Da Narrativa ao Corpo

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IreneMonteiro@revistaemilia.com.br Monteiro Irene

O que os olhos não veem o coração não sente. Sabemos bem disso, mas me diga se o oposto também é possível: o que os olhos veem o coração sente?

Nosso peito se expande e se retrai com o passar das páginas de um livro. Olhos e ouvidos pescam imagens e palavras e vamos engolindo a narrativa; trazendo-a peito adentro. O coração, então, se remexe e os sentimentos emergem: medo, encantamento, alegria ou curiosidade diante daquela história. Eles nos ocupam e preenchem nosso corpo.

E nós? Fazemos o quê com esse corpo?

Corcundamos nossa coluna, enrijecemos nossos músculos e sustentamos a cabeça pensante que cada vez se torna mais e mais pesada. Pouco a pouco o leitor vai se transformando em traça de biblioteca; silencia seu corpo, destonifica suas fibras e perde espaços articulares. A entrega subjetiva aos mundos imaginários fica resguardada à cabeça e ao cérebro que a recheia, cabendo ao corpo apenas se encaramujar.

Me pergunto, então, como transportar essa experiência de leitura da nossa maleta intelectual para a sensorial? Da cabeça para o corpo em sua totalidade? Pode parecer simples, mas não é. Quando criança meu corpo era tímido e vivia dentro de suas próprias casas imaginárias. Bons e raros foram os momentos em que aprendi – e continuo aprendendo – a me transportar das casas para o corpo e do corpo para as casas levando para o coração e para a ação as narrativas que vi, li e ouvi.

No entanto, a experiência de muitas crianças é outra, sejam elas leitoras ou não. A restrição à expressão corporal infantil tem se tornado cada vez mais evidente e é responsável, em grande parte, por minguar as potências da elasticidade, do tônus e da narrativa lúdica que são tão próprias do corpo da criança.

Me vejo constantemente desafiada por isso em meus caminhos profissionais. Eles têm me conduzido ao cruzamento entre o mundo intelectual e o corporal, na tentativa de estreitar o abismo entre ambos ampliando, assim, nossas maneiras de ser e de cuidar de si.

Há pouco tempo, portanto, propus oficinas para crianças de 1 a 2 anos em que a narrativa tinha a liberdade de saltar do livro para o corpo e do corpo novamente para o livro. Educadoras e crianças se arriscaram a estreitar os espaços entre mundos para explorar movimentos e narrativas que cada corpo é capaz de trazer à tona. A partir de narrativas vindas de livros, músicas ou da tradição oral, diversas brincadeiras e movimentos foram descobertos, reinventados e compartilhados entre nós.

No primeiro dia, colocamos saias e, embarcando em uma brincadeira recorrente do grupo de crianças com um tal de “Samba-le-lê”, cantamos e tocamos pandeiro ao som ritmado da música. Os ouvidos e as bocas puderam amolecer na cadência do samba e os corpos foram encontrando diferentes maneiras de se entender e de se mover com o ritmo. Esse lugar esquisito do corpo que cai, mas não cai e que amolece, mas tonifica, para o qual o samba nos leva, é brincante e repleto de sentido vivencial para uma criança que diariamente é desafiada pela força da gravidade enquanto dá seus primeiros – e desajeitados – passos. O chão é muito mais próximo para ela do que para nós, que em nossa bipedia rígida, desaprendemos a cair.

A queda nos levou para outra oficina, na mais arriscada história de um tatu-bola que queria virar balão (Tatu-balão de Sônia Barros). E quanto mais longe do chão ele estava, maior era a possibilidade de queda. Comecei com a mediação do livro e logo virei um tatu rolando pela sala. Crianças me imitaram, sentindo a louca experiência de rodar até ficar tonto, cair no chão e rolar ou dar cambalhotas. Alguns, reservadamente, apenas observaram a dança dando espaço para a compreensão e o reconhecimento da vivência corporal do outro. Com a criatividade espontânea das outras educadoras cantamos músicas de tatu, colocamos uma saia rodada e viramos balão, encerrando o encontro deitadas lado a lado com as crianças, fantasiando um céu colorido de São João.

Nos encontramos, em seguida, com a história do Carneiro das lãs douradas, contadas por Stela Barbieri no curso La poética de la Primera Infância. Cada personagem era um objeto e, amarrados entre si, dançarilhavam nas minhas mãos enquanto o humilde pastor tocava sua flauta, e a narrativa era construída. Depois escolhemos as personagens representadas por seus objetos e corremos pela sala ora virando um ora outro. Movendo os corpos juntos ou separados exploramos a transformação e a criatividade corporal de virar um carneiro, virar uma padeira para, depois, virar um bastão.

