Contar a guerra e literatura infantil (não é tão simples)

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Nos dias posteriores ao início da guerra russa contra a Ucrânia, apareceram de imediato numerosas listas de livros infantis “para” e “sobre”. Recordei-me do que ocorre nas lojas de variedades quando chove e colocam guarda-chuvas na vitrine. Estas listas pareciam oferecer sua mercadoria a mediadores ansiosos para explicar o inexplicável. Nessas listas mesclava-se de tudo: livros sobre a Segunda Guerra Mundial, livros mais filosóficos contra a guerra em geral, memórias, testemunhos e ficções de todo tipo ambientadas em diferentes guerras do mundo. Na maioria dos casos as listas limitavam-se a livros-álbum. Há alguém por aqui que recorde ter lido Quando Hitler roubou o coelho rosa? Inclusive em alguma dessas listas, informavam que “não existem ainda os livros que abordem a invasão russa de Ucrânia”. Livros que “abordem”. Tudo isto recorda-me o livro Os homens explicam tudo para mim 1Rebecca Solnit, Cultrix, 2017, deveríamos escrever um que dissesse “Os livros explicam tudo para mim”. Reduzir a guerra, qualquer guerra, a um punhado de livros para dar a lição, ou contar algum pedacinho do que é uma guerra, parece-me um contrassenso. É muito mais complicado.

Quando Hitler me roubou o coelho cor-de-rosa, Judith Kerr.

O livro de Margareth Macmillan, A guerra. Como os conflitos têm nos marcado, fala muito da complexidade do assunto. A guerra está relacionada com a economia, a diplomacia e a política. Para mencionar um dado, o orçamento militar dos Estados Unidos era de 750 bilhões em 2020.Talvez seja necessário começar por isso: há algum livro-álbum por aí sobre essa questão? A história escrita do mundo é, basicamente, uma história da guerra. Vivemos em fronteiras criadas por guerras, a lei que rege nossas sociedades foi criada para vigiar e ao aceitar essa coerção admitimos que a natureza humana tem um lado obscuro que deve ser coagido pelo temor a uma força superior. E não esqueçamos que os executivos das grandes empresas costumam ter um livro de cabeceira: A arte da guerra, nossas cidades estão cheias de homens e estátuas comemorativas e visitamos com muito prazer cidades muradas. Somos fascinados por filmes com heróis militares, vemos obras de arte em museus que noz fazem recordá-los e o vídeo game mais popular nos Estados Unidos, Call of Duty, transcorre na Segunda Guerra Mundial. Eu mesma estive na semana passada em uma incrível exposição organizada por uma fundação que tem o nome do patrocinador do golpe franquista.

Apresentar livros que compilem a memória do passado não só é necessário, como inevitável, mas minha pergunta aqui é: Quais livros? O que os livros destinados à infância contam? Encontramos nestas listas muitos livros sobre migrações e exílios, mas há alguém na Espanha que esteja lendo os livros de nossos exilados? Há quase 20 anos fiz uma seleção de contos de autores espanhóis exilados: ela não encontrou lugar e segue na gaveta dos esquecimentos. Antoniorrobles, Magda Donato, José Moreno Villa, Herminio Almendros, Manuel Abril, María Teresa León… Elena Fortún (hoje disponível em edições para adultos), quem lê hoje o Pinóquio de Bartolozzi? Os mediadores leem esses autores para levar um pedaço do passado a nossas crianças de hoje? Parece mais fácil encontrar um livro de alguma guerra distante. As nossas são guardadas sob o tapete. As crianças mexicanas lerão mais sobre a guerra da Síria que sobre suas próprias guerras e meninas espanholas terão lido as peripécias de um menino somali em um campo de refugiados do Quênia e não saberão que nas valas do povoado de seus avós repousam ossos dos quais ninguém lhes conta nada.

Estive olhando em catálogos de editoras e bases de dados: 90% dos livros que aparecem com a etiqueta de “guerra” referem-se a romances. E romances deste tipo: “O príncipe dos cavalos é uma história de bravura e vontade para vencer apesar de todos os tipos de obstáculos” Outro diz: “Quando ao eclodir a Primeira Guerra Mundial, o pai de Albert vende seu cavalo ao exército britânico, o jovem promete ir às frentes e recuperar Joey”. A maioria dos livros infantis que tem como tema a guerra podem ser classificados em quatro categorias:

Informativos – Um percentual muito pequeno que inclui títulos como: 20 batalhas que mudaram o mundo, Vikings, ou Manual para espiões. Uma quantidade mínima, orientada ao sensacionalismo e a aspectos da guerra que deixam de lado questões humanas e sociais.

