Dick Bruna, o pai de Miffy – 1

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AnnaCastagnoli@revistaemilia.com Castagnoli Anna

No dia 16 de março de 2017 faleceu, aos 90 anos, Dick Bruna. Foi um dos maiores ilustradores do mundo: conhecido e adorado por legiões de crianças pelo seu personagem Miffy. Os livros de Bruna venderam mais de 85 milhões (!) de cópias e foram traduzidos em mais de 50 línguas. Neste texto, conto a sua historia e, no próximo, as correntes artísticas e os artistas que influenciaram o estilo deste grande artista para crianças.

A vida de Dick Bruna | Utrecht, 1927-20

Acontece com frequência em uma família de médicos ou advogados que um dos filhos queira tornar-se artista: é um drama. Na família de Dick Bruna não foi tão ruim. Os pais eram editores da A.W. Bruna & Zoon uma editora holandesa fundada em 1868 pelo avo de Dick. O pai aspirava que o filho assumisse o futuro da empresa familiar, mas o jovem Dick nem quis saber e decidiu tornar-se ilustrador.

Durante a segunda guerra mundial, Dick viveu escondido junto à família em uma casa no campo. Anos depois, contou que não percebia o que estava acontecendo no mundo; passava o tempo imerso na leitura dos dois únicos livros que tinha em casa: uma monografia de Van Gogh e uma de Rembrandt, ambos holandeses.

Devido à guerra, não conseguiu terminar a escola secundária. Com o fim desta, o pai o mandou trabalhar como assistente de livreiros e de editores, esperando formá-lo na profissão de editor. Trabalhou um ano como estagiário na Livraria Broese de Utrecht, um outro ano na Livraria W.H. Smith de Londres e um outro na Editora Plon de Paris. Em Paris, descobriu as obras de Matisse, Picasso e Léger e voltou para Utrecht sempre mais convencido de não querer ser editor. Faz inscrição na Academia Rijksakademieche, de Amsterdam, que abandonou apenas seis meses depois. Não se sentia predisposto nem menos para a pintura: não era capaz de realizar desenhos em perspectiva e se sentia atraído pelas novas correntes de Abstracionismo e Construtivismo (em atrito com a Academia).

O pai se rendeu ao fato de ter um filho artista e o contrata como designer gráfico, encomendando-lhe capas de livros. Para a editora paterna Dick Bruna realizara mais de 2.000 capas, muitas das quais com a técnica de colagem. São objeto de culto dos colecionistas as suas capas para a coleção de livros de bolso Urso Negro e as para os livros de suspense de Simenon, quase todas disponíveis no blog Retrobook.


Capas ilustradas por Dick Bruna para a editora do pai.

Em 1953, casa-se com Irene de Jongh, com a qual tem três filhos: Sierk (1954), Marc (1958) e Madelon (1961). No mesmo ano, realiza seu primeiro livro para crianças: The Apple.


The Apple, 1953, boneco do primeiro livro para crianças de Bruna.

Um amigo de família convenceu o pai a publicar uma coleção de livros para crianças pequenas assinados por Bruna, no estilo de The Apple. Nascem Tijs, Toto in Volendam, Kleine koning. O pai não estava convencido da qualidade desses livros e o lançamento da coleção foi um fiasco. A A.W. Bruna & Zoon nunca tinha publicado livros para crianças e não sabia como divulgá-los. Mas Dick Bruna está convencido e absolutamente seguro que as crianças gostarão e quer seguir em frente. Olhem que obras-primas de alegria, frescura, síntese gráfica!


Dick Bruna, Tijs, 1957, um dos primeiros livros para crianças de Bruna.


Dick Bruna, Toto in voledam, A. W. Bruna & Zoom, 1953, um dos primeiros livros de Bruna.

O nascimento de Miffy

Em um dia de verão em 1955, durante um passeio, Dick Bruna mostra um coelhinho a seu primeiro filho, Sierk, que na época tinha um ano. De volta para casa, inventa para o filho a historia muito simples de um coelho que faz coisas muito simples: as mesmas coisas que faz Sierk todos os dias. Os textos são igualmente simples e breves. Chama-o Nijntje, que em holandês significa coelhinho. Não é fêmea nem macho, nem jovem nem velho. Quando, anos depois, lhe pedem mais informações sobre o personagem, ele respondera sempre: Nijntje é só Nijntje. (Miffy é só Miffy). Uma belíssima tautologia para definir quem se é.