Por fim, demos espaço para o reflexo. Mediei o livro Espelho (Suzy Lee) e, por ser composto apenas de imagens, a leitura foi feita com diferentes expressões faciais e corporais. Ficava com medo e retraía o corpo ou curiosa, abria bem os olhos. Ou então ficava alegre e sacudia o livro de cá para lá. A história não precisou terminar para que as crianças se aproximassem dos vários espelhos espalhados pela sala. A curiosidade pelo próprio corpo refletido foi tanta que extrapolamos o horário da oficina e ficamos a nos imitar com gritos e poses engraçadas, rindo uns dos outros. Olhos abertos e coração presente, o imaginário do livro se corporificou em nós. Ele ficou ali, junto dos espelhos, e as crianças folheavam, mergulhavam na narrativa e, então, retomavam a brincadeira com o corpo.

Arrisco a dizer que o contorno do livro, com sua capa dura e suas páginas em branco com desenhos ora retraídos ora expansivos, possibilitou que as crianças encontrassem seus próprios contornos, isto é, colocassem a pergunta para si mesmos: Onde o meu corpo termina? Onde começa esse corpo estranho que pelo vidro me olha? Como o meu corpo pode se assemelhar com o do outro? E no quê ele se diferencia?

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  • Irene Monteiro

    Irene Monteiro é psicóloga, educadora da primeira infância e bailarina da Dançarilhos em Cia. É coautora do livro O tear da vida: reflexões e vivências psicoterapêuticas (Summus) e integra o corpo editorial da Revista Emília. Dedica-se ao estudo e trabalho com as duas pontas da vida - infância e velhice - a partir do corpo, das memórias - sociais e pessoais - e das histórias literárias, realizando ações como aulas de dança e acompanhamentos individuais.

    IreneMonteiro@revistaemilia.com.br Monteiro Irene

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41 respostas

  1. Excelente esse texto, como é gostoso ver as crianças se descobrindo vendo a si mesmas e se encontrando nas diferenças do outro, e principalmente se deixar levar e entrar na brincadeira nos redescobrindo como educador, maravilhoso.

  2. Riquíssimo texto…. Grandioso universo infantil…
    Na interação um a um ao longo de seu desenvolvimento vai surgindo uma nova história.

  3. Liberdade, movimento, possibilidades criativas… A contação e fruição de histórias são realmente direitos fundamentais para o desenvolvimento da criticidade.

  4. Excelente texto para refletir sobre o corpo da criança, quando li a pergunta de reflexão fiquei pensando o corpo na leitura? quando li este texto tudo ficou mais claro, para mim, e pude constatar que empiricamente já colocava o corpo na leitura tem vários livros que utilizou que fazemos algum movimento

  5. quando você observa uma criança e reflete sobre suas linguagens e de como ela cria significados para o que vê nos livros e o que ela escuta, e de que maneira isso é contado, quais expressões fizeram parte dessa narrativa como você usou seu corpo para transmitir essa menssagem.

  6. A criança vive lindas emoções com a contação de história, uma experiência maravilhosa para o estimulo e desenvolvimento intelectual da criança.

  7. Que encanto, conciliar narrativa e corpo, perfeito!!! É fazer das crianças a ter a experiência posta em prática da imaginação que a história oferece…. Maravilhoso….

  8. É bom saber que você compartilha das mesmas idéias, buscas, experiencias que eu, sou uma criança grande que gosta de contar, confabular e ler para outros pequenos Gratidão

  9. A leitura/literatura contribui para a formação de seres humanos pensantes e críticos que contribuem para a formação de um mundo melhor através de suas ideias e opiniões.

  10. Muito interessante o texto acima! A leitura realmente nos leva ao mundo fantástico da imaginação e da criatividade. A narrativa tem a capacidade de integrar ao mesmo tempo linguagem e movimento, isso para criança é vivência que enriquece seu repertório intelectual. Os exemplos de narrativa citados no texto foram erriquedores nesse sentido.

  11. Patricia,o seu trabalho faz lembrar que o momento de leitura é algo muito leve sensível é como abrir portas de emoções suas experiencias nos transportam hora por real como mediador hora como crianças sentindo as mesmas emoções ,explorando todos os sentidos despertando a imaginação e curiosidades.

  12. Irene adorei essa forma de trabalhar com a literatura inserida num corpo que fala, mas o quê?
    Aquilo que podemos intuir com a interação das imagens, sons e movimentos!
    Nessa relação as crianças tornam-se autoras e co-autoras daquilo que sentem quando a figura expressa sua formosura, numa linha de conexão, com tudo aquilo que ela imagina ser ela mesma e, ás vezes o outro.
    Parabéns!
    Deu ideias maravilhosas para trabalhar com minhas crianças, muito obrigada!

    1. Que querida, Pati, obrigada!
      Essa experiência não teria sido possível sem o espaço aberto e criativo que você proporciona diariamente na escola!

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