Crônica de uma viagem a Bolonha

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No dia 25 de maio, depois de dois meses de correios duvidosos sobre esta viagem, vários formulários preenchidos, depois de fazer o exame médico e de haver dito que não podia vacinar-me justo nesse dia, tomei um voo para Bolonha. O motivo: participar como jurada nos prêmios mais importantes da feira: FicçãoNão Ficção, Opera Prima e New Horizons

Ao chegar ao aeroporto de Bolonha procurei um táxi ou uma van ou qualquer coisa parecida, mas só havia um carrão no estacionamento vazio.  Dei uma volta, entrei, sai e aí vi meu nome escrito num tablet. Meu táxi era o Maserati estacionado.  Eu não entendo nada de carros, mas alguém me contou depois coisas sobre essa marca. Sandro, o motorista, me levou ao centro da cidade. “Você tem sorte, seu hotel está justo na Piazza Maggiore”. 

E assim foi. Mas voltando ao Sandro. Pura fofoca. Sandro, que deve ter uns 50 anos, vive com sua mãe e a única coisa que tem é seu carrão.  Nos divertimos tanto com a história que, no dia que levou Yasmine e eu para fazermos o PCR, pedimos para ele nos fazer uma foto com seu carro.  Desde então, Sandro nos olhava com outros olhos.

O hotel, de fato, estava em plena praça. Um edifício do século XII, adaptado que conservava visível a imponente estrutura de vigas e tinha todo o encanto de um lugar de outro tempo com todas as comodidades possíveis.

No júri estávamos: Yasmine Motawy (Universidade Americana no Cairo)1Yasmine Motawy faz parte do Grupo de apoio da Emília. (Nota dos editores), Izabella Kaluta (ilustradora e autora, Polônia), Chiara Basile (livreira na Itália), Caterina Ramonda (Bibliotecária, Itália) – elas duas juradas no prêmio de poesia -, e eu, que vocês já conhecem. 

Um júri, portanto, variado e com diferentes perspectivas. 

Os livros estavam perto de nosso hotel, no Palazzo Comunale, em uma sala onde costumávamos ver exposições durante a feira. O ambiente, pois, convidava à calma e à beleza, duas coisas importantes para revisar os 1577 livros de 41 países divididos em 200 metros de mesas.

Algumas coisas que eu não sabia sobre o prêmio:

  • Estão convidadas a participar todas as editoras que têm stand (individual o coletivo) na feira. Este ano, de maneira excepcional, também podiam enviar livros as que não tinham stand.
  • NÃO é um prêmio literário. Os livros NÃO são lidos (seria uma tarefa desproporcional), olha-se o projeto e como está desenvolvido em um livro atendendo aspectos como formato, páginas, designer, ilustrações, projeto gráfico e equilíbrio entre todos os elementos. 
  • NÃO é um prêmio a um autor/a o ilustrador/a conhecidos. É para o conjunto de uma obra, não importa quem está pro trás dela.
  • Tampouco são os MELHORES DO MUNDO. Os muitos livros recebidos apenas são uma pequena amostra da enorme produção mundial. 
  • Desde a organização da feira se procura envolver, cada vez mais, as editoras para não premiar sempre as mesmas, que costumam ser as mais ativas.
  • O prêmio é uma espécie de best-seller de direitos, pois atrai de imediato a atenção de editoras de todo o mundo.

De alguma maneira, os livros selecionados seriam como a ponta de um iceberg da enorme quantidade de livros publicados cada ano. Este prêmio mostra, também, a grande dificuldade de selecionar livros entre a produção mundial.

Os prêmios que devíamos avaliar estão nestas categorias:

  • Ficção / Equilíbrio entre o objeto, o designer e o assunto do livro. Um prêmio e duas (ou três) menções
  • Não Ficção/ Boa transmissão desde as ilustrações, um tema original. Um prêmio e duas (ou três) menções
  • Opera Prima / Este prêmio foi criado como uma homenagem ao criador do logotipo da feira, Giovanni Lanzi (neste artigo pode-se ler a história completa). Um prêmio e menções
  • New Horizons/ O livro desta categoria tem que refletir uma nova ideia sobre livros infantis, algo inovador, bom designer, boa ideia detrás de projeto. Um prêmio. 

Os livros estavam colocados segundo as três primeiras categorias (a quarta podia ser de qualquer uma) e o procedimento, durante dois intensos dias era olhar e olhar de novo, ler os resumos, comentar sobre o livro com os outros membros do júri e finalmente, por um adesivo redondo na contracapa. O adesivo foi colocado no segundo dia. Para o Opera Prima havia muita escolha, para Não Ficção, também, mas para Ficção foi como atravessar um deserto sem uma gota de água. Dávamos voltas, voltávamos a olhar, começávamos tímidas discussões, voltava a olhar aquele que talvez não tivesse olhado com frescor a primeira vez e assim uma e outra vez. Em ficção vimos muitas mulheres (e meninas) correndo, ou salvando o planeta, super-meninas, muita nostalgia por uma infância idealizada, vimos muitos adultos educando (tipo o livro “Os homens me contam coisas”, mas com o possível título: “Os mais velhos querem que eu saiba isto”). Vimos dragões, ratinhos, um irmão patinho, a versão infantil de “O vovô saltou pela janela”, muitos adultos infiltrados em histórias que não lhes pertencem. E até vimos um urso que liberta um passarinho de uma gaiola, tão bonzinho que era.