Dick Bruna não é o único designer gráfico que iniciou uma carreira de ilustrador para crianças para relacionar-se com o primeiro filho: Munari, Leo Lionni e Katsumi Komagata seguiram o mesmo impulso afetivo e criativo. Esta é o primeiro boneco de Miffy.

Dick Bruna fez mais de 100 livros com Miffy protagonista: o último, de 2011, com 84 anos. Todos têm o mesmo estilo: um personagem visto de frente, tinta plana, cores primarias e uma linha negra definida que contorna cada forma, tornando-a icônica e ideal. A linha é feita de nanquim, utilizando um pincel muito especial que Bruna se habituou a construir ele mesmo.


Fotos de Anna Castagnoli do Central Museu de Utrecht.

De 1955 a 2011, Miffy evolui em direção a uma simetria sempre mais estática: Dick Bruna almeja uma simplificação absoluta. Logo na sequência vocês podem ver duas edições do mesmo livro Miffy no zoológico realizadas com uma diferença de 20 anos. Podem observar como Miffy se endireita e assume uma posição completamente frontal.

A partir de 1959 o formato desta série torna-se quadrado, em um formato que permanecerá através dos anos: 16X16. É para que os livros se adaptem melhor às mãos dos pequenos leitores, mas também para resumir, em um livro, tudo aquilo que o Construtivismo tinha ditado no seu manifesto. A forma mais absoluta, base de todas as construções, é o quadrado.


Dick Bruna, 1955.


Dick Bruna, 1975, Miffy en seu formato 16 X 16 cm.

A expressão do rosto de Miffy parece sempre igual: dois pontos para os olhos, uma cruz para a boca. Um pouco no estilo das bonecas Waldorf de Steiner que, pelo fato de não terem nenhuma expressão, podem acolher com maior maleabilidade as emoções projetadas pela criança.

Apesar da aparência, Miffy é cheia de vida. Não são apenas os textos breves que a alimentam: Bruna era capaz de trabalhar dias e dias para chegar a sua expressão com aqueles três pequenos signos. Não tinha mais nada à disposição. Uma imperceptível diferença da distância e da altura dos olhos, do tamanho do X da boca, uma mínima inclinação da cabeça eram os únicos instrumentos que tinha para dar vida aos humores de Miffy, e Bruna costumava trabalhar horas e horas até que: “Pronto, é Miffy mesmo, agora esta realmente triste”. Para um livro de 12 paginas realizava mais de 100 desenhos. Miffy pode se surpreender, se assustar, estar triste mesmo sem mudar nunca a sua simples carinha.

A série de livros de Miffy foi um sucesso interplanetário, que se desdobrou em brindes, séries de televisão, quebra-cabeças, jogos, bonecos.

Dick Bruna, além da série de Miffy, realizou muitos outros livros para crianças, sempre com o mesmo estilo. Os mais interessantes são aqueles que ilustram os contos de fadas clássicos. É surpreendente para nós, que conhecemos os contos e seus diversos ilustradores, observar como podem ser contados através de imagens estáticas, frontais, icônicas.


Fotos de Anna Castagnoli do Central Museu de Utrecht.

Apesar da imensa fortuna econômica e do sucesso, Dick Bruna viveu uma vida muito simples em Utrecht junto à esposa, inseparável conselheira e crítica. Ia ao trabalho todos os dias de bicicleta e tentava driblar jornalistas e entrevistas por causa de sua forma peculiar de timidez, ou discrição.

Saudações e gratidão pelo seu dom de poesia e delicadeza de toda a sua obra.

Ciao, Dick Bruna, descanse em paz, nos tomaremos conta de Miffy.1Texto publicado originalmente no blog de Anna Castagnoli, Le figuri del Libri, em 8 de março de 2017.


Meu abraço em Miffy durante a minha visita ao estúdio de Bruna, reproduzido no Museu Central de Utrecht.

Tradução Claudia Souza

Notas

  • 1
    Texto publicado originalmente no blog de Anna Castagnoli, Le figuri del Libri, em 8 de março de 2017.

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  • Anna Castagnoli

    Depois de fazer mestrado em filosofia e letras, encontrou no livro ilustrado um universo capaz de resumir todas as suas paixões: a arte, a literatura, a psicanálise da infância, a filosofia. Autora e ilustradora, faz quatro anos que se dedica ao estudo dos mecanismos do livro ilustrado no seu blog. Também colabora como crítica em diversas revistas internacionais. Nascida na França, de nacionalidade italiana, vive atualmente na Espanha. É ilustradora de vários livros e do Manuale dell Illustratore. É autora do blog http://www.lefiguredeilibri.com/.

    AnnaCastagnoli@revistaemilia.com Castagnoli Anna

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