a visão que se tem das crianças não é unânime. Uma pluralidade de noções acerca das crianças conviveram em um mesmo período histórico e, podemos dizer, que ainda se fazem presentes. Das diferentes visões sobre as crianças e suas infâncias, Peter Hunt (2010), ao analisar a relação entre literatura e infância, identifica duas tensões. De um lado, setores da sociedade que acreditam que as crianças precisam ser protegidas dos autores de literatura infantil e, por outro lado, os autores que se sentem livres para escrever o que querem. Para Hunt, os primeiros vinculam-se a uma concepção prévia e padronizada da infância, em que não se vê potencial no sujeito, considera-se os pequenos como seres incapazes, ingênuos, irracionais e intelectualmente dependentes dos adultos para sua formação. Os últimos rompem com uma concepção ideal e utópica das infâncias, transgredindo expectativas de conformidade e obediência. 

É com essa noção de criança que os autores de livros de qualidade parecem querer dialogar. Um exemplo que corrobora a ideia de diálogo com os leitores são as obras do autor Roald Dahl, clássicos da literatura infantil conhecidos e adorados pelas crianças há anos ao redor do mundo. No entanto, no início de 2023, a editora estadunidense Puffin, responsável pela publicação das obras de Dahal, anunciou que faria um novo lançamento para “crianças que podem estar navegando em conteúdo escrito de forma independente pela primeira vez” (https://www.penguin.co.uk/articles/company-article/puffin-announces-the-roald-dahl-classic-collection-to-keep-authors-classic-texts-in-print). Nestas edições, ocorreram alterações no texto original que mudaram a singulardade e o estilo transgressor do já falecido autor. Nos trechos, que são interpretados como irreverentes, foram excluídas palavras como gordo, feia, estranha, louco, desequilibrado, entre outras frases que podem desagradar os chamados “protetores da infância”. O artigo Somos todos censores, do pesquisador canadense Perry Nodelman (2020), contribui para compreender estas e outras interferência na literatura infantil ao afirmar que “Rejeitamos livros com base na ideia de que eles podem ensinar a elas [às crianças] algo sobre o que nós mesmos já sabemos, mas que não desejamos que elas saibam de jeito algum”. (p. 22), como por exemplos termos e ações moralmente criticadas. 

Na busca por compreender os olhares censores para o livro e o excesso de moralidade imposto à literatura infantil, Hunt (2002) afirma que os adultos se sentem como guardiões do mundo infantil, e tendem a definir o que seria adequado ou não para a criança ler e ouvir. A infância é alvo de controle por diferentes instituições e por diferentes objetivos, sendo um deles, a escola. 

A Escola como agente censor

A censura institucional pode partir de diferentes grupos e por distintas razões. A Escola, como uma destas instituições, é um agente de controle da literatura infantil desde que se fortaleceu no Brasil (LAJOLO, ZILBERMAN, 2007). Para mostrar as antigas e duradouras raízes desse controle, apresentaremos dois casos registrados de censura exercida pela instituição escolar em momentos históricos diferentes.

O primeiro caso foi encontrado no artigo “Instrução e as províncias: Subsídios para a história da educação no Brasil” (MOACYR, 1939), em texto publicado por Zilberman (2016). Escolas da Corte do Rio de Janeiro, em 1850, retiraram o livro Fábulas de Esopo [620 a.C.- 564 a.C.]/(2013), das salas de aula e o substituíram por Thesouro dos meninos, de Pierre Louis Blanchard [1809]/(1851). Esopo foi um escravo grego que viveu em meados de 600 a.C.. O autor reuniu pequenas histórias curtas, com personagens animais antropomorfizados e sempre contendo lições de moral, acrescentadas ao final das narrativas, dando origem ao gênero fábula. 

