Compras públicas. Danos colaterais ou toda causa tem o seu efeito

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MariaOsorio@revistaemilia.com Osório María

Toda causa tem seu efeito; todo efeito tem sua causa; tudo acontece de acordo com a lei; sorte ou azar nada mais é que o nome que se dá a lei não reconhecida; há muitos planos de causalidade, mas nada escapa à Lei.
(Caibalion)

Embora seja verdade que o princípio com o qual as compras públicas são governadas na América Latina, parte da premissa de entregar mais e melhores livros para uso dos cidadãos e que sua intenção nada tem a ver com o incentivo à indústria cultural, seus efeitos colaterais sobre a produção, circulação e desenvolvimento do livro são inevitáveis e incontáveis e deveriam ser mensuráveis.

Por um lado, é inegável a quantidade de livros que chega aos nossos países pelas mãos de editores e distribuidores – e também de alguns comerciantes oportunistas – cada vez que um governo anuncia suas intenções de realizar compras públicas. Por outro lado, é também visível o efeito que tem causado na aparição, florescimento e posterior desaparição de projetos editoriais que atraídos pela possibilidade de um mercado, que não veem o quão frágil e temporal é, tem reinvestido seu faturamento na criação e crescimento de um fundo editorial que segue as tendências de compra e se afasta do mercado real, negligencia sua presença nas livrarias, e se afasta de seus clientes naturais. E esse fundo que se compra, e que geralmente não chega a 10% da oferta inicial disponibilizada na mesa dos avaliadores, quem e com quais critérios o seleciona? Com qual padrão o valor de cada livro é medido? O quanto as modas contribuem ou as suposições sobre o que os jovens leem ou deixam de ler? Por exemplo. E, finalmente, o tema que mais preocupa: há vida para os livros infantis depois da compra pública?

Com esta ideia quis colocar sobre a mesa minhas dúvidas à respeito e as perguntas que me rodeiam sobre este tema: até quando as adoções devem ser tema exclusivo dos governos e do critério de algumas poucas pessoas? Porque os bibliotecários, os professores, as escolas não podem comprar livremente nas livrarias, de acordo com seus critérios e com as necessidades de seus usuários? O que significa otimizar um pressuposto nacional? Se as adoções para as bibliotecas públicas e escolares é função dos governos centrais e locais, de quem é a responsabilidade de criar redes de distribuição e livrarias, de aproximar os livros à população, de informar e formar os diretamente implicados? E se trata de “cultura” quando a adoção é pública e os preços são indicados pelo comprador e de “comércio” quando as livrarias intervêm e o preço ao usuário é o preço de venda estabelecido pelo editor ou distribuidor?

Para começar, as transações geradas pela compra pública em toda a América Latina dão a ideia de um mercado sólido e compartilhado, sugerindo que os livros circulam em toda a região, que os livros para crianças cruzam fronteiras mais facilmente e que estão disponíveis e são reconhecidos por todos os países. Entretanto, é fácil constatar que não é assim, e que dos livros eleitos para compra pública circulam no mercado somente 40% dos selecionados. Por que essa separação entre o mundo real e o mundo ideal da biblioteca? Porque um editor oferece ao Estado livros que não investe no mercado? Ou é o Estado que tem um olhar sobre o que deve circular e estar vigente e que tem não nada a ver com as apostas de editores e distribuidores? Novamente: o que tem a ver com o mercado é “comércio” e com as adoções é “cultura”? Ou as editoras e as distribuidoras se dedicam ao comércio, a produzir sem rima nem tom dessa produção, é o Estado quem separa a agulha do palheiro? Em sua sabedoria, depois de fazer essa separação, ele protege a comunidade do comércio selvagem no santuário das bibliotecas?