Pseudofilosóficos Aqueles que falam da guerra em um sentido metafórico explicando, em seguida, que está mal. Livros que não contém perguntas e sim respostas em matizes que evitam as questões sobre o que significa ser humanos.

Memórias e autobiografias Um gênero que estaria incluído nos informativos, mas o situo em separado pelo valor do testemunho direto, ao qual costumam ter pouco acesso os leitores de hoje em dia. Contudo, livros como os diários de Anna Frank estão em coleções de adultos, e não sei se as memórias de Roald Dahl, “Voando sozinho”, são mais lidas como uma história de aventuras ou como algo relativo à guerra.

Ficção Estariam na categoria de romance histórico e em geral são obras com vontade didática e ambição pedagógica. É um gênero que resulta muito atrativo para escritores vinculados com, por exemplo, editoras escolares onde recomendam-se esses livros porque vêm muito bem para “trabalhar” muitas questões, desde geografia, história, aspectos sociais etc. Esses romances incluem um jovem que costuma converter-se em herói por algo que tenha feito. Às vezes descobre um segredo familiar e a grande história é reduzida a uma história menor com uns quantos personagens que acabam em lugares comuns. Ao utilizar estratégias de sedução leitora como aventuras, um mistério ou um protagonista da idade dos leitores, aniquila-se a possibilidade de intervir no passado. Quero dizer: não é possível transformar o presente por meio da rememoração do passado, pois é um simples adereço que não permite aos leitores chegarem à conclusão de que o presente é a realização do passado, em especial, dos vencedores. Aqueles que escrevem estes livros são adultos que não têm vivido diretamente os fatos, também não são historiadores, unicamente, dão-se ao trabalho de transferir aos leitores para que possam ver “diretamente” certos fatos. Acredito que estes livros promovem a ideia de que o passado se reduz a uma contemplação, na qual não podemos reconhecer-nos. O ocorrido com o passado não tem nada que ver com o tempo atual, somente são fragmentos desconexos, imparciais, sem nenhum compromisso político. A maioria evita inclusive uma ideia conflituosa do presente.

Se tivesse que recomendar algo para esta época, seria a leitura dos contos que Miguel Hernández escreveu, durante seu período na prisão, ao seu filho Manolillo, ou leria qualquer relato daqueles recompilados por Svletana Alexiévich em seu livro As últimas testemunhas: crianças da Segunda Guerra Mundial (Companhia das Letras). Abro ao acaso o livro, e encontro o testemunho de Vera Tashkina que tinha dez anos:

Antes de chegar a guerra eu já tinha chorado muito… Meu pai tinha morrido. Minha mãe ficou sozinha com sete filhos. Éramos muito pobres. A vida era difícil. Mas depois, durante a guerra, aquilo parecia-nos uma bonança. Aquela vida de antes, em tempos de paz. (…) Comíamos…água… Chegava a hora de comer e mamãe colocava em cima da mesa uma panela cheia de água fervida. Enchíamos nossos pratos. À noite. O jantar. Outra panela de água fervida aparecia em cima da mesa. Água transparente, no inverno não havia nada com o que adorná-la. Nem sequer, grama.

Tradução Denise Scolari Vieira

Imagem: ilustração de André Letria para o livro A guerra, editora Ameli

Notas

  • 1
    Rebecca Solnit, Cultrix, 2017

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  • Ana Garralón

    Ana Garralón trabalha com livros infantis desde finais dos anos 80. Colaborou como leitora crítica para muitas editoras, realizou oficinas sobre formação e incentivo à leitura e livros informativos em importantes instituições. Escreve regularmente na imprensa. Publicou Historia portátil de la literatura infantil, a antologia de poesia Si ves un monte de espumas e 150 libros infantiles para leer y releer (CEGAL, Club Kirico, 2012 e mais recentemente Ler e saber: os livros informativos para crianças (Pulo do Gato, 2015). É membro da Rece de Apoio Emília. É autora do blog http://anatarambana.blogspot.com.br/.

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