Fonte: https://www.homemdoslivros.com/2014/03/costa-matheus-jose-thesouro-de-meninos.html

A censura foi justificada pelo fato de que Thesouro dos meninos era uma  obra pautada no moralismo, na instrução e com uma clara finalidade educativa, enquanto Fábulas de Esopo não se adequava a esses objetivos. O livro de Pierre Blanchard é dividido em três partes: moral, virtude e civilidade, temas que atendiam aos preceitos de formação de “bons costumes” pretendidos pelos censores. Em registros encontrados na Hemeroteca Digital, o jornalista Francisco Otaviano publicou, em 1851, no Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, uma nota contrária à censura, que dizia: 

Recorte do jornal O Correio da Tarde 1851

Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/616028/4448.png 

O que é verdade é que as boas fábulas são muito recomendáveis; enquanto os outros livros se esforçam por demonstrar um fato, as fábulas ensinam um princípio, e tanto mais seguramente quanto o menino é doutrinado, sem o perceber por meio de um exemplo trivial de que ele vai por si mesmo tirar a conclusão que vem a ser uma máxima para a vida. (BNDigital, O Correio da Tarde, 1851)

Chama atenção, nesse episódio, como há uma crítica à censura justificada pelo entendimento de que as fábulas atendiam aos mesmos propósitos pretendidos pelos censores, de formação de caráter, ainda que de forma mais sutil que os outros livros indicados, e não por defender uma concepção de literatura livre de doutrinação. O livro Thesouro dos meninos se tornou extremamente popular nas províncias, sendo adotado em várias partes do Brasil (LIMA, BARBOSA, 2009).

Avançando no tempo, apresentamos outro caso de censura, 168 anos depois, em março de 2018, com o livro Omo-Oba: Histórias de Princesas, de Kiusam de Oliveira. O caso foi encontrado a partir de um relato da editora Rosana Mont’alverne em uma palestra na IV Primavera Literária em Belo Horizonte, 2019. O livro em questão apresenta recontos de mitos africanos, principalmente da tradição ketu, que ressaltam a força das personagens mulheres. 

A Escola SESI Unidade Volta Redonda (RJ) do Sistema Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro) recebeu reclamações de alguns pais de alunos a respeito do livro e, consequentemente, optou por substituí-lo. Em um e-mail da Coordenação Pedagógica aos pais, a escola afirma que os livros seriam substituídos, mas que a escolha foi feita porque “o título trata da cultura africana e não pelo cunho religioso” (CÂMARA MINEIRA DO LIVRO, 2018). A presidente da Câmara Mineira do Livro, Rosana Mont’Alverne Neto, publicou uma nota de repúdio à decisão da escola de substituir o livro e afirmou:

O que a escola não deve fazer é aceitar “questionamentos de alguns pais” sem se dar o trabalho de reuni-los, apresentar e mediar a obra, explicar a importância e a motivação pedagógica de sua adoção e esclarecer a firme posição […]. Não menos grave é o fato de que a opinião de “alguns pais” se sobreponha ao trabalho de especialistas – pedagogos, professores, bibliotecários – qualificados ao longo de anos de estudos e pesquisas. (CÂMARA MINEIRA DO LIVRO, 2018)

O ato foi impulsionado pelas famílias, mas a escola foi quem conduziu a censura de forma institucionalizada. Uma hipótese que nos pulsa ao deparamos com casos como este é que o controle promovido pelas escolas têm por trás um medo e uma respectiva adequação às crenças de algumas famílias: heteronormativas, brancas e de religião cristã. Ou seja, por mais que quem execute a censura seja a escola, a pressão causada previamente pelas famílias nos parece ser o verdadeiro vetor por trás dos casos. 

Ambos os casos evidenciam que a censura pode variar em razão da justificativa apresentada. De todo modo, a instituição escolar, responsável pela formação do leitor de literatura, que deveria ampliar o acesso das crianças às obras de qualidade, vem cumprindo um papel censor impedindo que determinadas obras cheguem às mãos dos pequenos leitores. 

Por que não censurar?

Diversos pesquisadores afirmam que o trabalho com a literatura infantil deve firmar-se por seu compromisso com a constituição de um leitor literário crítico, “que saiba escolher suas leituras, que aprecie construções e significações verbais de cunho artístico, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres.” (PAULINO, 2004, p. 56). Nessa perspectiva, para uma educação literária na escola, incluindo a etapa de 0 a 6 anos, é preciso abandonar a busca por um teor instrucional e pedagógico dos livros para a infância e concebê-los como arte, valorizando a metáfora e o simbólico como essenciais na produção literária. 

Tendo em vista o percurso da censura no Brasil, e compreendendo o papel da escola neste processo, observamos que não se trata apenas de se permitir ou de se indicar a leitura ou não de algum livro, mas, em muitos casos, exige-se sua retirada das instituições. Em relação às crianças, principalmente na faixa dos 0 aos 6 anos, o censor adulto determina o que deve ser ou não apresentado a elas, baseando-se em suas próprias concepções de infância, muitas vezes limitadora.