Na categoria não ficção havia cachorros rebeldes (sim, e com o mesmo desenho que o infame livro), jardins, plantas, abelhas, animais, “conserte o futuro você mesmo”, mulheres que viajam em motocicleta (uma coisa tão estranbnha!), vidas sempre extraordinárias (e sempre de mulheres!), recontos familiares e muitos, muitos diretamente educativos. 

É muito difícil extrair conclusões depois de ver tantos livros. Tendências quando havia apenas um livro do Brasil? Quando dos países de língua espanhola mal chegavam a cinquenta livros? Quando muitos mandaram livros sem pensar que o que se avalia são as  ilustrações e o projeto gráfico?

O passo seguinte era selecionar os que tinham cinco adesivos (creio que só dois títulos), os de quatro, os de três e, como a coisa não estava muito boa, os de dois. Porém, antes, nos levaram à torre de Palazzo onde está o relógio e se tem uma vista maravilhosa da cidade. Acho que foi para que desanuviássemos, antes das discussões.

Em relação à categoria de Não Ficção apareceram em seguida alguns bons candidatos, o mesmo para Opera Prima.

Ganhador (esquerda) e menções para Não Ficção
Ganhador de Opera Prima (à direita), e menções

Na categoria New Horizons, só tivemos dois (e ganhou esta coisa louca sobre urbanismo). Vejam estas duas fotos do miolo.

Dos três primeiros prêmios não tivemos muitas dúvidas e o que fizemos foi dar mais menções do que o habitual. Como tirar, em Opera Prima, esse livro tão engraçado para bebês, ou o outro de humor sobre a selva, ou inclusive um bastante experimental que usava todos os recursos do papel e das cores para contar sua história? Em Não Ficção, talvez tenhamos extrapolado com as menções, mas creio que foi fruto da grande variedade de temas e estilos que gostamos. Na categoria New Horizons ficou apenas um livro, o que me leva a pensar: existe um horizonte novo nisto em que trabalhamos?

Na ficção, apenas tínhamos uma dúzia – alguns com poucos adesivos.  Portanto, as discussões foram longas, por vezes tediosas porque nos enroscávamos nos mesmos livros que defendíamos continuamente. Os olhares eram opostos. Por um lado livros com bons projetos gráficos, originais, mas com argumentos e histórias bastante deprimentes ou já antes vistos ou “bonitos”, mas na leva do nostálgico. Por outro, histórias mais simplistas, bem resolvidas, muito orientadas à infância que brinca, mas que não nos pareciam suficiente bons para um prêmio. Tenho que dizer que contamos com a inestimável ajuda de Carolina Ballester, que traduziu do chinês dois dos livros que chegaram a final; de Marcella Terrusi que atuou como coordenadora com muita propriedade, (e do tradutor de celular de Yasmine, que punha sua câmera sobre uma página em theco e traduzia  tudo para nós). Finalmente perguntamos se podíamos ter mais menções para poder incluir dois livros com os quais estávamos enrolados. Sem eles, nos parecia que o prêmio não era representativo, passamos a última hora pondo os livros juntos, tirando um, voltando a colocar. Finalmente nos autorizaram a ter mais menções.  

À esquerda, o premiado. O restante, as menções (em ordem de preferência)

À intensidade destes dias, de estar quase todo o tempo falando em inglês, a responsabilidade e o cansaço, ajudaram muito os jantares, que nos eram oferecidos a cada dia, depois de finalizar o trabalho e se prolongavam até a hora do toque de recolher. Trocar opiniões, conhecer novos colegas, essa coisa que há tanto não fazemos: conversar sem pressa ou com paixão junto a um prato de massa, foi impagável apesar de todos os obstáculos que temos que superar para viajar.

E aqui a diretora da feira, Elena Pasoli 2 Elena Pasoli faz parte do grupo de colaboradores permanentes da Emília. (Nota dos editores), que eu aposto que caiu no caldeirão de Asterix quando era pequena porque, que mulher!

Minha viagem ao aeroporto não foi com Sandro, teria sido o fecho de ouro para esta viagem, mas nem tudo é perfeito.

Até mais, Bolonha 

No ano que vem nos vemos! 

Vale a pena ler também Os prêmios por dentro e Um papo com Elena Pasoli

Notas

  • 1
    Yasmine Motawy faz parte do Grupo de apoio da Emília. (Nota dos editores)
  • 2
    Elena Pasoli faz parte do grupo de colaboradores permanentes da Emília. (Nota dos editores)

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  • Ana Garralón

    Ana Garralón trabalha com livros infantis desde finais dos anos 80. Colaborou como leitora crítica para muitas editoras, realizou oficinas sobre formação e incentivo à leitura e livros informativos em importantes instituições. Escreve regularmente na imprensa. Publicou Historia portátil de la literatura infantil, a antologia de poesia Si ves un monte de espumas e 150 libros infantiles para leer y releer (CEGAL, Club Kirico, 2012 e mais recentemente Ler e saber: os livros informativos para crianças (Pulo do Gato, 2015). É membro da Rece de Apoio Emília. É autora do blog http://anatarambana.blogspot.com.br/.

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