Em geral, na América Latina, os livros para crianças são a grande ausência nas livrarias, existem algumas poucas livrarias especializadas, pouquíssimos livreiros que realmente conhecem o tema; as seções de livros para crianças nas livrarias de cadeia são lamentáveis e, ainda, nas livrarias mais interessantes da região é surpreendente a má qualidade da seleção de livros para crianças: personagens de índole comercial e da moda, livros-jogo, jogos, numa mescla insólita que não se vê nas seções para adultos. Por quê? Parece que o mundo dos livros para crianças é um mundo à parte, um mundo de especialistas, uma espécie de gueto para os iniciados. Um mundo à parte inclusive do mundo dos livros em geral, dos livros para adultos. Um mundo com suas próprias regras e seu próprio mercado, um mundo que alguns se aproximam apenas por interesse em seus resultados econômicos, por seu êxito nas vendas, pelo interesse em um mercado escolar cativo e, consequentemente, a compra pública.

E é verdade que a compra pública trouxe uma maior circulação de livros entre os países da região? Acredito que isto também seja falso, pois estar nas bibliotecas públicas ou escolares é “circular”? Se os livros para adultos, que fazem parte de um mercado mais aberto, menos dirigido e mediado circulam apenas entre nossos países e cruzam fronteiras apenas quando suas cifras de vendas superam as expectativas dos editores mais otimistas, o que podemos esperar dos livros para crianças, concentrados em sua própria esfera especial? Alguns fundos, poucos, cruzam realmente estas fronteiras, mas, quais? E não me refiro as multinacionais que tem sua maneira particular de atravessar fronteiras, penso, por exemplo, no Fondo de Cultura Economica, por sua condição especial, como programa de governo acompanhado da criação de centros culturais em toda a região; também fundos de muita tradição, como Ekaré, estabelecidos nos países que possuem uma indústria sólida há mais de 30 anos e, é claro, os espanhóis primeiro que os latino-americanos, por quê? Os editores, autores e ilustradores espanhóis são definitivamente melhores, mais inteligentes, recursivos e mais bem preparados do que o resto da região? No que consiste esta notável habilidade dos colegas espanhóis em estar em todas as partes? Será mais fácil de atravessar apenas porque é um oceano que nos separa do que as mudanças dos Andes e do hemisfério? Por que é mais fácil enviar um livro de Barcelona a qualquer lugar do continente americano do que de Santiago do Chile à Cidade do México? Por que é mais fácil adotar um livro em espanhol na Colômbia que um argentino? Será porque o idioma mãe advém da Espanha e em nosso continente é apenas um irmão?

Entretanto, pode este mundo especial funcionar de outra maneira? Haverá alguém interessado em que isso aconteça? Cada vez que este tema é levantado há alguém que relembra as leis do mercado, que para os demais, incluindo a adoção, está o Estado. E se a compra pública se acaba, como já aconteceu no Brasil, por exemplo, ou diminui até se converter em uma leve sombra do que já era, como no México, acaba este nosso mundo pequeno e especial? Ou será necessário pensar agora de uma maneira diferente? Pensar em preparar aqueles que compram, comprar individualmente, distribuir – porque este é um mal em toda a América Latina – em todos os territórios.

Por enquanto, acredito que a tarefa pendente não consiste apenas em olhar para a região para construir um mercado que tenha em conta, aproveite e considere nossas particularidades como vantagens e transcenda as fronteiras, mas que faça crescer as redes de distribuição e de livrarias como um espaço natural da diversidade que permita fortalecer a capacidade de escolher e de atuar, de maneira independente, a todos os cidadãos.

Bogotá, 26 de setembro de 2016.

Tradução Belisa Monteiro

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  • María Osório

    É arquiteta pela Universidad de los Andes de Bogotá. Desde 1986 se dedica à edição de livros para crianças. Primeiro como diretora editorial da Associación Colombiana para el Libro Infantil y Juvenil, Aclij, depois como uma das diretoras de Fundalectura desde sua fusão com Aclij em 1990 até finais do ano 2000. Em abril de 2001 fundou Babel Libros, inicialmente como distribuidora, depois como livraria e, desde 2005, como editora. É membro do Conselho Consultivo da Revista Emília.

    MariaOsorio@revistaemilia.com Osório María

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