A censura na literatura é apenas uma das ferramentas para exercer este controle sobre os pequenos. Segundo Hunt (2010, p. 172), ela se apresenta como uma forma de segregação por não oferecer a oportunidade de expandir ideias, “uma narrativa controladora reduz as possibilidades de interação e na última instância, mina o pensamento”. Uma literatura expansiva e visionária permite superar concepções limitadas de adultos preocupados e inseguros em relação às infâncias. O papel das professoras e mediadoras de leitura se insere neste contexto como importante ferramenta para potencializar a literatura e ampliar o seu alcance diante das crianças. 

Sabendo o papel que a literatura infantil cumpre no imaginário e na formação de nossas subjetividades, é necessário que a escola proporcione o encontro das crianças com a arte, oferecendo a elas espaço para formarem-se como leitoras interessadas e críticas. A escolha dos livros deve ser pautada, principalmente, em critérios de qualidade literária e também nas preferências infantis. Para que as crianças exerçam seu poder de escolha, elas precisam, desde bem pequenas, construir um repertório literário amplo e diverso, cultivado a partir de suas vivências. Somente assim, poderão julgar e eleger o que precisam e desejam ler, construindo juízos de valor baseados em conversas entre leitores e mediadores. 

Referências

BAEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros: Das tábuas sumérias à guerra do Iraque. São Paulo.  Ediouro, 2004

CÂMARA MINEIRA DO LIVRO. Até quando?: pronunciamento oficial de Rosana Mont`Alverne Neto sobre o livro “Omo-oba: histórias de princesas” e a nota da FIRJAN. 2018. Disponível em: http://www.camaramineiradolivro.com.br/noticias/ate-quando-pronunciamento-oficial-de-rosana-de-montalverne-neto-sobre-o-livro-omo-oba-historias-de-princesas-e-a-nota-da-firjan/  Acesso em: 22 de ago. 2022. 

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Livros proibidos, ideias malditas: o DEOPS e as minorias silenciadas. 2. ed. ampl. São Paulo: Ateliê Editorial, PROIN; Fapesp, 2002. 

HUNT, Peter. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2010.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias. 6 ed. Editora Ática. São Paulo, SP. 2007

LIMA, Jocilene Pereira. BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Uma História da Leitura: A Virtude e a Moral em História de Simão de Nantua. II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial. 2009

MACHADO, Maria Zélia Versiani. A criança e a literatura. In: A criança e a leitura literária: livros, espaços, mediações. Curitiba: Positivo, 2012.  

MOACYR, Primitivo. A instrução e as províncias. (Subsídios para a história da educação no Brasil). 1835-1889. São Paulo: Nacional, 1939. v. 2.

NODELMAN, Perry. Somos mesmo todos censores?: dois ensaios por Perry Nodelman. São Paulo: Instituto Emília; Solisluna Editora, 2020  

PAULINO, Graca. Formação de leitores: a questão dos cânones literários. In: Revista portuguesa de educação. Vol 14. N 1. Braga, Portugal. 2004

ZILBERMAN, Regina. Leituras para a infância no século XIX brasileiro. In: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP. São Paulo, 2016. 

Compartilhe

Autores

  • Mônica Correia Baptista

    Professora Associada do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Educação pela Universidade Autônoma de Barcelona. Coordenadora da linha de Pesquisa Educação Infantil, do Mestrado Profissional da FaE/UFMG. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Leitura e Escrita na Primeira Infância – LEPI/FaE/UFMG. Pesquisadora do Centro de Alfabetização Leitura e Escrita – CEALE/FaE/UFMG e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil - NEPEI/FaE/UFMG. Coordenou o projeto nacional Leitura e Escrita na Primeira Infância. Membro do Fórum Mineiro de Educação Infantil. Desenvolve pesquisas nas áreas de oralidade, leitura e escrita, currículo, formação de professores, políticas públicas e literatura, na Educação infantil. Membro da diretoria da Associação Brasileira de Alfabetização – ABALf. Membro do grupo de Colaboradores Permanentes da Emília.

    View all posts
  • Camila Souza Petrovitch

Artigos Relacionados

Por uma leitura plena e… complexa

View all posts

Livros para aprender a contar?

View all posts

Imaginar é resistir

View all posts

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *