Conheça a ilustradora: Joana Velozo

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Joana Veloso é ilustradora e designer. Pernambucana radicada em Barcelona desde 2017, tem nos ritmos e ciclos da vida e da natureza, na botânica, nos livros, nos tecidos e na vibrante cultura do Nordeste brasileiro fontes de inspiração.

Seu trabalho, multidisciplinar, passeia pelo desenho, pela pintura, pela serigrafia. Atua em projetos editoriais no Brasil e na Espanha: já ilustrou livros e colaborou com diversas publicações. Desenvolve estampas, hoje uma das áreas de destaque de sua obra, e busca manter viva a arte da encadernação artesanal.

“Meu enfoque pessoal tem sempre como ponto de partida um olhar de coragem e apreciação profunda pela beleza do cotidiano”. Na entrevista que concedeu à Emília, Joana fala sobre sua trajetória como ilustradora, sobre trabalhos, sobre inspiração e vida. Leia a seguir.


Ilustração para o Jornal Rascunho, 2020.

Revista Emília Gostaríamos de começar com o pedido: poderia falar um pouquinho sobre a Joana Velozo?

Joana Velozo – Gosto de uma abordagem que busca sentido no que veio antes, então para falar de mim penso nos meus avós no agreste pernambucano e nos meus pais. Ambos fizeram o movimento campo-cidade para estudar e trabalhar no Recife. Desta raiz de deslocamento e busca por sonhos vem muita base para o que sou hoje. Meu enfoque pessoal tem sempre como ponto de partida um olhar de coragem e apreciação profunda pela beleza do cotidiano.


Ilustração de As I was walking by the Xingú River, Barcelona, 2018. 

REComo chegou ao ofício de ilustradora? Conte-nos sobre essa trajetória.

JV – O processo de me tornar ilustradora foi tudo menos linear e, ainda assim, ou talvez por isso mesmo, é algo que vejo sempre presente, permeando minhas escolhas, tropeços, triunfos e descobertas.

Como toda criança, gostava de desenhar e desenhava sempre. Minha mãe foi professora e é, desde sempre, pintora; o ateliê dela, em casa, com seus papéis, forno de cerâmica, tecidos, tintas e tantas possibilidades, era para mim um ambiente muito natural e cotidiano, confortável. Mas eu levei um bom tempo até perceber que os livros que tanto me fascinavam tinham sido ilustrados por alguém, sequer conhecia essa profissão de ilustrar. Na escola os professores elogiavam meus desenhos e, quando eu tinha 12 anos, uma delas me sugeriu que fizesse faculdade de arquitetura. Então cresci com a ideia de que quem desenha é arquiteto. Mas na metade do curso universitário comecei a sentir uma angústia muito forte, de que meu caminho era outro, de que aquele ambiente acadêmico estava abafando uma potência criativa que eu ainda não sabia dar nome direito. Foram anos bem difíceis, mas eu consegui dar vazão ao impulso de criar, na época, pintando camisas. Eu criava e desenhava formas, que chamava de “Bichos-planta”, tudo pintado à mão. Horas e mais horas de trabalho, totalmente absorta, um fluxo que me ensinou e me ensina muito até hoje.


Ilustração de Un sueño de Juana, de Eduardo Galeano. Barcelona, 2019.

Aos trancos e barrancos terminei o curso de arquitetura enquanto, em paralelo, ia tateando, buscando as ferramentas para me expressar artisticamente. Fiz disciplinas optativas no departamento de Design Gráfico lá na UFPE, oficinas de caligrafia, aquarela. Fui duas vezes à São Paulo fazer cursos de ilustração e pintura acrílica com Rebeca Luciani (ilustradora amiga que anos depois me apresentou a escola onde estudei ilustração em Barcelona). Pesquisei e li muito, conversei com muitos ilustradores que contactava pela internet (não existia Instagram), procurando entender como trabalhar na área.

Em 2012, um ano antes de me formar, ilustrei meu primeiro livro, A menina que falava com as coisas, de Luzinette Laporte, publicado pela CEPE Editora, do Recife. No ano seguinte, já formada, fui para São Paulo fazer um curso com Odilon Moraes no Instituto Tomie Ohtake. Morei lá por seis meses, trabalhando como designer, dando oficinas de encadernação e continuando minha busca pelas ferramentas para construir o universo que tanto queria habitar. E aos pouquinhos fui construindo.


Ilustração de Chinelinhos Brasileiros, de Silmara Rascalha Casadei e Joana Velozo. Brasil, 2014.

REComo se deu a mudança do Brasil para Barcelona? A vida na nova cidade mudou de alguma forma sua relação com a ilustração? Algo do Brasil continua forte em seu trabalho?

JV – Me mudei para Barcelona no final de 2017, mas isso foi um desdobramento, fruto de um primeiro movimento, que foi o de vir para cá estudar ilustração. Vim em outubro de 2015, sem conhecer ninguém, sem saber catalão e fresca de peito aberto para a vida um ano depois de ter me tratado de um câncer (tive Linfoma de Hodgkin en 2014 e voltei de São Paulo para Recife). Passei um ano e meio estudando na Escoa de La Dona, indicada fervorosamente pela amiga Rebeca Luciani, e conheci meu companheiro Diego Mallo, ilustrador e professor. Formos para o Brasil. Ficamos por um ano, primeiro no Rio de Janeiro, onde realizei meu projeto Epífita, uma residência artística em ilustração Botânica na Escola Nacional de Botânica Tropical e depois em Recife. Lá realizei outro projeto, Imersão Criativa: um aprofundamento teórico-prático na arte de ilustrar, ambos financiados pelo edital da Fundação de cultura do Governo do Estado de Pernambuco, o Funcultura.

Então apostei por tentar a vida em Barcelona e sigo neste processo. A vida aqui foi e tem sido uma imersão constante e vital no meu trabalho como artista. Continuei me formando, fazendo cursos de ilustração, pude participar de exposições – fui selecionada no 11º Encontro Nacional de Ilustração de São João da Madeira, Portugal -, eventos profissionais, como o Irudika, conhecer as feiras de Bolonha e de Montreuil, conviver com colegas ilustradores e suas riquezas de caminhos, abordagens, linguagens. Também estudei estamparia e arte têxtil, marcos significativos na minha trajetória, que é multidisciplinar.


Estampa Helicônia.

Acho que estar “longe de casa” me permitiu voltar o meu foco para dentro e habitar meu mundo interior de uma maneira mais firme e também mais generosa comigo mesma. Tem sido anos de desconstruções várias, e tenho a sorte de poder escolher abrir mão de tantas obrigações, muitos “tem que” acumulados durante a busca quase frenética e perceber que a própria busca pelo caminho já era caminhar nele.
Trabalho com diferentes materiais e suportes, tanto gráficos como têxteis e para diferentes finalidades também.

Minha bagagem latina, nordestina e pernambucana sem dúvida é um fio que costura uma base para tudo o que faço; está presente no meu gosto pela botânica das nossas matas, no fascínio pelas chuvas fortes e trovoadas que pintam de verde os umbuzeiros, baraúnas e aroeiras da casa de meu avô. Sou profundamente apaixonada por cactos, bromélias, orquídeas silvestres e epífitas várias; pela profusão de frutas que temos, pela música, as danças e movimentos, pelo carnaval, pelas pinturas corporais. Tudo isso está presente no meu trabalho seja de modo figurativo, cromático ou compositivo.


Ilustração para Hansel and Gretel. Barcelona, 2018.

REComo é seu processo criativo? Que técnicas e linguagens são mais presentes em suas ilustrações?

JV – Hoje em dia meu processo consiste basicamente em ficar com as coisas, respeitando o tempo que as imagens precisam para acontecer. Dizendo assim parece fácil, mas não é. Embora muitas vezes seja árduo, gosto muito de sentir o momento em que a energia muda. Em que incerteza, insegurança, tentativas frustradas – e às vezes mesmo um mal-estar físico -, quando aceito a inquietação e persisto, abrem passo, um caminho em que posso fluir. Gosto muito disso.

Eu sento no meu estúdio todo dia e desenho alguma coisa. Qualquer coisa, com o material que der vontade. Todo dia abro o caderno numa página nova e começo. É deste encontro com o desfrute, com o desenho por prazer (desconstruindo a obrigação) que encontro uma alegria um sentido que me permitem criar com liberdade as minhas ilustrações para livros, revistas, estampas.

Sobre técnicas, gosto muito de desenhar com lápis de cor. Vou repetindo, buscando a linha até encontrar o gesto que preciso. Ultimamente peguei paixão por hidrocor com ponta de pincel. E gosto de aquarela líquida bem concentrada, mas só para certo tipo de trabalho. Sou mais das técnicas secas. No momento estou trabalhando um livro todo em lápis de cor, bicolor. É curioso, a limitação da paleta me dá uma liberdade que não necessariamente sinto com a policromia.

De todo modo, mais do que a técnica, minha construção gráfica transita mais pela expressão, pela intenção do traço. Gosto mesmo é de linhas e formas que sabem o que querem. Mas tem que seguir perguntando.


As Aventuras de Pinóquio. SESI-SP Editora. Brasil, 2018.

RESeu trabalho transita entre ilustrações editoriais e estamparia. Poderia contar como se dão esses processos? Aliás, a estamparia parece ter um destaque especial no seu trabalho.

JV – Em 2018, aqui em Barcelona, tive minha primeira exposição individual, intitulada Caminhos. A intenção era de expor os trabalhos realizados desde a chegada como estudante três anos antes. Para marcar o recomeço da vida aqui produzi seis obras em tamanho A2 (42×59,4 cm), composições florais que já eram o começo do que poucos meses adiante seria um completo fascínio pelo universo da estamparia. Fiz um curso de design de estampas e comecei todo o processo da descoberta: desenhar muito, pesquisar referências históricas e contemporâneas, construir habilidade manual e técnica, conhecer o setor, possibilidades profissionais, recursos; também estudei arte têxtil. E venho construindo este trabalho desde então.

A estamparia é um universo muito generoso e gratificante para mim; consegui juntar duas necessidades fundamentais, o desenho e a criação de beleza no cotidiano. Vejo esta atividade como uma ampliação do meu trabalho como artista ilustradora; sendo a ilustração uma arte aplicada, poder expandir meu horizonte de atuação para além do editorial e adentrar o design de superfície tem sido instigante. Sim, a estamparia tem ganhado um forte destaque em meu trabalho, e vejo que há um fio condutor, um caminho construído de mãos dadas com o olhar desenvolvido e em desenvolvimento no ofício de ilustradora. Algo recorrente, por exemplo, é que elementos, composições ou registros gráficos para um trabalho editorial me sirvam de inspiração para criar uma estampa e vice-versa.


Estampa Cajueiro.

Então são atividades que se retro-alimentam, porque tanto se originam quanto nutrem o mesmo núcleo. Estou me preparando para criar coleções, e este é um processo que também tem como base uma relação narrativa, uma coleção conta uma história. Gosto de criar estampas que contam algo, e trabalho da maneira o mais autêntica possível, criando o que quero ver no mundo.

REQuais são suas fontes de inspiração?

JV – São várias. As principais vem da botânica, observar diferentes flores, folhas e ramificações. Gosto de ver como as plantas no meu estúdio buscam a luz do sol que entra pela janela. Me inspiram os livros de modo geral e em particular os ilustrados e os de arte. Passear na biblioteca ou livraria, quando possível, me inspira muito, assim como caminhar. A música também tem um lugar especial e ultimamente tenho escutado bastante violeiros repentistas pernambucanos. Também gosto de ver entrevistas com músicos e saber de seus processos criativos, que me fascinam. Em geral rotinas e rituais criativos me instigam muito e adoro ver imagens de outros ateliês e mesas de trabalho. E também há os momentos em que o que mais me inspira é estar em silêncio observando o mundo lá fora. É um silêncio mental que revigora.

RE Acompanha a cena de ilustração contemporânea? Vê com destaque alguma ilustradora ou algum ilustrador em particular no Brasil ou fora?

JV – Acompanho. Naturalmente as referências mudam de tempos em tempos, mas sempre tem artistas que cativam o meu olhar continuamente. No Brasil: Elisa Carareto, Mariana Zanetti, Ciça Fittipalidi, Ana Matsusaki, Anna Cunha, Kamal João, Roger Mello, Catarina Bessel e Fernanda Massotti são alguns exemplos. No exterior, Chiara Carrer, Beatrice Alemagna, Anne Herbauts, Rebeca Luciani, Jesús Cisneros, Elisa Talentino, Albertine, Giulia Pastorino, María Luque, Victoria Semykina, Jimena Estíbaliz e Bea Lozano.

REVamos falar agora da Joana leitora. O que gosta de ler? Algum livro em particular chamou sua atenção recentemente?

JV – Gosto demais de ler, desde pequena. E com o passar dos anos fui me acostumando a ter algumas leituras abertas, porque me interesso por muita coisa e acho que tem livro pra cada momento. Então aceitei isso como algo que faz parte da minha maneira de ser e parei com as cobranças de ler um livro por vez. Gosto especialmente de ler sobre criatividade e no momento estou lendo The creative habit de Twyla Tharp e La meditación y el arte de dibujar, de Wendy Ann Greenhalgh. Um livro que chamou a atenção recentemente e nos presenteamos no natal foi Rituales cotidianos – las artistas en acción, de Mason Currey, com relatos sobre 143 mulheres artistas que estou louca para ler. E este ano vou terminar Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa.


Ilustração para a Revista FAPESP.

RENesse último ano, tão desafiador, o que te inspirou e ajudou a seguir em frente?

JV – 2020 foi um ano muito desafiador mesmo, para dizer o mínimo. Boa parte do que comentei antes sobre desconstrução de obrigações e reconstrução interna ficou mais intenso e evidente para mim, principalmente a partir da segunda metade do ano. Foi preciso aprender muito sobre limites, prioridades, descanso. Sobre ter paciência e voltar pro caminho, ato contínuo.

Meu trabalho me ajudou muito a seguir em frente; não só desenhei muito como reencontrei no desenho um lugar de calma, de descanso e de vontade. Também a leitura me ajudou muito e pude adentrar temas importantes que, mesmo de forma diletante, me possibilitaram formular perguntas onde antes só havia uma realidade sufocante imposta como única possível.


Time. Barcelona, 2019.

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  • Priscilla Brossi Gutierre

    Jornalista com experiência em gestão de projetos de comunicação. Especializada no desenvolvimento de estratégias de conteúdo editorial, incluindo planejamento, edição, curadoria e redação, para diferentes formatos e mídias. No Instituto Emília, atua no plano de relacionamento com a imprensa e edita a newsletter mensal. 


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